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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Qua | 17.01.24

Patagónia, terra de contrastes - parte 2

 

No 13º dia desta viagem foi tempo de mudar novamente de cidade e regressar à Argentina para ver uma das maravilhas naturais mais admiradas da Patagónia.

 

Em linha recta, o hiperfamoso glaciar Perito Moreno dista apenas cerca de 60 km do Parque Torres del Paine, mas na prática há todo um mundo de montanhas e uma fronteira terrestre a separá-los. Situado no lado argentino dos Andes e inserido no Parque Nacional Los Glaciares, o Perito Moreno tem como cidade mais próxima El Calafate, 80 km a leste.

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Chegar a esta cidade desde Puerto Natales implica, de autocarro, mais uma viagem de quase seis horas para cobrir 350 km de estrada, com a obrigatória demora no posto de fronteira de Dorotea e mais tarde o desvio para uma curta paragem em Esperanza.

 

Uma cidade virada para o turismo

 

Entrando em El Calafate, senti mais uma vez o choque da diferença em relação ao ambiente em que tinha passado os dias anteriores. Muito colorida e europeizada, a sua rusticidade é apenas aparente e disfarça uma sofisticação de lugar claramente devotado ao turismo. E no entanto, gostei da cidade. El Calafate é extensa e substancialmente plana, com o movimento a concentrar-se ao longo e em torno da Avenida del Libertador – um trecho da Ruta 11, que atravessa a cidade de leste para oeste. É aqui que estão os melhores restaurantes, as grandes lojas de artesanato sofisticado, os operadores turísticos, o casino, o Mirador de la Ciudad – estrutura metálica de onde temos uma vista abrangente sobre El Calafate – e a Intendencia do Parque Nacional Los Glaciares: um centro interpretativo num edifício histórico, rodeado por um belo jardim com percursos explicativos sobre a fauna e flora do Parque, máquinas e equipamentos antigos utilizados pelos trabalhadores, e cenas esculpidas em homenagem a exploradores da região, como Charles Darwin e Francisco Moreno.

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A Avenida del Libertador tem um ambiente algo hippie chic, e reflecte bem os dois tipos de visitantes que parecem ser mais habituais na Patagónia: jovens mochileiros, que vêm à procura de aventura antes de serem engolidos pelo mundo do trabalho e das responsabilidades familiares; e viajantes de meia-idade, ou já para lá dela, cujo desafogo económico lhes permite atravessar uma parte do planeta para irem conhecer uma das regiões mais inóspitas do planeta. Embora fazendo parte deste segundo grupo, apreciei muito mais a atmosfera cool do Bar Borges & Alvarez (o meu apelido é só coincidência, mas confesso que o facto de se intitular “Librobar” me agradou sobremaneira) e do La Oveja Negra, do que do classicismo de restaurantes como o La Tablita. No capítulo das compras, e como localidade focada no turismo, o artesanato é de perder a cabeça, seja ele o mais genuíno, vendido em barraquinhas, ou o mais requintado, exibido em enormes estabelecimentos onde apetece comprar tudo. Fui salva pela falta de espaço na bagagem: uma mala de cabine e uma mochila para três semanas não deixam lugar para compras volumosas. Mas não consegui resistir a comprar um livro com um título sugestivo: “Patagonia a Sangre Fría”, de Gerardo Bartolomé, um livrinho de contos à la Edgar Allan Poe, entre o mistério e o terror. Uma boa escolha.

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O nosso alojamento também ficava nesta avenida, mas numa zona mais tranquila, rodeado de árvores e casas com jardins. O Hotel Glaciar é um chalé de madeira que parece saído dos Alpes, despretensioso mas confortável, com quartos virados para um corredor interior ao ar livre e uma sala de pequenos-almoços com tecto e mesas de madeira clara, toalhas aos quadrados vermelhos e brancos, e muitas janelas com vista para o exterior. Um dos meus maiores prazeres em viagem é ter a possibilidade de tomar o pequeno-almoço, com calma, num local agradável – parece-me sempre um bom prenúncio para o resto do dia.

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Colada à margem do Lago Argentino, a Reserva Natural Laguna Nimez é outra das boas surpresas de El Calafate. Criada em 1986 por determinação municipal, é uma zona pantanosa muito rica em biodiversidade, onde estão representados vários ambientes naturais da Patagónia. O trilho interpretativo de 3 km que percorre a Reserva levou-nos à volta das lagoas Nimez e Escondida onde, entre as 137 (!) espécies de aves já ali observadas (acima de 10% da avifauna argentina), os flamingos são incontestáveis vedetas, com os seus tons de rosa-salmão a destacarem-se no prateado imóvel da água. No percurso há observatórios de aves e miradouros sobre o Lago Argentino, sobrevoado pelos omnipresentes gansos-de-magalhães e por cisnes-de-pescoço-preto. Na tarde tépida do nosso passeio, o vento aplainava as ervas típicas da estepe e fazia dançar os arbustos floridos e os canaviais. Ao longe, para oeste, as montanhas andinas mostravam os seus chapéus de neve, em jeito de provocação, atazanando-nos o espírito pela antecipação do que iríamos ver no dia seguinte.

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O deslumbramento dos glaciares

 

O autocarro da Cal-Tur foi buscar-nos ao hotel por volta das 9 da manhã, mas demorámos mais de duas horas até finalmente termos um vislumbre do Perito Moreno: houve paragens para ir buscar outros turistas, e em miradouros estratégicos sobre o Lago Argentino e as montanhas que o rodeiam. A paisagem e as explicações da guia fizeram com que a viagem fosse menos monótona e parecesse mais curta.

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Os glaciares ocupam 10% da superfície do nosso planeta e contêm 90% da água potável disponível em todo o mundo. Os maiores estão na Antártida e na Gronelândia, mas o Campo de Gelo do Sul da Patagónia, com quase 17.000 km2, é a terceira maior extensão de gelo continental da Terra, e é nele que se insere o Perito Moreno. Com cerca de 250 quilómetros quadrados (uma área superior à da cidade de Buenos Aires), é um glaciar notável tanto pela vastidão como pela sua dinâmica única. A maior parte dos glaciares que existem no nosso planeta estão a regredir, mas o Perito Moreno é um dos poucos que mantém um equilíbrio notável: avança cerca de dois metros por dia, mas perde também diariamente uma quantidade de massa proporcional, o que mantém a sua estabilidade.

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Na encosta do Parque Nacional Los Glaciares com vista para o Perito Moreno foi criado um conjunto de passarelas com cinco percursos distintos (um deles acessível a pessoas com mobilidade reduzida) e vários miradouros, de onde podemos observar o glaciar de diferentes ângulos. Qualquer que seja a perspectiva de que o vemos, é um fenómeno geológico magnífico. Tem mais de quatro quilómetros de largura e ergue-se até 78 metros acima do nível das águas do Lago Argentino. Mais impressionante ainda, a massa invisível que fica debaixo de água pode chegar aos 700 metros de profundidade.

O que todos estes números não traduzem é o deslumbramento que senti perante este gigante gelado. Vê-lo em fotografia é fascinante, mas ao vivo é toda uma outra emoção. Sente-se o frio que trepa pela encosta, mesmo não havendo vento, e que faz arder o nariz e as faces. Ouvem-se os gemidos do gelo, que se dilata e contrai, e de vez em quando se despenha ruidosamente no lago, formando círculos leitosos na água parada, opaca, pintada em tons de jade e brilhante mesmo quando o céu ameaça chuva. O vermelho-vivo das flores da árvore de fogo chilena (Embothrium coccineum; “notro”, na linguagem local) destaca-se no fundo verde-escuro e azul da paisagem. Um caracará (Carcara plancus) posa para as fotografias, e depois decide abrir asas e partir para longe das atenções. O Perito Moreno faz parte de um ecossistema vivo, um habitat vital para diversas espécies de fauna e flora adaptadas às condições únicas do ambiente glacial; estar ali, sentir a magnitude daquela maravilha da natureza, foi uma experiência que transcendeu a mera contemplação visual e fez crescer ainda mais o meu respeito pelo planeta em que vivemos.

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Descemos ao lago para um passeio de barco nas águas onde flutuam pequenos blocos de gelo, alguns deles já translúcidos, prestes a derreter. A embarcação não se aproxima a menos de três ou quatro centenas de metros do glaciar, mas mesmo assim o efeito é avassalador. À nossa frente ergue-se uma muralha de gelo irregular e agreste, mais alta do que um edifício de 20 andares, larga a perder de vista, de um azul entre o turquesa profundo e o quase branco, cruzado por veios escuros. De repente, um grande estrondo e um murmúrio de admiração que se alastra pelos ocupantes do barco: uma torre de gelo desprendeu-se do glaciar mesmo à nossa frente – gelo que se formou há cerca de 400 ou 500 anos, um tempo muito superior ao de qualquer vida humana.

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Paraíso do trekking

 

Como cada vez gosto mais de caminhar, a minha viagem à Patagónia tinha obrigatoriamente de incluir El Chaltén – que se autodenomina “capital argentina do trekking”. É com base nesta vocação que a localidade tem crescido, pese embora a sua finalidade inicial tenha sido política. Na verdade, El Chaltén foi fundada em 1985 como parte de um esforço para estabelecer presença humana e reforçar a soberania argentina sobre a região da Patagónia. Mas a sua localização, na base das montanhas andinas Fitz Roy e Cerro Torre e muito perto do Lago Viedma, atraiu aventureiros de todos os pontos do globo, e tornou-se um destino popular para os amantes do montanhismo e do alpinismo. Integrada no Parque Nacional Los Glaciares, nota-se um foco significativo na preservação ambiental e na promoção do turismo sustentável. A localidade mantém uma atmosfera simples e acolhedora, embora ofereça uma variedade de serviços virados para o turismo, e é um ponto de partida estratégico para quem gosta de aventura e de actividades ao ar livre.

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Os 220 km de estrada que separam El Calafate de El Chaltén foram mais uma vez transpostos em autocarro. Três horas de viagem bem instalada no piso superior do veículo, à frente de uma janela panorâmica. Não que houvesse muito para ver: a paisagem entre as duas localidades resume-se a terra deserta, com uma ocasional sugestão de montanhas muito ao longe, e às extensões de água azul dos lagos. Quase no final da viagem, a atmosfera passou de soalheira a enevoada, e quando finalmente parámos no terminal rodoviário de El Chaltén o mau tempo tinha-se instalado, com chuva e vento forte. No quilómetro que tivemos de andar até ao alojamento, a impressão com que fiquei foi a de uma “cidade” com um desolador ar de acampamento pouco mais que provisório, semi-deserta, desenxabida e pouco acolhedora.

 

Com a minha sorte habitual, o tempo mudou passadas umas horas, e os dias seguintes encarregaram-se de também mudar a minha opinião. Por trás do aspecto incipiente das suas casas e ruas, El Chaltén revelou ter um ambiente jovem, simpático e hospitaleiro, onde fomos recebidas com sorrisos e respostas a todas as nossas perguntas. Cafés e restaurantes com ambiente intimista e comida excelente, conversas animadas – o empregado de mesa do “La Esquina”, onde tomámos várias refeições, até falava connosco em português do Brasil – e um interesse genuíno no nosso bem-estar, a par de alguma curiosidade sobre nós e o nosso país. Deu para perceber que não passam por ali muitos portugueses.

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Depois foram dois dias intensos de caminhadas, que tiveram tanto de cansativas quanto de memoráveis. Mesmo os trilhos mais curtos envolvem subidas contínuas durante vários quilómetros, e implicam algum esforço e várias paragens para descansar. Por vezes até tive vontade de desistir. Mas valeu bem a pena todo o “sacrifício”. Há qualquer coisa de mágico naquelas montanhas. De cada vez que olhava para o Fitz Roy – que em El Chaltén é bem visível de qualquer parte – dava por mim a sorrir. Percorrer aqueles trilhos que me mostravam várias perspectivas destes picos foi um privilégio que nunca vou esquecer.

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Dos quatro percursos que fizemos, o mais desafiante foi também o meu preferido, não por ser difícil (que o é bastante, uma ascensão de 350 metros ao longo de 3 km) mas pelo entorno. O trilho que sobe até à Laguna Capri passa pelo miradouro do rio de las Vueltas (aqui quase ia ficando sem gorro, tal era a violência do vento), de onde se avistam muitos quilómetros da Cordilheira Andina e do vale em que o rio vai serpenteando. Depois entramos numa maravilhosa zona de bosque onde predomina a faia-antárctica (Nothofagus antarctica; “ñirre”, em espanhol), e mais ou menos a meio entre o terceiro e o quarto quilómetro começamos a ver o contorno das montanhas por entre as árvores. Até que chegamos finalmente à Laguna Capri, um extenso tapete de água transparente que reflecte as cores do céu e da vegetação que o rodeia, com o Cerro Torre, o Fitz Roy e o glaciar Piedras Blancas lá ao fundo. É a recompensa pelo esforço da subida.

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Para aproveitar ainda mais aquele maravilhoso ambiente, prolongámos o passeio pela vereda que acompanha a margem do lago e depois inflecte até ao ponto a que dão o nome de Miradouro do Fitz Roy, num percurso circular que desemboca no trilho da Laguna de Los Tres e se une mais abaixo ao caminho que nos levou à lagoa.

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No extremo sul de El Chaltén, depois de passarmos uma ponte, fica o Centro de Visitantes do Parque Nacional, que marca também o início de outros trilhos. Os mais curtos levam-nos a dois miradouros com nomes de aves habituais nesta região: o Mirador de los Cóndores e o Mirador de las Águilas. O primeiro é curto mas tirou-me o fôlego, e de duas maneiras: pela subida acentuada, que me deixou os músculos das pernas a reclamar descanso (nesse dia já tinha caminhado 16 km), e por oferecer a melhor vista sobre El Chaltén – que, deste sítio, parece feita de casinhas do Monopólio. O segundo partilha um troço da subida do primeiro, mas depois torna-se misericordiosamente quase plano até chegarmos ao miradouro, um promontório rochoso com um panorama excepcional, que inclui o Lago Viedma e a extensa planície que o acompanha. O regresso, nesta área de vegetação rasteira que exibia os verdes e vermelhos de uma Primavera avançada e com o sol já a descer na direcção das montanhas, foi a parte que mais apreciei e fiz com asas nos pés, por ter sempre no horizonte o perfil do Fitz Roy e outros picos nevados dos Andes. El Chaltén tem uma atmosfera verdadeiramente especial.

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O apelo da natureza

 

No imaginário das minhas viagens sonhadas, a Patagónia era um misto de lugar desértico com paisagens arrebatadoras e pequenos povoados tranquilos varridos pelo vento. A realidade encarregou-se de me mostrar que, em grande parte do território que visitei (sobretudo no lado argentino), há mais aridez e monotonia do que eu imaginava, e os locais habitados são bastante mais movimentados e menos românticos do que estava à espera.

 

Ainda assim, as vastas extensões semi-selvagens, a sua biodiversidade e a imponência das montanhas e dos glaciares fazem da Patagónia uma região particularmente apelativa para quem procura conhecer lugares menos adulterados pelo Homem. Ao longo dos tempos, vários filósofos tentaram explicar esta atracção que a natureza exerce sobre nós, seja como fonte de autenticidade, utilidade ou inspiração espiritual. Para mim, no entanto, a única perspectiva com a qual consigo identificar-me é a do valor intrínseco da natureza, exterior e independente a qualquer potencial utilidade para o ser humano. Nós existimos porque fazemos parte dela, e arrogarmo-nos o direito de usar e abusar dela é pura estupidez.

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A parte final desta viagem implicou o regresso de autocarro a El Calafate, de onde apanhámos depois o avião para Buenos Aires. Para esta estadia de uma única noite escolhemos um alojamento mais modesto, numa rua tranquila perto do centro da cidade. À frente da casa estavam plantados alguns calafates que, a um mês de distância do Verão austral, já tinham substituído as suas típicas flores amarelo-vivo por bagas arroxeadas. O calafate (Berberis microphylla) é um arbusto espinhoso endémico da Patagónia, cujo fruto comestível é aproveitado desde a pré-história como alimento, pelo seu grande valor nutritivo, e também usado para fins medicinais. Sabe-se actualmente que tem uma das mais altas actividades químicas antioxidantes presentes em frutos comestíveis do planeta, sendo considerado um superalimento. As flores são amarelas, mas as bagas são de um azul quase negro, parecidas com os mirtilos. Esta foi a única oportunidade que tive de as ver, ainda verdes, mas já as tinha provado em forma de doce, por sinal delicioso.

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De tão popular que é, existem muitas lendas associadas ao calafate. Mas a mais promissora é a que diz que quem come este fruto, garante o seu regresso à Patagónia. Parece-me um bom presságio.

 

Parte 1 da viagem

 

Informações práticas sobre como viajar em autocarro de forma independente na Patagónia estão neste post → De autocarro na Patagónia

 

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