Na ilha das Flores - parte I
Já vos disse que sou uma pessoa cheia de sorte, não disse? A minha recente viagem aos Açores é mais uma confirmação. A preparação foi algo atribulada (alteração no horário de um voo que implicou a mudança de outro voo, a recorrente greve da Sata e o consequente cancelamento de uma estadia… aquelas pequenas chatices que sempre dispensamos) e o tempo pregou umas partidas de vez em quando, mas tudo se resolveu a contento e na hora certa, e acabou por ser uma viagem inesquecível. Lá diz o ditado: maus princípios, bons fins.
O meu primeiro contacto com as Flores não foi dos mais auspiciosos. Quando saímos do (pequeníssimo) aeroporto já caía uma chuva miudinha, daquelas que mal se sentem mas acabam por molhar, e o vento ameaçava ficar mais bravo. Somado a isto, e embora se situe quase junto ao mar, o aeroporto não fica propriamente numa zona deslumbrante, por isso a minha primeira impressão da ilha foi que era tudo muito cinzento…
Tínhamos supostamente várias horas para preencher até podermos apanhar o barco para o Corvo, eram duas da tarde e os estômagos clamavam por almoço. Indicaram-nos um restaurante ali perto, O Moleiro, e lá fomos nós arrastando as malas pela estrada sem vivalma, tocados a vento e esperando que a morrinha não se transformasse em chuva a sério.
Demos com o restaurante vazio e a cozinha já pronta a fechar. Mas se há coisa que os Açores têm em abundância é a simpatia e boa vontade das pessoas, e prontificaram-se a servir-nos qualquer dos pratos do dia. Escolhemos codornizes fritas, que estavam francamente boas.
Lá para o fim da refeição passámos a ser servidos pela Tânia, a dona do restaurante. Conversa puxa conversa, soube que íamos para o Corvo e disse-nos que devia chegar um barco por volta das três da tarde. Era uma viagem especial extra-horário para trazer um grupo de crianças que vinham disputar um campeonato escolar de voleibol durante o fim-de-semana, no qual o filho dela também ia participar. Ela própria é corvina, apesar de já viver há alguns anos nas Flores, e mantém com a sua ilha uma ligação tão forte quanto o mau tempo o permite – por vezes no Inverno passam-se semanas sem que seja possível qualquer voo entre as duas ilhas, e mesmo o barco nem sempre consegue fazer a travessia. Viver no meio do Atlântico não é pêra doce.
Apesar de a distância até ao porto ser curta, enfiou-nos e às nossas malas no carro e levou-nos lá, salvando-nos de uma molha. Ela e o marido iam receber os miúdos e os professores que os acompanhavam, e ajudar a descarregar mochilas e sacos-cama. A lancha Ariel chegou finalmente, cheia de crianças excitadas – e algumas delas também enjoadas. Apesar de termos os bilhetes com marcação para as seis da tarde, os tripulantes aceitaram levar-nos na sua viagem de regresso ao Corvo, poupando-nos assim a mais de duas horas de espera. A sorte continuava do nosso lado.
E quem é que estava novamente no porto quando regressámos a Santa Cruz das Flores, três dias depois? A Tânia, pois claro, e mais uma vez não nos deixou ir a pé até ao aeroporto para irmos buscar o carro alugado. Estou-lhe eternamente agradecida por ter cuidado de nós tão bem e com tanta simpatia, e claro que ficámos clientes fiéis: foi n’O Moleiro que comemos sempre que os nossos passeios na ilha nos fizeram passar em Santa Cruz.
Fajã Grande
Fica na costa ocidental da ilha aquela que para mim é a localidade mais bonita das Flores: a Fajã Grande. Foi aqui que ficámos alojados, e foi mesmo a melhor escolha, tanto pela qualidade do alojamento em si como pelo cenário que a envolve. É um lugar único! De um lado uma enorme falésia coberta de verde, do outro o mar bravio que se desfaz em espuma nas rochas negras e baixas que contornam todo aquele pequeno e muito recortado pedaço de costa.
Aqui, junto às piscinas naturais que se formam entre as rochas – e que uma plataforma irregular cimentada transforma em zona balnear quando o tempo bom convida – é o ponto mais ocidental da Europa onde podemos chegar a pé. E daqui vê-se o outro ponto mais ocidental do continente, o geográfico: o ilhéu Monchique, um simples rochedo basáltico com uns 30 metros de altura e a forma de uma vela latina, isolado no oceano, batido pelo vento e pelas ondas.
Apesar do nome, a Fajã Grande é uma aldeia pacata com pouco mais do que uma rua principal, meia dúzia de outras pequenas ruelas e uma estrada marginal junto à costa. Subimos por uns degraus de pedra meio toscos até ao Miradouro da Cruz.
A vista lá de cima é soberba: os telhados laranja alternam com os rectângulos verdes dos campos de pasto e cultivo, delimitados por muros de pedra. No meio das casas baixas destaca-se a Igreja de São José, branca e debruada a cinza-escuro, e o mar azul manchado de espuma branca completa a paisagem.
Na rua cruzamo-nos com mais estrangeiros do que portugueses, mas o ambiente é tranquilo. Ali não há enchentes de pessoas nem confusão. As casas são de traça simples, na sua maioria brancas, algumas ainda de pedra, outras pintadas de cores várias.
Ficam-me os olhos e o coração numa delas que parece desabitada e já tem alguns vestígios de degradação. É maior do que as outras e tem um estilo rebuscado, com uma espécie de torre e varandas de ferro forjado ou pedra. Não me importava nada se fosse minha, e é uma pena estar ali assim, com aquele aspecto de abandono e sem ninguém que a recupere. Apesar do isolamento da ilha e da típica instabilidade do clima nos Açores, acho que conseguiria viver e ser feliz aqui.
A Igreja de São José está aberta e podemos entrar à vontade. É pequena e simples, mas o seu interior está bem cuidado – madeiras envernizadas, retábulos dourados, arranjos de flores nos altares. O baptistério é muito bonito e fora do comum, com mosaicos antigos, móveis de madeira, a pia de mármore branco a destacar-se ao centro, iluminada pela luz coada através do cortinado leve que cobre a janela.
Merendário é o nome que aqui dão aos parques de merendas, e na Fajã Grande há dois. Um deles fica em frente às piscinas naturais, junto ao parque de campismo, e está bem apetrechado com grelhadores e lava-louças. Infelizmente, o tempo e o mar não convidavam a mergulhos nem piqueniques. Mas convidavam a matar a fome, e ali mesmo ao lado está a Barraca q’Abana, onde fazem umas bifanas de comer e chorar por mais – até eu, que evito comer carne, tive de me render a elas, devidamente complementadas depois com uma bela e absolutamente deliciosa fatia de bolo de coco (sou gulosa, confesso…).
E já que estou a falar de comida, por estes lados come-se realmente bem – ou não estivéssemos nós em Portugal. Na rua principal, o Jonah’s foi outro dos restaurantes onde comemos. É um restaurante pequeno, por isso convém passar por lá mais cedo para reservar e, já agora, para saber quais os pratos do dia e criar apetite. A comida é caseira, simples e saborosa, e a oferta depende do que encontram à venda, pois usam sobretudo produtos frescos. O meu conselho? Apostem no polvo. Foi o que eu escolhi, e estava uma maravilha!
Poço do Bacalhau
Para quem vai à Fajã Grande, é impossível passar despercebida: a cascata do Poço do Bacalhau vê-se ao longe, caindo pela falésia imponente do alto dos seus 90 metros. E como é bonita! O acesso faz-se por um caminho de pedra bem cuidado e protegido por uma vedação de troncos de madeira, passando por alguns moinhos de água em ruínas, até chegarmos à pequena lagoa natural formada pela água que escorre da parede rochosa. É possível tomar banho, mas o dia não estava suficientemente quente (pelo menos não para mim, que sou friorenta). Contentámo-nos em ficar por ali a apreciar o local, a tirar fotografias e a saltar sobre as pedras do ribeiro, com o ruído da água como fundo e o verde da vegetação endémica a rodear-nos. Aqui e acolá já se viam alguns tufos de hortênsias brancas ou azuis, apesar de ainda não ser a época alta da sua floração.
É no Poço do Bacalhau que termina (ou começa, para aqueles que gostam de “trepar”) um dos vários trilhos pedestres da ilha das Flores, o PR3FLO. Liga o planalto das lagoas à Fajã Grande, mas não é um trilho fácil, sobretudo quando o tempo está húmido.
Ponta da Fajã
Para os amantes de caminhadas, onde me incluo, percursos pedestres é coisa que não falta nas Flores. Por estes lados começa também o PR1FLO, que vai até Ponta Delgada, no norte da ilha. Longo, difícil e não aconselhado a quem tiver vertigens, ainda assim vale a pena percorrê-lo durante alguns quilómetros a partir da Fajã Grande, pela beleza da paisagem. Passamos pela Ponta da Fajã, duas dúzias de casas maioritariamente brancas e uma igreja destacando-se nos campos de pasto que se estendem até ao mar – e ver vacas enquadradas num fundo marinho é algo a que o meu cérebro não está de maneira nenhuma habituado.
Depois começamos a subir pelo trilho que bordeja a falésia, e aí as paragens começam a ser mais frequentes: porque a subida é dura, com pontos escorregadios e lamacentos, mas sobretudo porque a paisagem chama pelo nosso olhar, o azul estendendo-se até ao infinito, o ilhéu Monchique agora mais perto; para sul o branco e verde da bonita Ponta da Fajã e o recorte escuro da costa delineado pela espuma da rebentação, e fico sem saber se me falta a respiração por causa de tanto subir, ou por estar encantada com o que vejo.
Sim, definitivamente, se vivesse aqui seria feliz.
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