Melgaço, o Minho do meu coração
Foi no Minho que tive durante bastantes anos uma casita de férias, numa aldeia que nem vinha no mapa, a um escasso quilómetro do troço da N101 entre Arcos de Valdevez e Monção – tão perto, e ainda assim suficientemente longe para já pertencer ao Portugal profundo. Aparte uns passeios bucólicos e a leitura (e as vindimas, quando era altura delas), nunca havia muito que nós, citadinos até ao tutano, quiséssemos ou gostássemos de fazer, por isso usávamos a casa sobretudo para dormir e durante o dia partíamos de carro à descoberta das redondezas. Foi assim que acabei por conhecer praticamente toda a região e pude voltar ao longo dos anos uma e outra vez aos lugares que me eram mais queridos.
O meu primeiro encontro com este Minho aconteceu quando tinha acabado de casar. Da região já conhecia Braga, Guimarães e Viana do Castelo, mas são cidades, e por muito bonitas que sejam, não é nelas que descobrimos o melhor que o Minho tem: o verde avassalador que nos entra pelas pupilas, a água que brota da terra e dos penedos, escorrendo pelos regueiros e pelas bermas da estrada, o cheiro inesquecível da terra e das folhas mortas, da seiva dos pinheiros, da palha dos currais, o tinir do sino que marca as horas no campanário da igreja, dia e noite, e o mugido das vacas galegas que passam a caminho do bebedouro ou do pasto. É disto – e de muitas outras maravilhas – que é feito o meu Minho, aquele que conheci naquela altura e que, com o passar dos anos, se foi polindo e modernizando, piorando nalgumas coisas e melhorando em muitas mais, mas sem perder o seu carácter.
Estávamos no Outono, que é provavelmente a estação do ano mais bonita para viajar. É verdade que a Primavera tem a garridice das flores, mas as cores do Outono encantam-me. Numa tarde fria mas sem chuva, o meu recém-marido decidiu levar-me a conhecer Melgaço, e a primeira paragem foi no Parque das Termas do Peso, uns três quilómetros antes da vila. Passámos os portões, e foi amor à primeira vista. O Parque tem centenas de árvores de grande porte, plantadas há cerca de um século segundo plano do arquitecto paisagista Jacinto de Matos, que concebeu também vários outros parques e jardins em todo o país. Há plátanos, carvalhos, tílias e faias, caducifólias que começam no Outono a largar a sua folhagem, e a alameda central que conduz à Ribeira do Peso estava quase completamente coberta de folhas castanhas e amarelas de recortes variados. Não se via vivalma, tínhamos o lugar todo para nós e os únicos ruídos eram os das folhas a quebrarem sob os nossos pés, o piar de um ou outro pássaro, e o gorgolejar da água que salta para o ribeiro.
Ao fundo, o edifício das Termas, baixo e comprido, foi mais um motivo para me encantar. Em estilo Arte Nova – o meu preferido – sóbrio nas suas linhas com ângulos curvos, a fantasia típica desta corrente estilística fica por conta dos ferros forjados, trabalhados com formas caprichosas, e dos vidros coloridos, que aligeiram a aparência dos enormes portões e das janelas altas rasgadas nas paredes. O interior do pavilhão da fonte principal é um cenário de filme, um espaço amplo dominado pelo chão de mosaicos quadrados em preto e branco, com gradeamentos de metal trabalhado em volutas, pintado de verde-esmeralda suave, e candeeiros também de ferro com globos brancos. A luminosidade filtrada pelos vidros das janelas e da clarabóia dá-lhe um ambiente glauco, bem apropriado para quem ali vai tratar-se pela água.
Tanto o parque como as termas estavam meio ao abandono quando os conheci. O declínio tinha começado pelos anos 50 e continuou até há cerca de uma década, quando foram estabelecidos um plano e uma parceria público-privada para a sua recuperação. Os efeitos deste plano já se notavam bem quando lá voltei mais recentemente, depois de ter estado bastantes anos ausente da região. Os edifícios das Termas estão restaurados, a zona junto ao ribeiro foi arranjada e dotada de um módulo de madeira e vidro, estilizado para fazer vagamente lembrar um espigueiro (ou pelo menos assim me parece) e que abriga um café com esplanada, foi instalado um parque infantil e criado um circuito de manutenção, e até existe na zona arborizada um parque de campismo com bungalows e espaço para tendas e autocaravanas.
No exterior do parque, junto à entrada da estrada principal, permanece ainda em ruínas o antigo Grande Hotel do Pêso (ou Hotel Figueiroa, como também ficou conhecido). Os edifícios baixos, completamente esventrados e sem cobertura, estão invadidos pela vegetação, a tinta azul-anil das paredes quase desaparecida, e partidos muitos dos coloridos vitrais da capela. Hoje não é fácil imaginar que o hotel, construído em 1901, foi um dos expoentes máximos da época de ouro do termalismo em Portugal, mas estes edifícios agora arruinados sobreviveram às convulsões e mudanças de um século fecundo em acontecimentos fracturantes e grandes transformações sociais, políticas e tecnológicas, e ainda assim mantêm um certo fascínio (podem ler a história do hotel na notícia publicada online pela Rádio Vale do Minho). Há um projecto ambicioso para a sua recuperação, com abertura prevista para 2022 – a oportunidade merecida para uma segunda vida, certamente diferente, deste hotel, do parque e das termas.
Do lado oposto do parque, junto à entrada norte, termina (ou começa, se preferirmos) um trilho pedestre criado há alguns anos pela Câmara Municipal, a que deram o nome de Percursos Marginais do Rio Minho. São quase seis quilómetros (para cada lado) de caminhada, metade deles acompanhando o traçado do rio, que nem sempre se deixa ver, escondido pelas árvores e pela vegetação densa, e apenas se adivinha pelo som. A corrente forte atropela rochas, ilhotas e as pesqueiras – construções rudimentares feitas com pedras sobrepostas, que continuam a ser utilizadas sobretudo para a pesca à linha – e faz as delícias dos praticantes de canoagem e de rafting. O percurso é fácil e muito agradável mesmo nos dias mais soalheiros, pois em grande parte faz-se entre árvores, passa por um parque de merendas e tem inclusivamente um troço em passadiço de madeira, que termina numa espécie de miradouro sobre o rio, antes de voltarmos para trás pelo mesmo caminho para depois seguirmos para a vila. Podem encontrar toda a informação sobre este trilho no desdobrável publicado pela Câmara Municipal.
Talvez por o meu primeiro encontro com esta região ter sido tão bem sucedido, sempre senti um carinho especial por Melgaço, mesmo que as minhas visitas à vila tenham sido irregulares. Lembro-me de que numa delas, depois de ter estado alguns anos sem lá ir, achei o centro histórico muito diferente, renovado, mais limpo e bem mais bonito. Desde essa altura, Melgaço tem crescido pouco (em área, não em interesse) e devagar, o que não deixa de ser uma mais-valia. Pese embora a presença do reboco pintado e construções mais modernas na orla da vila, continua a manter muitas das suas casas em pedra de granito, agora com janelas em PVC branco em vez de madeira.
Ao fundo das ruas estreitas, onde felizmente os carros não passam, ergue-se vigilante a torre de menagem do castelo, sozinha, protegida por uma muralha elíptica, um conjunto hoje muito menos impressionante do que o desenho que dele fez Duarte d’Armas em 1509 no seu Livro das Fortalezas. Construído em 1170 numa elevação sobre o rio Minho, o Castelo de Melgaço foi a partir dessa altura, e durante muitos séculos, o principal posto de vigia da fronteira portuguesa com a Galiza. Mas é preciso sair da vila e parar no miradouro da Orada para perceber como terá realmente sido tão importante em tempos idos. Visto daqui, o castelo destaca-se com nitidez acima das casas, tendo por trás uma sucessão de serras declinadas em tons de verde-escuro. Para lá do rio, a vista espraia-se por muitos quilómetros sobre terras galegas, de onde agora já não corremos o risco de chegarem inimigos – mesmo que em tempos recentes as fronteiras tenham estado fechadas mais do que uma vez por questões de saúde pública associadas à pandemia do coronavírus. São outros tempos…
O miradouro da Orada tem um cruzeiro, mas este não é o seu local original. Erguido em 1567, ano de peste e portanto de fervor religioso acrescido, foi colocado junto à capela que agora está mais abaixo e do outro lado da estrada, mas questões logísticas ligadas à quantidade de devotos que o contornavam nos dias de romaria acabaram por o fixar neste sítio em fins do século XIX. A imagem tosca e o desgaste do granito acusam as centenas de anos a que este cruzeiro já sobreviveu.
Ainda assim, não foram tantos como os que já passaram pelas pedras manchadas da Capela de Nossa Senhora da Orada. Encaixada entre os muros de uma quinta vinhateira e umas quantas casas rústicas vulgares, pode facilmente passar despercebida a quem vai de carro pela estrada, com a atenção mais virada para a paisagem aberta do lado do rio. E no entanto, esta capela do século XIII é um dos edifícios mais surpreendentes da arquitectura religiosa do Alto Minho – já de si riquíssima em exemplares soberbos do período românico, como o são a Igreja de Bravães, perto de Ponte da Barca, ou a de Longos Vales, bem próxima de Melgaço, entre outras de que ainda aqui vou falar. Dizem os entendidos que mostra ser do período tardo-românico, por já ter alguns elementos protogóticos. Mais leiga do que eles, os meus olhos notam sobretudo o portal com colunas e arcos muito trabalhados, os cachorros com símbolos e figuras esculpidas, sob as cornijas, e um motivo vegetal por cima da porta norte que (mais uma vez de acordo com os peritos) representa a árvore da vida e é único em Portugal. Na sua escrita tão característica, Saramago descreveu a Capela da Orada no livro “Viagem a Portugal”, e foram as palavras dele que me trouxeram aqui pela primeira vez, tal como também me deram a descobrir outros lugares habitualmente ignorados pelas rotas mais turísticas.
Edifícios religiosos não faltam por aqui, tanto em Melgaço como nos arredores. Há a Capela de São Julião, medieval mas que até agora não foi possível datar com certezas, e que também está acompanhada por um cruzeiro; e a de Nossa Senhora da Pastoriza, esta bem documentada e claramente barroca, construída no século XVIII. Perto, o antigo Convento das Carvalhiças ou de Nossa Senhora da Conceição, igualmente setecentista e barroco, que agora é propriedade privada agrícola mas cuja igreja ainda é possível visitar. E no centro histórico da vila encontramos a Igreja Matriz e a Igreja da Misericórdia, ambas românicas mas muito modificadas ao longo dos tempos, como se percebe pelos elementos ornamentais típicos de séculos recentes. A Igreja Matriz mantém o portal em arco quebrado e uma curiosa figura de quatro patas, gravada em pedra, sobre a porta lateral. A Igreja da Misericórdia, mais pequena, tem um aspecto simples e austero, embora no interior não faltem os retábulos em talha dourada, indispensável aos preciosismos barrocos.
O meu Minho é também a terra do vinho verde. O tinto, que os meus sogros e toda a vizinhança produziam a partir de uva morangueira e de outra a que chamavam “jéque” (presumo que fosse uma corruptela de jaqué, uma casta de uva híbrida americana) e que eu não conseguia beber – sempre o achei demasiado ácido, arranhava-me a língua e a garganta, e tingia tudo aquilo em que tocava, fosse louça ou tecido; só muito recentemente passei a gostar de algum vinho verde tinto. E o Alvarinho, o meu preferido desde que me tornei gente crescida e comecei a apreciar beber vinho em ocasiões especiais. Num emblemático edifício seiscentista do centro histórico de Melgaço, facilmente reconhecível pelos três robustos arcos que formam uma espécie de alpendre avantajado, está instalado o Solar do Alvarinho. No seu interior sóbrio, onde algumas salas mantêm o tecto de madeira em caixotão, provamos uma (ou mais!) das várias marcas deste vinho produzidas no concelho, acompanhando com umas fatias de presunto ou chouriço da região e com dois dedos de conversa a quem lá se encontrar. E não há forma de resistir à tentação de comprar algumas garrafas, expostas na loja ao lado de peças de artesanato, bordados, enchidos e outros produtos tradicionais.
Apetite desperto, é fácil saciá-lo: neste Minho come-se bem, seja um bacalhau à moda da terra, uns rojões ou um pernil assado, trutas ou lampreia. Entre a enorme lista de restaurantes por onde escolher, saímos de Melgaço para ir até Paderne e à Tasquinha da Portela. Restaurante amplo, num edifício de pedra harmonioso e com um grande espaço ao ar livre na parte de trás, proprietários simpáticos e atenciosos, comida reconfortante, despretensiosa e bem confeccionada, regada com bom vinho – tudo o que é preciso para uma refeição me deixar satisfeita.
Esta saída de Melgaço também tem outra missão. Do lado oposto da estrada está a Igreja de Paderne, românica com evidentes elementos posteriores góticos e barrocos, mais um daqueles segredos que o Alto Minho esconde em aldeias insuspeitas e sem qualquer reconhecimento turístico. Construída no século XIII, pertenceu a um convento de que hoje já só resta uma parte do claustro. E se o exterior já chama a atenção, pelo volume e por ter um transepto incomum, com um portal quase tão ostensivo quanto o da entrada principal, o interior surpreende pela originalidade. Ao longo das paredes laterais até ao altar-mor há um cadeiral de madeira polícroma, bem mais simples do que os habituais cadeirais rebuscados em madeiras escuras, mas muito bonito e de grande efeito. Lá no alto, anjos pintados com cores desmaiadas parecem querer escapar-se pela rosácea. E uma das capelas tem a entrada completamente revestida de azulejos seiscentistas, tricoloridos em azul, branco e amarelo, enquanto o interior é bem mais discreto, com um altar neoclássico e tecto de tábuas corridas, decorado com desenhos florais em tons claros e a necessitar de restauro. Gosto destes edifícios religiosos que saem do comum.
No Minho dos meus encantos que se espraia à volta de Melgaço há mais um destes edifícios, que em tempos desempenhou papel importante mas agora está posto em sossego nos confins de uma aldeia minúscula. As suas pedras contam histórias de oito séculos, ou talvez nove, que os estudiosos não são consensuais quanto à data da sua fundação. Foi mosteiro cisterciense, e antes disso provavelmente beneditino, reformado várias vezes ao sabor dos séculos, e aos nossos dias chegou apenas em forma de igreja. Chamam-lhe de Santo André, mas é simplesmente conhecida como Igreja ou Mosteiro de Fiães. Gosto dela pelas suas formas depuradas e pela quase ausência de adornos, cuja maior excepção são os três nichos com imagens de santos na frontaria, acrescentos do século XVII, que para o gosto da época a igreja seria demasiado simples. Gosto também do seu aspecto robusto, acentuado pelos contrafortes na frontaria e dos lados, e pela torre sineira lateral recuada, quadrangular e algo atarracada em comparação com os volumes do resto do edifício. E gosto sobretudo de harmonia que existe entre ela e o lugar em que se encontra, meio escondida atrás de plátanos e carvalhos tão ou mais altos do que a sua cruz cimeira. O sol reflectido nas folhas tinge de verde o granito da fachada, já de si manchado pelos líquenes, e empresta ao cenário um ar meio etéreo.
O espaço que o Minho ocupa no meu coração cresceu mais um pouco há alguns anos quando me levaram a conhecer Cevide, a aldeia mais setentrional do nosso país, perto da qual está colocado o marco número um de fronteira. Sobre ela escrevi o post Cevide, onde Portugal começa, e desde essa altura já muito mais gente a descobriu e visitou, e foram criadas melhores condições de acesso ao marco. Tanto a pequena aldeia como o local onde o marco está colocado, perto do ponto onde o rio Troncoso (que ali delimita a nossa fronteira leste) desagua no Minho, são lugares onde o sossego é quase absoluto, e apenas se escutam os sons da natureza.
É este o meu Minho, aquele que me põe um sorriso nos lábios quando o visito e que tem, desde há muito tempo e para sempre, um lugar cativo no meu coração.
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