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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Sex | 25.10.19

Um dia errante em São Miguel

 

Ando há uns dias a conhecer a ilha de São Miguel ao sabor do tempo. Aqui não vale a pena fazer planos para o dia a seguir nem pensar em roteiros organizados, porque a chuva, o vento ou o acaso acabam por nos empurrar noutra direcção. É outra forma de viajar, em busca do sol ou pelo menos dos lugares onde o tempo está menos cinzento, e temos de nos preparar para tudo – principalmente para as surpresas.

 

Os lugares obrigatórios foram despachados em dois dias e meio (podem ver no fim do post todos os lugares que visitei em São Miguel). Tive como cicerone uma amiga minha que aqui vive, e que além de me acolher, me levar a passear de uma ponta à outra da ilha e ter a paciência de me aturar quando tiro cinquenta fotografias ao mesmo sítio, ainda deixa o carro nas minhas mãos enquanto trabalha para eu poder aproveitar à minha vontade o tempo que ainda por aqui estou. No primeiro dia em que fiquei só por minha conta, o amanhecer frio e nebuloso parecia ir estender-se pelo dia adiante, por isso pus de lado a ideia de praia ou banhos onde quer que fosse e rumei a leste em busca da Lagoa do Congro. Um pouco antes de Vila Franca do Campo, a seta que indica Água de Pau e Caloura desencaminhou-me. Fui descendo e às vezes subindo, em curvas várias, até chegar ao porto de pesca. Um desvio acertado. Cheirava a maresia quando saí do carro, e nem um ventinho que pedia casaco alterou a boa primeira impressão com que fiquei da Caloura. O lugar estava tranquilo; meia dúzia de estrangeiros já iam de saída, dois ou três pescadores afadigavam-se à volta de um barco e apenas mais umas raras pessoas andavam por ali, ainda com mais ar de turistas do que eu. Os garajaus desenhados num muro fingiam voar ao encontro das ondas que se quebravam com alguma força na alta falésia rochosa que rodeia o porto. Consegui imaginar o lugar em pleno Verão, o pontão com um mundo de gente, a piscina cheia de água do mar e pessoas aos gritos, as esplanadas sem lugares vagos… Será que apreciaria o sítio da mesma maneira? Há lugares cujo encanto resiste a tudo, até às marés de visitantes, mas são poucos.

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Caloura (3).JPG

Caloura (2).jpgCaloura (4).JPG

 

Um pouco mais acima na estrada, a igreja do Convento da Caloura tinha chamado a minha atenção quando descia para o porto. Debruados a pedra cinza escura, os azulejos azuis e brancos da fachada estão a precisar de urgente restauro, mas nem isso retira charme ao edifício. Numa ilha em que quase todas as igrejas são brancas, esta marca a diferença. O pormenor singular fica por conta das torres sineiras laterais, pois uma delas tem realmente um nicho com um sino, enquanto na outra o nicho e o sino apenas estão mimetizados em pedra escura. Como notas históricas e curiosas, saibam que foi esta a primeira “casa” da imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres (que actualmente está no Convento de Nossa Senhora da Esperança em Ponta Delgada) e que o convento a que a igreja pertence foi o primeiro estabelecimento religioso feminino que existiu nos Açores.

Capela do convento da Caloura (1).JPGCapela do convento da Caloura (2).JPG

 

Regressei pela mesma estrada até Água de Pau, onde as ruas são estreitas e as casas pequenas, algumas tão minúsculas que a fachada apenas tem espaço para a porta e uma única janela em vez das duas que são tradicionais. Em quase todas, geralmente por cima da porta, há um pequeno painel de azulejos com uma imagem religiosa. Por qualquer razão desconhecida, a preferida parece ser a Nossa Senhora da Conceição, embora também haja algumas de Fátima e um ou outro Senhor Santo Cristo. Mistérios da devoção católica… Enquanto andei por ali a fotografar, algumas cabeças femininas assomaram à janela ou à porta, mas quando cheguei a uma pequena praça antes da igreja parecia que boa parte da população masculina se tinha ali reunido para nada fazer, uns sentados e outros encostados, uns a conversar e outros a beber, e quase todos olharam para mim como se estivesse a invadir território que não me pertencia. Voltei para o carro e fui estacionar mais adiante, num largo deserto junto a um restaurante a que alguém decidiu chamar “Ataskate”. Calculo que o “k” seja para dar um ar mais americanizado à coisa.

Água de Pau (2).JPG

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Subi à Ermida do Monte Santo. A ruazinha íngreme transforma-se a certa altura num calvário. Não, não é uma metáfora. No muro do lado esquerdo estão colocados, a intervalos regulares, pequenos nichos em pedra com azulejos onde estão pintadas a azul as cenas das estações da Via Sacra. Do lado direito, lá em baixo, Água de Pau podia ser um pueblo blanco andaluz não fora o verde que a rodeia, a via rápida cinzenta ao fundo, e algumas casas coloridas salpicadas entre o branco quase hegemónico.

Monte Santo - Calvário.JPGÁgua de Pau (1).JPG

 

Fui subindo devagar. Era meio-dia e agora o sol batia forte. Amaldiçoei as botas, as meias grossas, as mangas compridas, a écharpe. Pensei na água da Caloura e em como naquela altura seria provavelmente capaz de lá tomar banho, mesmo com vento. Dezenas de lagartixas fugiam à minha frente para se esconderem entre as fissuras das pedras. De resto, estava tudo tão tranquilo que até se ouviam os sons da vila, nítidos mesmo vindo de tão longe – as crianças que brincavam no pátio de uma escola, um galo a cantar, algumas vozes esparsas, o motor de um veículo. Cheguei finalmente à Ermida, bem mais bonita do que eu estava à espera – mais uma bela surpresa. Brilhava ao sol, muito branca e debruada a azul, tal como os degraus e o muro que a rodeia; fez-me lembrar um Império do Espírito Santo. A porta bem fechada e as janelas protegidas por um gradeamento de metal rendilhado, tive de me contentar em espreitar pelos orifícios para conseguir ver o que pude do interior, que me pareceu simples, claro e muito harmonioso.

Capela do Monte Santo (1).jpgCapela do Monte Santo (2).JPGCapela do Monte Santo (3).jpg

 

Da ermida continuei até ao miradouro, umas dezenas de metros mais à frente. Desta vez eram as borboletas, ainda mais errantes do que eu, que reclamavam da minha passagem voando irrequietas à minha volta. Vi-me aflita para conseguir tirar-lhes meia dúzia de fotos manhosas. O miradouro tem um gradeamento circular e um banco, e a vista de 360 graus que dali temos é magnífica: o mar imenso de um lado, o verde da terra do outro. São Miguel é fértil em miradouros, e mesmo quando são geograficamente próximos uns dos outros apresentam-nos sempre uma nova faceta da ilha. Do Miradouro do Pisão, que em linha recta dista apenas quilómetro e meio do Monte Santo, a vista já é completamente distinta: contrastando com o azul do oceano ressaltam os recortes e rendilhados das rochas escuras da Caloura, sobre as quais se impõe o volume branco do convento. Olhando de cima, o local é ainda mais bonito.

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Vista do Miradopuro do Monte Santo (2).JPG

Vista do Miradopuro do Monte Santo (1).JPGCaloura vista do Miradouro do Pisão.JPG

 

Satisfeita a minha curiosidade, redirigi-me ao meu destino inicial. Ao contrário do que é costume em mim, o trabalho de casa que fiz para esta viagem foi muito reduzido. Não fazia por isso a mínima ideia do que me esperava. E o que primeiro encontrei assim que virei no desvio para a Lagoa do Congro foi uma estrada de terra batida bem esburacada. Não querendo massacrar o carro da minha amiga, estacionei-o no primeiro sítio que encontrei e fui andando a pé pela estrada barrenta e ensombrada por grandes árvores, abençoando as botas, as meias grossas, as mangas compridas, a écharpe. Ao fim de uns 500 metros, mais coisa menos coisa, o caminho estreita e começa a descer, e apesar de ter percebido na altura que a lagoa ainda estava longe e que depois teria de subir bastante no regresso, nem isso me fez hesitar – estava demasiadamente maravilhada com o sítio para me preocupar com minudências. Finalmente, São Miguel estava a revelar-me o seu lado mais selvagem e original, aquele que eu ainda não tinha conseguido ver.

Lagoa do Congro (4).JPGLagoa do Congro (6).JPGLagoa do Congro (5).JPG

 

Agora que já aqui passei quase uma semana, e apesar de mesmo assim não ter conseguido visitar tudo o que queria (há que ficar sempre com motivos para voltar), se me perguntarem o que é imprescindível ver na ilha eu respondo sem hesitação: a Lagoa do Congro. O lugar é incrível! Depois dos verdes da floresta, dos fetos exuberantes, das árvores que se perdem nas alturas, do musgo que cresce nas pedras e troncos, surge o verde da água da lagoa, quase amarelo do brilho intenso do sol. E o silêncio… Todos os sons da floresta surgem abafados – as folhas que são pisadas, um ramo que cai, um pássaro que pia. O sossego é quase total.

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E digo quase total porque aparece sempre alguém a estragar o ambiente. Depois de me ter cruzado com várias pessoas que regressavam, quando cheguei perto da água apenas lá estava um casal de estrangeiros, tão calados que não quis estragar o seu descanso e avancei pelo trilho superior à procura de algum outro lugar onde pudesse sentar-me. Tal como algumas das outras 22 lagoas da ilha de São Miguel, esta está completamente rodeada de arvoredo denso mesmo até à linha de água. A vegetação do trilho ia ficando cada vez mais cerrada e mais longe da água, por isso desisti ao fim de poucos minutos e voltei para trás. Os estrangeiros tinham desaparecido mas – infelizmente – estavam precisamente a ser substituídos por um casal de miúdos americanos que faziam mais barulho que duas gralhas (digo miúdos por comparação comigo, mas na verdade deviam andar pelos seus vintes e qualquer coisa, idade supostamente mais que suficiente para terem juízo). Ele feito parvo a bater palmas e a gritar para tentar ouvir o eco, ela de máquina fotográfica em punho em busca dos ângulos perfeitos para a foto mais “instagramável”, entre ambos não se calavam um segundo – uma verdadeira tortura, um atentado à tranquilidade do lugar. Ainda tive esperança de que fossem rápidos, mas depois percebi que estavam ali de pedra e cal. Afastei-me um pouco e lá consegui encontrar um sítio mais resguardado, onde me instalei numa pedra musgosa a absorver toda aquela beleza e descontrair durante algum tempo. Ao todo, desde que parei o carro até que regressei foram duas horas, das melhores que passei aqui na ilha.

Lagoa do Congro (1).JPGLagoa do Congro (3).JPG

 

Saindo da obscuridade da floresta, a tarde continuava radiosa. Já tinha ido às Furnas e às caldeiras, mas decidi regressar à lagoa para visitar a Capela de Nossa Senhora das Vitórias, que só tinha visto de longe. Praticamente isolada na margem sul da Lagoa das Furnas, esta igreja é completamente diferente de qualquer outra em São Miguel. Meio dissolvida entre toda aquela água e todo aquele verde, a pedra manchada que o tempo avermelhou e as suas formas elaboradas tornam-se incongruentes naquele enquadramento tão simples. O conjunto tem um ar algo surreal.

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A capela foi mandada construir em fins do século XIX por José do Canto, um abastado proprietário açoriano, para servir de mausoléu à sua mulher e a ele próprio. José do Canto era um intelectual progressista e um botânico amador, e esta capela encontra-se precisamente numa das suas antigas propriedades, a mata-jardim que hoje tem o seu nome. A entrada estava guardada por um senhor de cara fechada e bigode farto, que me olhou desconfiado quando perguntei a que horas encerrava o jardim. Nitidamente dissuasor, disse-me que fechava o portão às 5 e que para ir à cascata demorava uma hora para cada lado e por isso já não dava tempo. Eu, que nem sabia que ali há uma cascata e queria era ver a capela, olhei para o relógio: 4 e um quarto. O local é sombrio, mas tinha tempo e luz mais que suficientes para as minhas pretensões. A carranca foi ainda maior quando lhe disse que, mesmo assim, queria entrar. A contragosto lá me aceitou os 3 euros e deu um folheto sobre o jardim, voltando a frisar que fechava o portão às 5. Arrisquei a sorte e ainda perguntei se dava para ver a capela por dentro. Surpreendentemente (estava à espera de ouvir um “não”) respondeu que a colega me iria abrir a porta e aproveitaria para encerrar depois a capela até ao dia seguinte. Ambos tinham ar de já reformados e com pouca vontade de estar ali, notava-se-lhes o aborrecimento nos modos e no andar – que chatice terem de estar a aturar turistas coscuvilheiros com a mania de querer espiolhar tudo…

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Seguimos por um caminho de relva com pouco ar de ser pisada – a maior parte das pessoas deve contentar-se em ver a capela por fora. Construída em estilo neo-gótico, tem uma dimensão bastante generosa, com uma torre sineira alta, pontiaguda e ornamentada. A porta interior estava aberta (provavelmente para deixar que se espreite lá para dentro) mas o gradeamento que a protege estava firmemente fechado com uma corrente grossa de metal e um cadeado, aberto entretanto com eficácia pela tal senhora que me acompanhou. No interior chamou-me primeiro a atenção, por não ser muito habitual, o belíssimo piso de mosaicos coloridos. Os vitrais das janelas altas, que do exterior parecem desenxabidos, mostram-se bem mais ricos quando vistos de dentro. A pedra cinzenta nua da estrutura, com as nuances dadas pela passagem dos anos, contrasta com a madeira castanha do gradeamento, do púlpito e dos altares. Nota-se a diferença pela ausência da talha dourada tão habitual nas nossas igrejas, mas isso em nada diminui o carácter desta capela.

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Ainda tive tempo para passear um bom bocado pelo jardim e pela mata, que são lindíssimos e cheios de exemplares da flora de outras latitudes. Há árvores gigantescas (sequóias, araucárias, carvalhos, nogueiras e muito mais…) um camelieto, nesta altura ainda sem quaisquer flores (caso não saibam, as camélias só florescem no Inverno) e um vale dos fetos. Tenho, definitivamente de voltar um dia para visitar com mais calma e ir ao Salto do Rosal, a tal cascata que fica a cerca de 2 km.

Mata-jardim José do Canto (3).JPG

Mata-jardim José do Canto (2).JPG

Mata-jardim José do Canto (1).JPG

Não querendo indispor ainda mais o senhor que guarda o jardim, saí pelo portão quando faltavam oito minutos para a hora de fecho. Um rapaz mais jovem esperava por ele, da colega nem sinal. Dois minutos depois, ainda eu estava longe do parque de estacionamento, passou por mim a toda a brida o carro que o levava para outras paragens. A tarde continuava linda e luminosa. A estrada até às Furnas contorna o lado nascente da lagoa e num dos troços as árvores formam um túnel. Junto às caldeiras há bancos feitos em madeira propositadamente tosca, e um deles tem esculpida uma sereia em tamanho de gente. De início, estranha-se o cheiro a enxofre, tão presente ali e em tantos outros lugares da ilha. Depois, acabamos por nos habituar e até gostar. É só mais um dos encantos de São Miguel, onde os melhores dias são aqueles que não planeamos.

Estrada da Lagoa das Furnas.JPGLagoa das Furnas (3).JPGCaldeiras das Furnas.JPGLagoa das Furnas (2).JPGLagoa das Furnas (1).JPG

 

 

Por onde andei estes dias:

Água de Pau

Aqueduto do Carvão

Arquipélago – Centro de Artes (Ribeira Grande)

Caldeira Velha

Caloura

Capela de Nossa Senhora das Vitórias

Capela e Miradouro do Monte Santo

Ermida de Nossa Senhora da Paz

Fábrica Cerâmica Vieira

Furnas

Hotel Monte Palace (ruínas)

Lagoa das Furnas

Lagoa do Canário

Lagoa do Congro

Lagoa do Fogo

Lagoas das Empadadas

Lagoas das Sete Cidades

Mata-Jardim José do Canto

Miradouro da Ponta do Sossego

Miradouro do Cerrado das Freiras

Miradouro do Pico do Carvão

Miradouro do Pisão

Mosteiros

Parque Terra Nostra

Plantação de chá Gorreana

Poça da Dona Beija

Ponta da Ferraria

Ponta Delgada

Salto do Cabrito

Sete Cidades (localidade)

Vila Franca do Campo

Vista do Rei

 

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Açores, destino sustentável

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As surpresas de Angra do Heroísmo

Na ilha das Flores - parte I

Na ilha das Flores - parte II

Na ilha das Flores - parte III

Na ilha das Flores - parte IV

Na ilha das Flores - parte V

Na ilha das Flores - parte VI

No Corvo

 

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