O que é que Veneza tem?
Toda a gente conhece Veneza. Claro que não estou a referir-me a “conhecer” literalmente. Mas já toda a gente sabe que Veneza existe e fica na Itália, ouviu falar de Veneza, viu fotografias de Veneza. Não é propriamente uma jóia desconhecida, e a prová-lo está o facto de no Verão passado a cidade ter recebido entre 60 e 70 mil visitantes… por dia! E agora comparem: o número de residentes do centro histórico de Veneza ronda os 55 mil – e está a decrescer de forma acelerada, em grande parte por culpa do cada vez mais elevado custo de vida, muito inflacionado pelo turismo.
Esta apetência por Veneza traz grandes problemas à cidade e a quem lá vive, a tal ponto que os habitantes têm vindo a revoltar-se ciclicamente e a protestar de variadas formas contra este excesso de turismo. Este ano foram aprovadas algumas medidas que visam controlar o número de visitantes que a cidade recebe e as atitudes frequentemente pouco cívicas de muitos deles, mas estas medidas (como por exemplo evitar o crescimento da oferta de alojamentos, aumentar o controlo policial nas ruas ou tentar “desviar” os visitantes dos pontos mais concorridos da cidade para outros menos populares) são, quanto a mim, demasiado suaves para a dimensão preocupante que o problema já atingiu. E não me parece estarem a surtir grande efeito, pelo menos a julgar pelas multidões de turistas que por lá circulavam na minha recente visita (onde me incluo, obviamente – mea culpa, mea culpa…). Porque é que as autoridades municipais não adoptam medidas mais duras com vista a uma efectiva restrição turística? Parte da resposta (se não toda) talvez esteja no facto de a indústria do turismo estar desde há uns anos a render à cidade qualquer coisa como 3 mil milhões de euros anuais.
Mas afinal, o que é que Veneza tem que a torna assim tão “apetitosa” para tanta gente?
Pois tem muita coisa, e sobre a maioria já vocês certamente ouviram falar. Tem a celebérrima Praça de São Marcos, com a não menos célebre Basílica, e os vizinhos Campanile (que em tempos longínquos foi um farol e agora é uma torre sineira), Palácio Ducal e Torre do Relógio – além das esplanadas, dos pombos e das enormes filas de gente para visitar tudo isto. Tem o Canal Grande, a artéria principal da cidade, freneticamente cruzado de dia e de noite por vaporettos e outros barcos a motor, gôndolas às centenas, e até mesmo por kayaks. Tem a ponte do Rialto, uma das poucas que atravessa o Canal Grande e sem dúvida a mais conhecida – e onde tirar uma fotografia, selfie ou não, é obrigatório para todo o turista, razão pela qual é praticamente impossível não ficar nessa fotografia com pelo menos mais um ou dois desconhecidos. Tem as gôndolas, e os seus gondoleiros de t-shirt às riscas.
Só isto? Bom, isto já por si só não seria pouco. E isto já todos conhecem, quanto mais não seja pelos milhões de fotografias espalhadas pelos livros, sites na net, calendários, posters e tudo o mais, e amplamente divulgado em reportagens televisivas.
Mas Veneza tem mais. E é desse mais, desses pormenores que estão menos divulgados mas são para mim o melhor de Veneza, que quero agora falar.
Os pequenos canais
Embora para nós sejam genericamente conhecidos como canais, os cursos de água que separam as dezenas de ilhotas de Veneza são, na sua maioria e na linguagem local, rios – canais naturais (os sinuosos) ou artificiais (completamente rectilíneos) ladeados de edifícios ou de ruas, formando uma rede capilar que une toda a cidade e permite a circulação de pessoas e mercadorias de forma rápida por via aquática. São perto de duas centenas, e aos mais pequenos é dado o nome de rielo.
Estes canais menores, muito mais tranquilos do que os canais principais, são uma verdadeira delícia. É neles que ficamos a conhecer as várias tonalidades do verde da laguna veneziana – a água é turva e lodosa, de um verde intenso mas baço, que tinge os canais mais sombrios de um tom escuro, misterioso e único. Vistos da janela alta de um edifício, a partir de uma ponte ou a bordo de uma gôndola, são sempre fascinantes e transmitem uma sensação de paz.
As janelas dos palazzi
A arquitectura de Veneza é absolutamente encantadora e substancialmente diferente da de outras cidades italianas. Há várias razões que explicam estas diferenças: foi uma república independente durante muitos séculos, e um entreposto comercial que fazia a ligação entre o Leste e a Europa; na altura em que Veneza estava no seu apogeu, o gótico era a tendência arquitectónica em voga, com as suas assimetrias, a influência oriental e o gosto pela luz; e o uso do vidro não constituía um problema, em parte porque a cidade não era difícil de defender devido à sua localização na laguna, e também porque na ilha de Murano existiu desde muto cedo uma enorme indústria vidreira. Por isso, uma das características mais marcantes da arquitectura veneziana é a beleza das janelas que se destacam nas elegantes fachadas dos seus inúmeros palazzi.
As flores coloridas
Em Veneza, o verde profundo da água e os tons pálidos e queimados das fachadas dos edifícios são a paleta de fundo ideal para as flores coloridas que se vêem por todo o lado. Qualquer janela ou varanda, qualquer pátio, qualquer Campo (praça) é uma tela em potência, as mais das vezes pintalgada com as cores quentes dos loendros, buganvílias, sardinheiras e inúmeras outras flores que despontam em todo o lado e enchem de alegria a cidade.
As igrejas
Há 139 igrejas em Veneza, 88 das quais estão em pleno funcionamento. Coisa pouca… Muitas delas foram fundadas por ricos mercadores desejosos de ostentarem as suas fortunas, outras pelas próprias comunidades de cada ilha, como meio para fomentar a aproximação dos seus habitantes. Em muitas delas, as lajes que recobrem o chão contêm inscrições que proporcionam informação valiosa sobre pedaços da história veneziana, e várias abrigam os túmulos de Doges ou outros membros abastados da cidade.
A arte
Em ano de Biennale, Veneza deita arte por todos os poros. Há inúmeras manifestações e exposições à margem do grande acontecimento. Muitas surpreendem-nos ao virar de uma esquina, num passeio pelos canais, numa montra, num jardim, na varanda de um hotel. Palácios e igrejas são lugares igualmente disputados pelas mostras vindas de países de todo o mundo, representando todos os tipos de correntes artísticas, nas suas mais variadas formas. Para quem como eu adora arte – mesmo que algumas das obras expostas não vão ao encontro do meu gosto – Veneza é uma festa que alimenta a alma e enriquece o espírito.
As torres inclinadas
Pensam que é só Pisa que tem uma torre inclinada? Nada disso. Em Veneza há várias, todas agregadas a igrejas, e embora nalgumas a inclinação seja algo subtil, outras há em que é impossível essa característica passar-nos despercebida.
E é sobretudo isto que me encanta em Veneza, e faz com que todos os incómodos do excesso de pessoas e dos preços a puxar para o exorbitante não sejam assim tão importantes...
Há por aí mais alguém que pense como eu?
Mais sobre Veneza: Em Veneza, sem carteira (uma crónica de viagem)
(Artigo publicado na Revista Inominável #9)
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