Jerte, o vale das cerejeiras em flor
A Primavera chegou e há que celebrá-la condignamente. A minha sugestão? Ir ver as cerejeiras em flor no Vale do Jerte. Estive lá neste fim-de-semana e vou contar-vos tudo. Mas apressem-se, porque a floração das cerejeiras dura pouco tempo.
As cerejeiras são árvores muito especiais, que precisam de frio constante durante períodos longos (800 a 1000 horas) para desenvolverem os seus frutos de maneira satisfatória. Esta particularidade faz com que o seu cultivo em grande escala apenas seja possível em zonas muito circunscritas, como é por exemplo o caso do Fundão, no nosso país, e do Vale do Jerte, na Extremadura espanhola. Nesta região de apenas 373 km2 existem actualmente mais de milhão e meio de cerejeiras (os nossos vizinhos não brincam e fazem tudo em grande), razão pela qual muita da cereja que comemos em Portugal vem de lá. Têm inclusivamente um tipo específico de cereja – a picota – que apenas é cultivado no Vale do Jerte e na vizinha zona de la Vera.
A floração das cerejeiras tem lugar na Primavera, durante um período curto e variável habitualmente entre meados de Março e inícios de Abril, consoante o Inverno tenha sido mais ou menos rigoroso. Dura apenas cerca de umas duas semanas, e no Vale do Jerte ocorre progressivamente das zonas mais baixas para as mais altas. Para celebrar a ocasião organiza-se desde os anos setenta a Fiesta del Cerezo en Flor, uma celebração popular que em 2010 passou a ser considerada Festa de Interesse Turístico Nacional. Os eventos culturais e gastronómicos distribuem-se pelas várias localidades do vale e dividem-se em três fases, coincidentes com as fases da própria floração: despertar do vale (que este ano se organiza de 16 a 28 de Março), cerejeiras em flor (de 29 de Março a 3 de Abril), e chuva de pétalas (de 8 de Abril a 3 de Maio).
São dois os percursos aconselhados para percorrer o vale e as povoações circundantes, de modo a podermos observar a floração das cerejeiras em vários ambientes diferentes e conhecer os pueblos da região, cada um com as suas particularidades. A rota linear vai de Navaconcejo a Puerto de Tornavacas pela estrada que se estende ao longo do vale (cerca de 30 km), passando por Cabezuela del Valle, Jerte e Tornavacas. A rota circular pela serra leva-nos às aldeias de Valdastillas, Piornal, Barrado, Cabrero, Casas del Castañar, El Torno e Rebollar, num percurso de cerca de 50 km. O ideal é percorrer as duas rotas, pois cada uma oferece perspectivas bem diferentes do vale e da floração.
Mas há bastante mais para ver no Vale do Jerte além das cerejeiras, e deixo-vos aqui algumas sugestões.
Mirador de la Memoria (El Torno)
A melhor maneira de começar o passeio é, quanto a mim, por este miradouro. Na estrada CCV-51, um pouco antes de chegar a El Torno, foi instalada em 2009 uma obra escultórica de Francisco Cedenilla dedicada aos esquecidos da Guerra Civil de Espanha e do período da ditadura. São quatro figuras humanas, em tamanho natural e colocadas sobre pedras de granito, que nos surpreendem depois de uma curva no caminho. Se repararmos bem, algumas mostram impactos de balas – parece que uns dias depois da inauguração alguém resolveu dar um toque de realidade ao conjunto e decidiu usá-las para tiro ao alvo, e o escultor achou por bem deixá-las assim como forma de melhor exprimir a ideia da sua obra.
A vista que daqui se tem sobre grande parte do vale é verdadeiramente soberba, e essa é a razão principal para eu sugerir que comecem o percurso por aqui.
Rebollar
É o pueblo mais pequeno da região e à primeira vista parece não ter nada de muito especial. Há que entrar na rua secundária que passa pela igreja e procurar a labiríntica Calle El Canchal onde existem, meio escondidas, casas muito antigas, construídas sobre grandes pedras de granito. Algumas são feitas de adobe e têm as estruturas de madeira à vista, segundo a arquitectura tradicional da região.
Navaconcejo
Atravessada pela estrada N-110, é a maior localidade do vale, e o que ganhou em tamanho perdeu em graça – em grande parte também pelo constante fluxo de trânsito que passa na estrada. Mas é aqui que vemos o rio Jerte mais de perto, e vale a pena percorrer a zona “balnear” de El Cristo e eventualmente parar numa das esplanadas para comer ou tomar uma bebida.
Los Pilones
Dois quilómetros depois de Cabezuela del Valle (para quem vem de Navaconcejo), uma estrada à direita leva-nos até ao Centro de Interpretação da Reserva Natural da Garganta de los Infiernos. Daí é possível percorrer, pelo trilho pedestre ou pela estrada florestal, os cerca de três quilómetros que distam do local que é conhecido por Los Pilones e considerado como uma das zonas de praia fluvial natural mais bonitas de Espanha. Aqui a força da água escavou no granito várias bacias, ou “marmitas de gigante”, formações caprichosas de cor quase branca distribuídas por vários níveis acompanhando a inclinação da encosta, que a água vai enchendo conforme passa. Na vossa visita ao Vale do Jerte é obrigatório reservarem umas horinhas para conhecerem esta maravilha da natureza.
Tornavacas
Neste pueblo pequeno e imbricado nasce o rio que dá nome ao vale, aqui ainda apenas um ribeiro que desce em socalcos passando por baixo de pontes de pedra e entre filas de casas tradicionais, altas e profundas, com varandas só ligeiramente proeminentes, muitas delas com as estruturas de madeira à mostra. Várias casas, todas elas centenárias, ostentam sobre a porta o ano da sua (suposta) construção, e há flores coloridas em vasos ainda mais coloridos decorando os parapeitos das janelas.
Puerto de Tornavacas
Fica no extremo nordeste do vale e marca a fronteira entre as províncias de Cáceres e Ávila. Situado 1275 metros acima do nível do mar, é um miradouro privilegiado sobre o vale.
Valdastillas
A estrada que sobe desde a N-110 até este pueblo desdobra-se em curvas e contracurvas entre cerejais, e há muitas oportunidades para parar e passear entre as árvores, e também para observar o vale de mais uma perspectiva.
Cascada del Caozo
A três quilómetros e meio de Valdastillas há mais um local imperdível. Basta seguir as tabuletas que indicam o caminho para a cascata, estacionar o carro na berma da estrada e depois subir pelo caminho de terra batida e pedras junto ao curso de água. De repente, ao contornarmos uma rocha, é a surpresa: do alto de 30 metros, as águas descem furiosamente por uma parede de granito abaixo, formando uma enorme e impressionante cascata – tão impressionante que me fez sentir absolutamente minúscula por comparação. Há uma ponte metálica que permite observá-la quase de frente, e ali acentua-se mais ainda o sentimento de pequenez.
Piornal
Mais moderno e bem conservado do que a maioria dos outros pueblos do vale, tem duas particularidades que o distinguem: é a localidade mais alta da Extremadura (1175 metros) e algumas das casas que rodeiam a sua Plaza de España têm belos murais pintados nas fachadas.
Informações úteis
- A flor das cerejeiras do Vale do Jerte é branca, por isso não esperem encontrar a paisagem pintada de rosa como é habitual ver nas fotografias da floração das cerejeiras no Japão. O efeito é muito menos impressionante, portanto há que não ter expectativas demasiado altas, para evitar decepções. Mesmo assim, vale muito a pena visitar a região nesta época.
- Sendo obviamente uma altura de grande afluência turística, e apesar de haver muitas propostas de alojamento local, poderá não ser fácil encontrar onde pernoitar nas localidades do vale. Uma boa opção é dormir em Plasencia, que fica a poucos quilómetros e tem maior oferta. Além disso, apesar de Plasencia não ser particularmente bonita quando vista de fora, acaba por se revelar uma cidade simpática e bem arrumada, com um centro histórico bonito e interessante e, à boa maneira espanhola, muita animação ao cair da noite. Para fazer render o fim-de-semana, optámos por ir na sexta-feira à noite – são cerca de 390 km (tanto de Lisboa como do Porto), grande parte em via rápida. Tivemos por isso de escolher um hotel com recepção aberta 24 horas, uma vez que em Espanha é uma hora mais tarde e já iríamos chegar depois da meia-noite. Ficámos no Hotel Ciudad de Plasencia, um três estrelas com um preço razoável e pequeno-almoço incluído. O quarto era bastante bom, com uma grande casa-de-banho. A localização não é particularmente bonita (fica à entrada da cidade, em plena zona industrial) mas tem a vantagem de não haver problemas para estacionar. O pequeno-almoço é sofrível pelos nossos padrões (comparar a nossa comida com a espanhola acaba por ser injusto, porque eles ficam sempre a perder…), mas razoável pelos padrões de Espanha. A desvantagem maior acabou por ser a fraca insonorização dos quartos, que deixa passar todos os sons do corredor e dos quartos adjacentes – e já se sabe que os espanhóis são um bocadinho barulhentos…
- A organização da Festa disponibiliza autocarros gratuitos que percorrem várias rotas ligando todos os pueblos do vale, pelo que é possível fazer a visita completa sem usar o carro. Nos dias 30 de Março e 6 de Abril estes autocarros serão totalmente gratuitos e não será necessário fazer reserva prévia. Podem encontrar os horários, bem como todo o extenso programa de festas, aqui.
- Para quem quer visitar a Garganta de los Infiernos e vai de carro, existe um grande parque de estacionamento junto à N-110, bem como lugares na berma do caminho que se percorre até chegar ao Centro de Interpretação. No entanto, todo este estacionamento é pago entre as 9h e as 21h, e o valor é fixo independentemente da hora a que se chega: 5€. Claro que há sempre a hipótese de deixar o carro mais longe (em Cabezuela, por exemplo, se houver lugar), mas depois há que fazer esses quilómetros extra a pé.
- O percurso até Los Pilones é praticamente todo a subir e demora cerca de 1 hora a ser percorrido. Nós subimos pelo trilho pedestre e descemos pela estrada florestal (que é ligeiramente mais extensa), mas na minha opinião será menos cansativo fazer o inverso.
Links
http://www.turismovalledeljerte.com/cerezo-en-flor
https://primaveraycerezoenflor.blogspot.com/2017/02/primavera-y-cerezo-en-flor-2017-valle.html
http://primaveraycerezoenflor.blogspot.com/2014/03/recomendaciones-para-disfrutar-la.html
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