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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Sex | 07.07.17

No Corvo

 

Estive no Corvo, aquela que é a ilha açoriana mais pequena e situada mais longe de Portugal continental. Passei lá não apenas umas horas, mas alguns dias. E valeu a pena? – perguntam vocês. Valeu sim, sem sombra de dúvida.

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A maioria das pessoas que visitam o Corvo fazem-no apenas por meia dúzia de horas. Apanham a lancha que sai de manhã das Flores e regressam pela tardinha. Ou vão em excursão organizada, num barco particular alugado para o efeito. Afinal, uma ilha com 17 km2 e com uma única povoação habitada por pouco mais de 400 almas parece não ter muito para ver ou fazer; e o próprio Presidente da nossa República, na sua recente visita a várias ilhas açorianas, apenas se demorou por lá umas quantas horas…

 

Mas esse não foi o meu caso. Há ocasiões em que a falta de tempo me obriga a ver certos locais “a correr”, mas a minha preferência vai para as viagens feitas de forma mais calma e relaxada, para poder apreciar o máximo possível de cada lugar e – quem sabe? – até mesmo fazer descobertas interessantes à margem do que está anunciado nos roteiros turísticos.

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Ao Corvo chega-se de avião ou de barco. Se tiverem tendência para enjoar, aconselho a primeira opção, pois a probabilidade maior é que a viagem de barco seja algo agitada. Em situação normal, a viagem entre Santa Cruz das Flores e a Vila do Corvo faz-se em 40-45 minutos na lancha Ariel (que apenas transporta uma dúzia de passageiros de cada vez, por isso assegurem-se de que reservam bilhete com antecedência), mas se a ondulação estiver forte o tempo aumenta exponencialmente. O recorde situa-se neste momento em 3 horas e foi estabelecido numa ida do Corvo para as Flores algures neste Inverno (a viagem neste sentido é sempre mais complicada do que no sentido Flores-Corvo). A vantagem do barco é que com um pouco de sorte, normalmente é possível avistar alguns golfinhos Quanto ao avião – que na realidade é mais parecido com uma avioneta – demora apenas cinco minutos entre uma ilha e outra, mas é por vezes cancelado devido aos ventos fortes que impossibilitam a aterragem. Também há voos directos para o Corvo a partir da ilha do Faial, com uma duração de cerca de 45 minutos, e a partir de São Miguel com paragem também no Faial.

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Mesmo fazendo o trabalho de casa, há sempre pormenores que nos escapam. Diz-se que nos Açores cada dia tem as quatro estações do ano, mas na verdade as ilhas açorianas são bastante diferentes umas das outras, mesmo quando geograficamente próximas. No Corvo, o mês de Junho tem a particularidade de ser o mês mais húmido e mais propenso a nevoeiros. Soubesse eu isso e talvez não tivesse escolhido precisamente esse mês para lá ir… Valeu-me a minha proverbial sorte quando viajo e também o facto de lá ter estado mais do que um dia: chuva foi caso raro durante a minha estadia e o nevoeiro deu tréguas exactamente quando foi preciso. Enfim, quase… e disso já falarei mais adiante.

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A oferta de alojamento é, como tudo na ilha, bastante reduzida – há que reservar com antecedência. Lugares para comer também há poucos, pão fresco só se consegue comprar se encomendado de véspera. Transportes públicos não existem; há algumas pessoas que fazem serviço de transporte particular, necessário quando se quer conhecer o resto da ilha, embora por vezes estejam bastante ocupadas com os visitantes que lá vão em excursão organizada. E a vida nocturna resume-se a algumas actividades organizadas no BBC (Bar dos Bombeiros do Corvo), como uma transmissão de futebol em ecrã gigante ou uma noite de karaoke. Os corvinos não são propriamente noctívagos.

 

Mas tudo o que há a menos na ilha é largamente compensado pela simpatia e boa vontade das pessoas que lá vivem. Desde a Vera, dona do alojamento onde ficámos e que foi absolutamente inexcedível, até ao Sr. Fernando Ferreira, Director do Parque Natural do Corvo, que esteve à conversa connosco durante horas e nos guiou na visita à atafona (depois explico o que é), além de ter tido a paciência de responder a todas as perguntas que fizemos, passando pelas várias pessoas que nos cumprimentavam nas ruas, que nos atenderam, que nos explicaram tudo aquilo que quisemos saber, afabilidade é coisa que não falta na ilha do Corvo.

 

A povoação

 

Embora a Vila do Corvo seja teoricamente toda a ilha (administrativamente é considerada um município, o único em Portugal a não possuir qualquer freguesia), na realidade a povoação é apenas um pequeno conjunto urbano edificado numa fajã no extremo sul, junto ao mar.

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Na sua maioria as casas são simples e algumas mantêm à vista as paredes em pedra negra, embora muitas destas estejam abandonadas ou semi-degradadas, servindo essencialmente de arrecadação. Com excepção das vias principais, as ruas são estreitinhas e sinuosas, calcetadas com seixos rolados e lajes polidas (a estas ruas dão o nome de “canadas”), e o ambiente geral é tranquilo, puxando a uma indolência que nem a passagem ruidosa de um carro ou uma motocicleta conseguem quebrar.

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O casario da povoação está classificado como conjunto de interesse público. Mesmo no centro, na Canada do Graciosa, encontramos o Centro de Interpretação Ambiental e Cultural do Corvo (CIACC), instalado numa casa antiga recuperada, e ao lado a atafona de que já vos falei.

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E o que é então uma atafona? Este edifício de nome esquisito é – ou era, melhor dizendo, pois hoje já não existe nenhuma em funcionamento – um moinho operado por bois. Até ao aparecimento das máquinas, as atafonas eram no Corvo um dos meios principais de moagem para obter farinha, e chegaram a ser em número de seis. Nenhuma sobreviveu intacta até aos nossos dias, e a que actualmente se pode visitar foi reconstruída na quase totalidade a partir das paredes parcialmente remanescentes. O equipamento que abriga no interior é uma reconstituição tão fiel quanto possível obtida a partir de exemplares conhecidos de outros locais e da memória de alguns anciãos da localidade, pois do original nada se encontrou a não ser umas pedras de mó enterradas no solo, e que hoje se podem observar encostadas às paredes. Na porta da atafona foi colocada uma fechadura de madeira tradicional do Corvo, cuja concepção é muitíssimo interessante e engenhosa.

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A festa do Espírito Santo

 

A minha experiência em terras corvinas teve mais um bónus: coincidiu com a festa do Espírito Santo, que aqui se realiza no domingo de Pentecostes e é a festa popular religiosa mais importante da ilha, com rituais que se mantêm substancialmente inalterados desde há mais de 50 anos. O cortejo saiu de manhã da Casa do Espírito Santo, no Largo do Outeiro, e dirigiu-se para a Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Milagres, cujo campanário branco e cinza escuro se destaca acima do casario. Na igreja foi celebrada missa solene, complementada pela actuação da Filarmónica Lira Corvense, uma das mais activas e acarinhadas instituições da ilha. Uma das características especiais desta festa são as suas três rainhas – uma grande, uma média, e uma pequena, representadas por uma jovem adulta, uma adolescente e uma criança, respectivamente – que foram coroadas no final da missa e saíram depois em cortejo real ostentando os seus mantos e levando nas mãos as coroas, acompanhadas pelas suas damas e pelo padre, a irmandade, a filarmónica, bombeiros, escuteiros e todos as outras pessoas que nele quiseram participar.

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O cortejo passeou-se pelas ruas até chegar à escola Mouzinho da Silveira, onde estavam montadas no ginásio enormes mesas corridas para aí serem gratuitamente servidas a toda a gente – irmãos, restante população e visitantes, eu incluída – as tradicionais sopas do Espírito Santo: um caldo ligeiro de carne cozida, massa sovada (um pão doce feito com mistura de farinhas), carne assada com batatas e arroz doce.

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Os moinhos

 

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Entre o aeródromo – uma tira larga e recta que ocupa toda a ponta sul da ilha – e a costa recortada e rochosa, no topo de uma arriba de onde se vê todo o canal que separa o Corvo das Flores, destacam-se três moinhos de vento típicos, devidamente recuperados, quais sentinelas da memória de uma actividade já extinta na ilha. Datam do séc. XIX e em tempos foram sete; agora subsistem estes três belíssimos exemplares, um com pedra à vista e dois pintados de branco, erguidos numa localização privilegiada (obviamente muito ventosa…) e de visita obrigatória.

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O trilho junto à costa e a praia

 

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Existem no Corvo dois trilhos pedestres referenciados e um deles, o Trilho da Cara do Índio (PR1COR) tem a sua parte final junto à costa sul, passando pelo porto velho, depois pelos moinhos, e finalmente acompanhando a irregular orla rochosa, onde o mar fica retido em pequenas piscinas naturais. É um passeio fácil, tranquilo e muito bonito, com as formas negras das rochas vulcânicas a contrastarem com o cinzento metálico da água e tendo o piar dos pássaros como banda sonora.

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O trilho termina na praia da Areia, um pequeno e escuro areal que é a principal área balnear da ilha. Preocupante mesmo é a presença de milhares de caravelas portuguesas, cnidários cujos tentáculos são altamente tóxicos, na sua maioria já mortas, acumuladas nalguns recantos das rochas e espalhadas pela praia. Soube depois que estas invasões sucedem com cada vez mais frequência, trazidas por certas marés, e que o seu aumento se supõe estar ligado ao declínio da população das tartarugas, de quem são o alimento principal.

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O caldeirão

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A ilha do Corvo está classificada pela Unesco como Reserva Mundial da Biosfera, sobretudo pela sua diversidade de ecossistemas e riqueza da flora terreste endémica. Mas o destaque maior vai para o Caldeirão, uma grande caldeira vulcânica, fechada, no fundo da qual se formaram duas lagoas (que começaram há alguns anos a perder água devido à erosão natural dos flancos do vulcão). Com um perímetro de 2,3 quilómetros e uma profundidade de 320 metros, também aqui existe um trilho pedestre devidamente marcado que eu tive a sorte de conseguir fazer, o PRC2COR. E digo sorte porque enquanto estive na ilha o tempo esteve sempre muito instável e com nevoeiros quase constantes – e com nevoeiro é impossível fazer o trilho. Mas naquela manhã previa-se uma melhoria no tempo, e a Vera tinha arranjado alguém para nos levar lá acima de carro, pois embora sejam apenas 6 km da vila até ao miradouro, o caminho é sempre a subir e eu acabaria por chegar lá já muito cansada. Quando chegámos ainda havia alguns bancos de nevoeiro, que o vento se encarregou de dissipar rapidamente para nos oferecer uma das paisagens mais fabulosas que já vi até hoje. E acreditem que ao vivo o cenário é ainda melhor do que nas fotografias. O percurso tem cerca de 5 km: desce-se até ao fundo e contornam-se as lagoas, voltando a subir pelo mesmo caminho. Não sendo difícil, é no entanto traiçoeiro. Há grandes áreas cobertas de musgão, por baixo do qual o solo é predominantemente pantanoso, e temos de ver muito bem onde pomos os pés – mesmo assim, não me livrei de ficar enterrada na lama até aos joelhos. Mas valeu a pena, porque é um percurso absolutamente maravilhoso, no meio de um silêncio profundo só quebrado pelo mugir das inúmeras vacas que por ali andam a pastar e pelo barulho característico de algum cagarro.

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Quase no final, algumas centenas de metros antes de começarmos a subir de regresso ao miradouro, o nevoeiro voltou a instalar-se de repente, sólido como uma parede, a ponto de nalguns sítios não conseguirmos ver as estacas de marcação do percurso. Valeu-nos o sentido de orientação e o facto de já estarmos quase a terminar o percurso no fundo da cratera – o nevoeiro não voltou a dissipar-se e transformou-se numa espécie de chuva miudinha que nos acompanhou no caminho de regresso a pé até à vila.

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ONDE FIQUEI

 

Joe & Vera’s Place

Caminho da Várzea s/n, 9980-034 Corvo, Portugal

Telem: +351 914112097

Email: vera.camara@sapo.pt

http://www.joeverasplace.pt/

 

A Vera foi a melhor das anfitriãs. Foi buscar-nos e levar-nos ao barco, deu-nos todas as informações necessárias e fez tudo para que a nossa estadia fosse o mais agradável possível – incluindo lavar e secar a minha roupa toda enlameada do passeio no Caldeirão. Os quartos são óptimos e temos uma cozinha à nossa disposição. Vão passar a disponibilizar também, a partir deste Verão, uma outra casa mesmo ao lado da igreja, com vários quartos.

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ONDE COMI

 

BBC - Bar dos Bombeiros do Corvo

Avenida Nova, Corvo 9980-039, Portugal

Tel.: +351 292596147

Bifanas, hambúrgueres, francesinhas e outras comidas leves; funciona como bar.

 

Restaurante Caldeirão

Caminho dos Moinhos

Tel.: +351 292 596 322

Recomendo o peixe grelhado, espécies típicas dos Açores, que é sempre fresco.

  

Restaurante Traineira

Rua da Matriz

Tel.: +351 292 596 207

Sopas e sanduíches num ambiente simples.

 

Mais informações:

http://roteirodesazores.com/festa/imperio-do-divino-espirito-santo-da-ilha-do-corvo/

http://www.corvovirtual.pt/centro-de-interpretacao-ambiental-e-cultural-do-corvo

 

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Na ilha das Flores - parte III

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Na ilha das Flores - parte VI

 

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