Na ilha das Flores - parte II
Não é fácil pôr em palavras o deslumbramento que certos lugares têm o dom de nos causar. Temos tendência a ficar mudos de espanto, ou então a soltar apenas umas exclamações básicas – o cérebro está tão ocupado a tentar processar tudo aquilo que os olhos vêem, que não lhe sobra energia para o verbo. Isto foi essencialmente o que se passou comigo quando visitei, na ilha das Flores, um dos lugares mais incríveis onde já estive até hoje.
Poço da Ribeira do Ferreiro
Para o dono da Barraca q’Abana este é o lugar mais bonito de toda a ilha, e eu tendo a concordar – mas mesmo o “aviso” prévio não nos prepara convenientemente para o encontro. O carro fica num mini estacionamento à beira da estrada, junto à ponte sobre a ribeira do Ferreiro, que já de si é motivo suficiente para parar: a ribeira forma ali uma ruidosa cascata, abundante em águas espumosas, o que é sempre uma atracção para mim, continental e alfacinha, e pouco habituada a encontrar água em borbotões ao virar de cada esquina.
A direcção para o Poço está bem assinalada e não há engano possível. Assegurem-se de que têm bastante bateria e memória disponível na câmara (ou no que quer que usem para fotografar e filmar) e sigam pelo caminho que desaparece num túnel de árvores, primeiro de terra barrida e erva, e depois pavimentado com grandes pedras escuras. A magia começa logo aí: o sol não rompe a densidade da floresta, que parece ter saído de uma daquelas lendas que envolvem duendes e assombros. Há musgo e fetos por todo o lado, árvores esquálidas inclinadas e misturadas como pauzinhos do Mikado, com um ar meio moribundo, e troncos caídos em leitos de folhas mortas contrastando com arbustos viçosos. Um riacho corre ao lado do caminho, contido entre pedras, galgando-as nalguns pontos, numa ânsia de querer extravasar os limites que lhe impõe a mão humana. Tudo o resto está imóvel e silencioso, só os nossos passos e os de outros (poucos) visitantes perturbam a quietude do ambiente.
O percurso é rápido, apenas meia dúzia de centenas de metros. No final, como que numa tentativa infrutífera de travar os que se atrevem a incomodar o local, o tronco de uma árvore enorme ali caída forma um arco por cima do caminho e esconde a lagoa da vista imediata de quem chega.
Depois… depois é abrir a boca de espanto perante o cenário. Uma falésia ampla e altíssima, de topos irregulares, totalmente coberta de vegetação e rasgada por muitas “fitinhas” brancas – são duas dezenas de quedas de água, umas mais abundantes, outras quase só um fiozinho, que se precipitam pela encosta para formarem uma lindíssima lagoa aos nossos pés, tranquila como um espelho. Beleza pura.
Lagoa das Patas é outro nome pelo qual o lugar também é conhecido (por vezes é também identificado como Poço da Alagoinha, mas esta denominação é incorrecta, pois na realidade corresponde a outro local). A justificar este “diminutivo”, ao longe passeava em modo zen um negrinha, ou zarro-negrinha, (aythya fuligula), um pato-mergulhador cuja espécie está actualmente considerada vulnerável e em declínio em Portugal. Em contraste flagrante, difícil de apanhar em condições numa fotografia, não pela distância mas porque voava sem parar a uma velocidade quase supersónica, um garajau esfomeado andava por ali em busca de peixe, lançando-se em voo picado para dentro de água sempre que lhe parecia ver comida.
É lugar-comum dizer que as fotografias não fazem jus à realidade, mas não posso pôr as coisas de outra maneira; e nada que eu acrescente vai servir para dar uma pálida ideia da maravilha que é o Poço da Ribeira do Ferreiro.
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