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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Ter | 01.08.17

Ser mulher e viajar

 

Sou contra qualquer tipo de discriminação avulsa. Não admito que uma pessoa seja liminarmente discriminada apenas pela sua cor da pele, religião, sexo, idade, orientação sexual, clube desportivo, nacionalidade ou qualquer outra coisa. Admito que podem existir situações em que seja necessária uma diferenciação no tratamento, mas isso terá a ver com a condição ou características específicas de uma pessoa específica, não com o facto de ser simplesmente mulher ou homem, jovem ou idosa, aborígene ou berbere.

 

Dito isto, sou obviamente contra a discriminação sexual, venha de onde vier. Sim, homens e mulheres são diferentes – fisicamente e cerebralmente – e isso traz algumas implicações a nível prático. Mas não podemos (nem devemos!) tomar o todo pela parte, e vice-versa. Infelizmente, nem toda a gente pensa assim, e se tenho a sorte de viver num país onde existe igualdade de géneros – pelo menos à luz da lei, que se falarmos da sociedade portuguesa de um modo geral e em termos práticos, fácil será constatar que a realidade é algo diferente – há muitos outros países onde a desigualdade impera e (pior ainda!) é ostentada como bandeira.

 

Ser mulher e viajar para esses países, e sobretudo para aqueles onde de facto as mulheres são cidadãs quase sem direitos próprios, seja por questões tradicionalistas ou religiosas, pressupõe uma aceitação tácita de certos usos e costumes – aliás, quando viajamos para onde quer que seja temos de nos submeter às leis desses países, e de preferência também às suas regras sociais, pelo menos na sua parte mais importante e “sensível”. Ser estrangeiro num país não significa automaticamente que podemos agir exactamente como se estivéssemos no nosso, mesmo que na maioria dos países os “turistas” sejam olhados com uma certa benevolência.

 

Então como é que fazemos a ponte entre os nossos princípios e as normas de certos países que vão contra esses princípios? Como é que podemos defender um qualquer direito e depois ir visitar (por gosto, não por obrigação, claro) um país onde esse mesmo direito é vergonhosamente ignorado ou espezinhado? Como é que podemos ir gastar o nosso dinheiro e contribuir, mesmo que seja com uma insignificância em termos monetários globais, para uma hipotética prosperidade desse país?

 

Creio eu que não há uma solução fácil: ou vamos e fechamos os olhos e “aceitamos”, ou simplesmente não vamos – mesmo que seja um paraíso que sempre quisemos visitar. Já estou a ouvir muitas vozes acusatórias a levantarem-se, dizendo que o povo de um país não tem na maioria das vezes culpa do que os seus dirigentes decretam, que grande parte dessas pessoas são vítimas e precisam de que o seu país se desenvolva para que as mentalidades também evoluam, etc., etc. E têm toda a razão. Mas nem todos os países onde essas injustiças e discriminações estão instaladas e até consagradas na lei são pouco desenvolvidos ou pobres, e vários deles são até bem mais ricos do que o nosso.

 

E o que é que me leva a falar disto hoje? Muito simplesmente uma certa tristeza e vontade de desabafar – por sentir cada vez mais que a humanidade e a civilização parecem ter entrado numa espiral descendente e não vejo grandes indícios de que as coisas sejam invertidas a curto prazo. Ouço uma notícia boa, e logo a seguir leio noutro lado uma que é péssima…

 

Sucedeu há dias algo que foi visto como um enorme passo em frente na conquista dos direitos das mulheres no mundo árabe: o parlamento da Tunísia aprovou uma lei que tem como finalidade acabar com a violência contra as mulheres. É um acontecimento histórico num país muçulmano (mas em que o sistema legal não segue a xaria, embora dela tenha extraído algumas leis) que se espera abra caminho para outras decisões igualmente importantes noutros países muçulmanos (podem ler mais pormenores aqui). Fiquei contente. Já estive na Tunísia duas vezes e gosto do país e das pessoas. Gosto sobretudo do facto de ser um país fundamentalmente moderado e pacífico. Depois da Primavera Árabe passaram (e ainda estão a passar) por um período complicado, sobretudo economicamente, mas parecem estar a fazer a transição da ditadura (que existia antes) para a democracia de uma forma relativamente equilibrada, apesar dos problemas económicos que têm enfrentado. Têm ainda muito que “andar” no que toca aos direitos humanos, mas parecem estar no bom caminho.

 

Hoje, o contraponto. No seu blogue, o Leonardo fala de uma viagem recente que fez a Istambul. E refere, ao falar da visita à Mesquita Azul, os preceitos do vestuário que homens e mulheres (mesmo que sejam turistas) têm de seguir para poderem entrar: pés descalços para toda a gente, pernas (preferencialmente) cobertas para os homens, e para as mulheres nada de ombros à mostra, pernas também tapadas pelo menos até ao joelho, e cabeças cobertas (podem ler tudo no site oficial). 

Mesquita Azul código vestuário.jpg 

Sucede que também já estive duas vezes na Turquia, a primeira delas há quase 20 anos. Visitei, naturalmente, a Mesquita Azul (e não só a Azul). Estava bastante calor em ambas as vezes. Da primeira levava um vestido até para o comprido, mas que mostrava um ou dois centímetros dos ombros. Foi o bastante para me atirarem para cima um pano turquesa com a consistência da serapilheira, que cheirava a pó e me fazia comichão por todos os lados, e fui obrigada a suportá-lo durante a visita – que foi miraculosamente breve. Por essa e outras razões, não adorei a Mesquita, mas da cidade de Istambul fiquei desde essa altura completamente fã, e continua a ser a minha cidade europeia favorita. Quando lá voltei já ia prevenida, e apesar de por coincidência nesse dia estar mais uma vez a usar uma t-shirt sem mangas, levei comigo um pareo fininho que pus por cima dos ombros para entrar. Gostei muito mais desta minha segunda visita à Mesquita Azul e demorei-me por lá bastante tempo a apreciar a tranquilidade (nesse dia) do ambiente.

 

Mas em nenhuma das vezes fui obrigada a entrar de cabeça tapada. Nem eu, nem ninguém. Havia mulheres com lenços na cabeça, sim, mas seriam certamente muçulmanas, tal como tantas que vi nas ruas – e para minha surpresa, muito menos do que estava à espera; achei Istambul muitíssimo “ocidental”, excepção feita à linha do horizonte onde se destacam os inúmeros minaretes. Na segunda visita notei na cidade um maior número de mulheres vestidas de forma conservadora – sapatos fechados, guarda-pós por cima da roupa, e lenços na cabeça – mas isso devia-se ao facto de estarem no Ramadão, época em que muitos turcos em todo o país (e há zonas do país que são muitíssimo conservadoras) tiram férias e aproveitam para visitar as cidades “grandes”, como Istambul ou Ancara.

 

Por isso é para mim um desgosto (sem dúvida o termo que descreve melhor o que sinto) saber que agora as mulheres – só as mulheres – são obrigadas a entrar nas mesquitas de Istambul com a cabeça coberta, mesmo fora das horas da oração.

 

Não me interpretem mal. Não tenho nada contra os códigos que regem o vestuário para aceder a lugares religiosos, seja qual for a religião. Em Fátima, na Basílica de São Marcos e em imensos outros locais, católicos e não só, pedem (ou mesmo impõem) decoro no vestuário. Só lá vai quem quer, e não vamos lá para ofender ninguém – embora eu ache que joelhos e ombros à mostra não serão propriamente uma ofensa, mas pronto… Até já fui obrigada no Cairo a visitar uma mesquita (que eu por mim dispensaria e detestei visitar) com uma jelaba horrorosa enfiada por cima da cabeça (horrorosa por ser quente, quando a temperatura do ar ultrapassava os 40°C) porque não podia entrar de cabeça descoberta. Se fosse agora, muito provavelmente limitar-me-ia a ficar cá fora à espera…

 

O que me entristece e revolta é, por um lado, o facto de não fazerem exactamente as mesmas imposições aos homens, e por outro a “regressão” de pendor fundamentalista que está a alastrar em certos países, alguns deles até bastante evoluídos cultural e socialmente. Basta olhar para o que sucedeu no Irão. Hoje, quase 40 anos depois da Revolução Islâmica, é um país que continua socialmente anos-luz atrás do que era antes. Pode haver mais democracia (e será que há mesmo?), mas a igualdade desaparece quando comparamos os direitos dos homens com os das mulheres.

 

Há algum tempo uma amiga convidou-me a ir com ela passar férias ao Dubai. A minha resposta foi só uma: “Nem pensar!”. Admirou-se. Tive de lhe explicar que (além de achar o Dubai um território desprovido de interesse) não quero passar férias em países onde as mulheres são, à luz da lei, cidadãs de segunda. Sim, é verdade que na maioria dos países as mulheres são socialmente mais penalizadas pelos homens; que mesmo em muitas sociedades mais “modernas” ainda ganham menos do que os homens, trabalham mais e são olhadas de forma mais preconceituosa – mesmo pelas outras mulheres; que em muitos países são escravizadas, abusadas, mutiladas, assassinadas – só porque a tradição, a ignorância, as mentes tacanhas e o medo assim o ditam. É verdade que se eu levar a minha recusa às últimas instâncias, são muito poucos os países onde poderei passar férias. Mas uma coisa é a sociedade, outra são as leis. Discriminação existe em todo o lado. Deriva da falta de cultura, educação e sensibilidade. Deriva de dogmas, do falso conhecimento, ou até de experiências pessoais traumáticas. Cabe a quem governa acabar com ela, ou pelo menos tentar, através da lei, da sensibilização, da educação, ou até mesmo da punição. Mas quando essa discriminação é fomentada e instituída pelos próprios sistemas governativos, aí o caso muda de figura. É muito mais grave, e é muito mais difícil de inverter. Revolta-me profundamente.

 

E é por isso que entre ter de fechar os olhos e recusar-me a visitar um determinado país, eu escolho a segunda hipótese. É por isso que, com grande pena minha, não penso em ir ao Irão nos tempos mais próximos, enquanto vigorar o regime actual – provavelmente, acabarei por nunca ir; e quando voltar a Istambul (e espero ter a felicidade de lá voltar), provavelmente não irei entrar em nenhuma mesquita. Ser discriminada não é algo que me dê particular prazer. E escusam de alegar que é para meu bem e para me protegerem: posso não ter cromossoma Y, mas isso não faz de mim burra a ponto de acreditar.

 

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