Matera, singular e mágica - parte 2
(continuação do post anterior)
Os Sassi de Matera são dois, separados pela Civita, o centro histórico medieval: a norte fica o Sasso Barisano, afundado entre a orla mais elevada do planalto; e a sudeste o Sasso Caveoso, pendurado sobre o rio Gravina e de frente para o planalto Murgia Timone.
As casas trogloditas
Na encosta leste do Sasso Caveoso, a Associazione Culturale Gruppo Teatro Matera reabilitou algumas construções do Vico Solitario, entre elas uma casa-gruta aberta ao público como espaço etnográfico. Remonta ao século XVIII e é uma habitação parcialmente escavada e parcialmente construída. Visitá-la pode parecer apenas mais uma experiência inócua, mas não para mim.
A gruta tem uma forma simples, rectangular e com tecto abobadado. Só existe uma divisão, com um pequeno nicho contíguo para a cozinha. A ventilação faz-se apenas pela porta de entrada e por uma janela minúscula no espaço da cozinha. Tudo se concentra em poucos metros quadrados: a cama do casal, alta, para servir de lugar de arrumação por baixo, com o seu colchão cheio de lã e folhas de milho; a mesa de refeições, onde todos comiam do mesmo prato de barro; a arca dos cereais, com uma divisão interna para separar o grão para consumo humano da forragem para os animais; a cómoda onde se guardava a roupa, cujo gavetão inferior poderia também servir de cama para uma criança; o baú do enxoval e a arca onde guardavam a comida; o tear onde faziam os tecidos; o calhandro para os dejectos (a habitação não tinha esgotos). Os utensílios eram pendurados nas paredes ou colocados em pequenos nichos. Um braseiro aquecia a casa no Inverno e tinham uma pequena cisterna com tampa para armazenar a água da chuva, transportada do exterior por um rudimentar sistema de canalização. Os habitantes dos Sassi não tinham acesso a nascentes ou lençóis aquíferos, pois as grutas estão escavadas sobre uma camada maciça de calcarenito.
Além da família, sempre numerosa – cada casal tinha uma média de seis filhos, mesmo sendo a mortalidade infantil na ordem dos 50% – a casa abrigava também os animais: uma mula ou cavalo, porcos, aves de capoeira. Todos os objectos desta casa-gruta estão exactamente nos mesmos lugares em que se encontravam nos anos 50, quando a casa era habitada. Apesar de ainda ter contactado, em tempos idos, com casas rurais no nosso país em que as condições de vida eram bastante más (pelos meus padrões citadinos, obviamente), não consigo imaginar como seria viver nestas habitações sobrelotadas e insalubres.
Na verdade, nesta parte esquecida e isolada da Basilicata, e nestas condições, viviam 60 mil pessoas até meados do século passado. A sociedade italiana do pós-guerra só virou as atenções para a região depois de 1945, ano em que Carlo Levi, opositor do regime durante os anos do fascismo de Mussolini, publicou as memórias do tempo em que tinha sido desterrado para a Basilicata por razões políticas, no livro “Cristo parou em Eboli”. Descreveu os Sassi de Matera como sendo a ideia que um estudante faz do Inferno de Dante, com cavernas escuras, húmidas e sujas, onde as pessoas coabitavam com animais e as doenças se espalhavam de forma galopante.
Em 1950, o primeiro-ministro italiano Alcide De Gasperi visitou Matera e ficou chocado com as circunstâncias precárias em que viviam os habitantes dos Sassi. A cidade foi apelidada de “vergonha nacional” e o governo italiano lançou um programa de realojamento dos moradores em casas novas, num esforço para “modernizar” a cidade. Entre 1953 e 1968, 16 mil pessoas foram transferidas para estes bairros modernos – cuja concepção, no entanto, não foi das mais felizes e levou ao isolamento de uma população que se caracterizava pela convivência e entreajuda, como se pertencessem todos a uma mesma família. Os Sassi foram esvaziados, e houve até quem sugerisse que esta parte da cidade fosse isolada com muros, para que ninguém mais se lembrasse dela. Sem vida, passaram a servir de refúgio para ladrões e traficantes. Houve, no entanto, alguns movimentos de locais que não se conformaram com a degradação do lugar em que tinham vivido, e aos poucos foram surgindo iniciativas para insuflar um novo alento aos Sassi, sobretudo a partir dos anos 80. O impulso final foi dado pela aceitação da candidatura a Património Mundial da UNESCO, em 1993.
A fé de Matera
Ao lado da casa-gruta do Vico Solitario foram recuperadas outras construções. Na neviera era armazenado o gelo para refrescar e conservar os alimentos, servir como reserva de água potável ou ser usado no tratamento de doenças. A igreja rupestre de Sant’Agostino al Casalnuovo, que remonta aos séculos XIII/XVII, pertenceu ao vizinho Mosteiro de Santa Lúcia mas foi disponibilizada para fins não religiosos e arrendada, sendo usada primeiro como habitação e depois como armazém e até como pedreira de calcário. Tal como a neviera, agora é essencialmente um espaço expositivo.
Uma caverna natural inserida no mesmo complexo museológico funciona como auditório. Segundo o painel informativo, este era o local de socialização dos habitantes do bairro, abrigado das chuvas e das temperaturas extremas, onde os homens conviviam no final do dia de trabalho. Sítio ideal para também nós descansarmos um bocado, em frente ao ecrã de televisão que passava um documentário. Foi ao vê-lo que descobri a razão de ser das decorações festivas que tínhamos visto na véspera (estávamos em Junho) e de um quadro, pendurado no nosso quarto no Nonna Rosario, com o desenho de um carro alegórico. E que descobri também a existência de um dos acontecimentos mais impressionantes do calendário religioso italiano.
A santa padroeira de Matera é a Madonna della Bruna, cuja festa se celebra anualmente a 2 de Julho há mais de seis séculos (2024 foi o ano da 635ª edição). Este é um dos eventos culturais mais significativos da cidade, e porventura o mais singular, aquele em que a fé dos materanos se mostra de forma mais vívida, emotiva, até mesmo assustadora. O carácter único das celebrações e a popularidade de Matera transformaram esta festa num acontecimento que é hoje em dia alvo de reportagens em directo durante mais de 20 horas, desde a procissão dos pastores, que se realiza às quatro e meia da manhã, até ao fogo-de-artifício que encerra as festividades.
As várias procissões que decorrem ao longo do dia têm finalidades diferentes, mas são acompanhadas por milhares de fiéis de todas as idades. Na que se realiza ao início da tarde, a imagem da Madonna é transportada numa carruagem, separada da que representa o seu filho, habitualmente colocado no seu braço esquerdo. Mãe e criança são reunidas mais tarde e regressam à Catedral ao cair da noite, naquela que é a procissão mais comovente e inspiradora da festa – ou pelo menos é assim que a retratam os vários testemunhos gravados em vídeo nos anos mais recentes. Neste cortejo, as duas figuras seguem num carro alegórico triunfal, puxado por mulas, antecedido por um grupo de “guardas” a cavalo e rodeado por seguranças, que formam um cordão para proteger todo o cortejo. Antes de voltar ao seu lugar dentro da Catedral, o carro que transporta a Madonna dá três voltas à Piazza del Duomo, um ritual para invocar a protecção da cidade.
O carro alegórico é diferente todos os anos, concebido segundo um tema escolhido nas escrituras, com esqueleto de madeira e decorado com figuras e outros elementos modelados em cartão e papier machê. Depois de aliviado da sua carga preciosa – a figura da Madonna – percorre a Via delle Beccherie (a única rua dos Sassi onde é possível a passagem de carros) até à Piazza Vittorio Veneto, feericamente iluminada para a ocasião. E é quando entra nesta praça que começa a loucura. Centenas de pessoas atiram-se (literalmente!) ao carro, empurrando-se, atropelando-se, trepando umas por cima das outras, braços em riste para arrancarem um pedaço das figuras ornamentais. Em poucos minutos, o trabalho de meses é destruído, e os felizardos que conseguiram para si (ou também para os amigos, pois muitos deles organizam-se em grupos) um bocadinho de uma figura sentem-se abençoados e vão guardá-lo para sempre como amuleto de boa sorte. Dizem os estudiosos que este acto aparentemente bárbaro simboliza o triunfo do bem sobre o mal e a renovação da vida. Mariagrazia afirma que o acontecimento não é tão selvático quando parece, mas mesmo assim prefere manter-se longe. Há dois anos, o filho teve a sorte de conseguir um desses cobiçados pedacinhos. A fé materana é transversal a todas as gerações, e a tradição secular mantém-se de boa saúde.
O número de lugares de culto em Matera é impressionante, e rivaliza com o de cidades italianas bem maiores e mais conhecidas. O edifício religioso mais significativo, como não podia deixar de ser, é a Catedral de Maria Santissima della Bruna e Sant'Eustachio. Data de 1270 e foi construída, em estilo românico apuliano, no ponto mais alto da cidade, marcando a divisão entre os dois Sassi de Matera. As alterações de que foi alvo nos séculos XVI e XVIII deram-lhe um aspecto exterior híbrido e um interior barroco, com tectos falsos em madeira pintada com cenas litúrgicas, retábulos e capelas com mármores coloridos, e muitos elementos em talha dourada. Ainda assim, a luz que entra pelas janelas do clerestório e pelo vitral singelo, a par da abundância de branco, dão ao espaço alguma leveza, que contrabalança o excesso de elementos ornamentais.
Também do século XIII, mas muito menos modificada, a igreja de San Giovanni Battista é outro belo exemplo da arte românica. Tem um portal magnífico, decorado com motivos florais e cabeças humanas com cabelos encaracolados. O interior é espartano, pedra à vista com arcos ogivais e abóbadas nervuradas, decoração parcimoniosa, a altura central a sobrepor-se à largura. Os olhos são encaminhados para o alto e há um convite implícito à meditação, na altura da visita reforçado pelo terço rezado a várias vozes femininas.
Entre as muitas igrejas de exterior barroco que há em Matera, chamou-me especial atenção a de San Francesco d’Assisi, com uma fachada que consegue ser ao mesmo tempo elaboradíssima e delicada. Está decorada com volutas vegetais e cordões, e tem a particularidade de ostentar, nos extremos laterais superiores, duas estátuas: uma de São Francisco de Assis e outra de Santo António (que para os italianos é de Pádua, mas para mim é sempre de Lisboa).
No Sasso Caveoso, a igreja de San Pietro data do período medieval, mas o seu aspecto foi radicalmente alterado em obras de restauro posteriores, principalmente no século XVIII. Ainda assim, o interior mantém vários trabalhos artísticos quinhentistas, como o políptico de madeira do altar-mor e – com especial importância também para nós, portugueses – os seis painéis de pedra que se encontram na capela dedicada a Santo António, que representam cenas da vida deste santo e se presume terem sido criados por Altobello Persio, escultor renascentista que também executou um monumental presépio que se encontra na Catedral. Aliás, percebi nesta minha recente viagem que Santo António é um dos santos mais venerados no sul de Itália, onde há dezenas de igrejas que lhe são dedicadas, várias delas com grandes programas de festividades no dia 13 de Junho.
A rota das igrejas rupestres
No século VIII, os monges beneditinos estabeleceram-se na região em que Matera se insere, trazendo consigo a iconografia latina do cristianismo monástico. Seguiram-se-lhes eremitas e anacoretas em fuga da guerra no Oriente, nos séculos IX e X, adeptos de culturas religiosas de inspiração bizantina. As grutas da Murgia Materana eram o local perfeito para a reclusão e o sossego por que todas estas almas religiosas ansiavam, e muitas delas foram adaptadas a local de culto: são mais de 150 as igrejas rupestres que subsistiram até aos nossos dias, ou de que ainda existem vestígios. Algumas ainda ostentam parte dos frescos ou baixos-relevos com que foram decoradas.
No Sasso Caveoso salta à vista, acima da mole híbrida de casas e grutas, um esporão rochoso com uma grande cruz no topo. É o Monterrone, e o seu interior esconde não uma mas duas igrejas comunicantes: as de Santa Maria de Idris e San Giovanni in Monterrone. Muito perto, Santa Lucia delle Malve foi o primeiro e mais importante assentamento monástico feminino da Ordem Beneditina, construído no século VIII. Estão aqui algumas das mais belas pinturas murais das igrejas rupestres de Matera. No Sasso Barisano, a maior de todas estas igrejas passaria despercebida não fosse o seu campanário exterior, um acrescento do séc. XVIII que também deu à fachada um aspecto suavemente barroco. É a igreja de San Pietro Barisano, nome que substituiu o anterior – bem mais interessante, por sinal: San Pietro de Veteribus. A sua origem remonta aos séculos XII-XIII.
Santa Maria de Idris e San Giovanni in Monterrone
San Pietro Barisano
Para lá da sua história atribulada – conversão em habitações ou armazéns, mero abandono, vandalização, roubo – o que mais impressiona nestas igrejas são os seus frescos, hoje recuperados. Alguns ainda estão bastante completos, outros são apenas fragmentos, mas dão-nos uma ideia de quão coloridos seriam estes interiores na sua época áurea. Representam, é claro, cenas bíblicas e santos, e revelam nítidas influências bizantinas misturadas com uma sensibilidade latina mais significativa. Na verdade, muitos destes frescos foram pintados por monges anónimos, autodidactas que passaram para as paredes, de forma expressiva, a sua própria interpretação da iconografia cristã.
Não é permitido fotografar o interior destas igrejas, por isso as imagens abaixo foram retiradas dos folhetos explicativos publicados pela Oltre L’Arte, a cooperativa que gere este (e outro) património (https://www.oltrelartematera.it/en/rupestrian-churches/).
Santa Maria de Idris e San Giovanni in Monterrone
Santa Lucia delle Malve
San Pietro Barisano
Bem no centro da Piazza Vittorio Veneto há uma abertura que revela um acesso ao plano inferior da praça, posto a descoberto em fins nos anos 80 e 90, quando a área foi submetida a obras de remodelação. As escadas levam-nos a uma outra igreja rupestre, que se presume remontar aos séculos VIII-IX: é a igreja hipogeia do Santo Spirito, sobre a qual está construída a bem mais visível, apesar de pequena, igreja de Mater Domini, que a substituiu e votou ao esquecimento. Pese embora o abandono a que esteve sujeita, ainda subsistem vestígios de alguns frescos. Hoje em dia é um espaço aberto, com a nobre função de dar acesso ao Sasso Barisano.
Deixei Matera com vontade de voltar. A Itália tem um qualquer sortilégio com esse efeito sobre mim. Em cada viagem, há sempre algum sítio que fica especialmente marcado na minha memória e me faz querer regressar. Matera consegue aliar uma história e uma cultura fora do comum a uma simplicidade genuína, ainda não afectada pelo pretensiosismo de alguns lugares repentinamente lançados para a ribalta do turismo. É uma cidade que tem desafiado os séculos, um exemplo de resistência, transformação e orgulho. Mais do que um sítio a visitar, é um lugar para sentir. Uma experiência que perdura muito tempo após o fim da viagem.
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