Um segredo de Londres
As cidades grandes do nosso mundo de hoje são paradoxais. Delas sabemos tudo ou quase tudo, mesmo se nunca lá estivemos. A elas encontramos biliões de referências em todo o lado – nos livros e filmes, em fotografias, na imprensa… – de tal maneira que muitas das suas características se nos tornam familiares e as reconhecemos com facilidade em qualquer circunstância, tornam-se parte do nosso imaginário, tanto pessoal como colectivo. E no entanto, talvez pela excessiva exposição mediática de algumas dessas características, as grandes cidades conseguem guardar grandes segredos, às vezes até mesmo para aqueles que lá vivem.
A primeira vez que fui a Londres era adolescente e quis o acaso que ficasse alojada no hostel do Holland Park. Quis o acaso também que quando lá voltei há uns anos, já bem adulta, me encontrasse uma manhã com algumas horas para gastar, sozinha. Em Londres gosto especialmente de toda a área de Kensington, que é ao mesmo tempo central e relativamente sossegada, e tento sempre arranjar alojamento por esses lados. Naquele dia, com vontade de dar um passeio a pé mas sem me afastar demasiado do hotel, lembrei-me de refrescar a minha memória do parque e pus pés ao caminho. Foi mais uma vez o acaso a orientar os meus passos: tivesse eu escolhido outro lugar e hoje não estaria a escrever este post.
Mas não, o “segredo” de que quero falar não é o Holland Park – que é completamente merecedor de uma visita só por si, mas é demasiado grande e conhecido para poder ser verdadeiramente um segredo. Tenham só mais um bocadinho de paciência, e venham comigo neste passeio.
Apesar de haver uma estação de metro com o nome de Holland Park, que dá acesso ao parque pelo lado norte, vamos apanhar a linha verde ou amarela e sair na estação de High Street Kensington. Gosto desta avenida, que é o prolongamento da Kensington Road e tem árvores e suportes com flores nos candeeiros, passeios largos, edifícios em tijolo e lojas que não estão a abarrotar de gente.
Cinco minutos a andar bem e estamos na entrada sul do parque, onde desde Novembro de 2016 está alojado o Design Museum (e cuja visita eu aconselho vivamente a quem, como eu, for apreciador do tema – só para vos abrir o apetite, neste dia em que escrevo o post uma das exposições é sobre os 70 anos da Ferrari).
Seguimos por uma alameda comprida com árvores e bancos de madeira para descansar, cruzando-nos com casais com carrinhos de bebé, joggers, cães que passeiam os donos, adolescentes de mochila às costas, polícias, famílias com crianças. Ao fundo, depois do campo de jogos, os edifícios do hostel (sim, ainda existe!) e da Ópera. Viramos à esquerda para passar por baixo das arcadas em tijolo, mas se for Verão vale a pena continuar e contornar a Orangery para ver o roseiral.
São só mais uns metros. Seguimos as setas que nos levam por um caminho entre árvores, passamos uma cancela em madeira e mais à frente encontramos uma placa, escrita em japonês e inglês, onde se destaca o nome do lugar: The Kyoto Garden. Chegámos.
O Kyoto Garden é uma bolha de paz e tranquilidade na agitação de Londres, um pedacinho do Japão recriado numa das mais vibrantes e populosas cidades da Europa. Oferecido pela Câmara de Comércio e Indústria de Quioto como parte do Festival do Japão realizado na cidade em 1991, foi concebido pelo designer de jardins japonês Shoji Nakahara no estilo chisen kaiyushiki-en, que significa “jardim para passear com lago”. Nele estão presentes inúmeros elementos que remetem para a cultura japonesa e os seus valores espirituais, em que o espaço entre os vários “objectos” que constituem os pontos fulcrais do jardim, cada um deles com significado próprio, é tão ou mais importante do que esses mesmos componentes. O resultado é um lugar cheio de beleza e harmonia, e as fotografias neste caso são bem mais eloquentes do que quaisquer palavras que eu possa usar para o descrever. (Podem encontrar nesta página mais informações sobre as características do jardim.)
O Kyoto Garden está pensado para ser percorrido no sentido dos ponteiros do relógio, para que as suas várias facetas se vão desenrolando aos nossos olhos como se fosse um pergaminho. Dominado pelo verde nos meses mais quentes, quando estive lá em Novembro achei o jardim ainda mais bonito, com as notas outonais de cor dadas pela folhagem das árvores.
Embora vocacionado para proporcionar calma e uma atmosfera indutora da contemplação e meditação, não se pense que é um jardim estático ou monótono. A cascata abundante, com as pedras a contrastarem com o branco da água a cair (representando o contraste entre o yin e o yang), os coloridos peixes koi do lago e as galinhas d’água dão movimento ao ambiente, que os típicos esquilos londrinos e os pavões acentuam.
Gulosos e completamente habituados aos visitantes, os esquilos não hesitam em aproximar-se para pedir comida – e até se atrevem a trepar pelas nossas pernas para a agarrarem mais depressa. E há ainda um pavão que segue devotadamente, como se estivesse amestrado, um dos jardineiros do parque, que lhe vai lançando pedaços de comida pelo caminho.
Adjacente ao Kyoto Garden foi mais recentemente, em 2012 (na véspera da abertura dos Jogos Olímpicos), criado um outro espaço a que deram o nome de Fukushima Memorial Garden. Este jardim é um agradecimento dos japoneses aos britânicos pelo apoio que prestaram após o tsunami e subsequente desastre nuclear de Fukushima. Idealizado por Yasuo Kitayama, que desde 2011 é responsável pelos jardins japoneses do Holland Park, tem um caminho em cascalho ladeado por rododendros e hortênsias, bancos para descansar e meditar, e um elemento simbólico composto por três pedras que “crescem” do solo – estão ali para evocar uma das divindades mais amadas pelos japoneses, Jizo, que protege as crianças, as mulheres e (nem de propósito…) os viajantes, e para lembrar que a vida nunca pára.
Um pouco a contragosto, temos de deixar o Kyoto Garden para voltar à realidade. Por sorte, vai ser preciso atravessar novamente o Holland Park, desta vez por outro caminho – para vermos mais alguns recantos – e assim a transição é menos penosa.
Um dia hei-de ir ao Japão para conhecer os famosos jardins de Nara e Quioto. Enquanto isso não acontece, e sempre que for a Londres, sei que o Kyoto Garden vai estar à minha espera para me lembrar de que há lugares onde é possível estarmos em paz connosco e com os outros.
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