Matera, singular e mágica - parte 1
Vista de longe, do miradouro de Murgia Timone, Matera parece uma cidade bombardeada. Uma mancha cinza e creme onde se notam paredes em ruínas, janelas que parecem buracos negros, fachadas assomando entre rochas, telhados inexistentes substituídos por pedras empilhadas ao acaso ou terra de onde despontam arbustos incipientes. Paisagem cubista com formas interligadas, extravasando em todas as direcções sem ordem evidente, sucessões de degraus que parecem não ter princípio nem fim e evocam as impossibilidades da gravura “Relativity” de Escher.
A tranquilidade aparente dá a ideia de um lugar abandonado. E no entanto, o engano não poderia ser maior: estamos perante uma das povoações mais antigas do mundo constantemente habitada desde há 10 mil anos. Porquê? O que é que tem de tão especial? Há que visitá-la para perceber.
Do desconhecimento ao estrelato
Entrando em Matera pelo planalto, no lado norte, a cidade não difere de qualquer outra: prédios baixos pintados em cores insuspeitas, com lojas e oficinas nos pisos inferiores; aqui um mercado, uma igreja moderna mais à frente, um silo industrial ao longe, espreitando por cima dos telhados. Muitos carros, algumas árvores espaçadas ao longo das ruas. É o Piano, a parte moderna da cidade, onde vive a maioria dos seus 60 mil habitantes.
Numa viagem de carro pelo sul de Itália, o aspecto prático sobrepõe-se frequentemente ao romântico, e a verdade é que nos centros históricos é impossível estacionar. Por outro lado, andar a pé faz bem, até mesmo para digerir as maravilhosas refeições de pasta a que sucumbimos de boa vontade quando andamos por terras italianas. Decidimos, por tudo isso, alojar-nos numa das ruas principais do planalto, a uma mera caminhada de 10 minutos da cidade antiga, e onde até parecia estar à nossa espera um lugar milagrosamente vago no pequeno estacionamento do outro lado da estrada. Um início auspicioso!
Apesar de ter os seus Sassi e o Parque das Igrejas Rupestres inscritos no Património Mundial da UNESCO desde 1993, Matera permaneceu longe da ribalta turística até muito recentemente. “Até há poucos anos, quando ia a Milão e dizia a alguém que vinha de Matera, olhavam para mim com ar de dúvida e perguntavam: onde é que isso fica?” – palavras de Mariagrazia, a dona do B&B Nonna Rosario, o alojamento onde ficámos. O clique da mudança deu-se em 2019, quando Matera foi Capital Europeia da Cultura, reforçado pelas filmagens da sequência de abertura do filme “007-Sem Tempo para Morrer”, que mostrou a cidade ao mundo quando estreou nos cinemas, em 2021. Em meia dúzia de anos, Matera tornou-se uma estrela do turismo tanto nacional como internacional, e o corrupio de visitantes é contínuo.
Uma cidade, várias faces
As sombras do final de tarde já se alongavam quando saímos ao encontro do centro histórico, pese embora a temperatura do ar se mantivesse nos 20 e bastantes graus. Íamos em busca dos Sassi, anfiteatros escavados numa das vertentes do Torrente Gravina, que corre, em esses de quem bebeu demais, pela região da Basilicata. São eles o motivo principal do fluxo de visitantes da cidade, mas ainda assim permanecem uma face oculta, resquícios de vergonha antiga, escondidos que estão para quem vem da parte moderna. As construções que ocupam a Civita, o centro histórico medieval que se espalha pela orla do planalto, são um biombo formado por igrejas, palazzi e edifícios vários que impedem a visão imediata dos Sassi. Fervilhando de gente – habitantes locais à conversa, miúdos montados em patins ou bicicletas com rodinhas, casais de namorados, e uma boa dose de estrangeiros – a Piazza Vittorio Veneto é o centro nevrálgico da Matera antiga, uma espécie de foyer de um teatro onde nunca entrámos, e de que não sabemos bem o que esperar.
Quando passei os modestos arcos de acesso ao terraço-miradouro Luigi Guerricchio e consegui um disputado lugar na varanda de ferro forjado, entrei noutra dimensão. O anfiteatro de pedra do Sasso Barisano abria-se à minha frente e aos meus pés, tão amplo quanto compacto: uma amálgama de edifícios e rocha, de volumes desordenados, um puzzle concebido por um louco e que o meu cérebro teve dificuldade em processar. No cenário aloirado pelo sol da “golden hour”, qual estrela no cimo do pinheiro natalício, a catedral brilhava contra o céu sarapintado de aves irrequietas, com a torre sineira a destacar-se para assinalar a importância do edifício. Metade do Sasso já estava à sombra, dando ao quadro um aspecto ainda mais dramático. O meu coração falhou uma batida. Terá sido nessa altura que me enamorei de Matera?
Se não foi, decerto não terá tardado muito. Aventurámo-nos pelas vielas e escadinhas íngremes, na ânsia de sentir o efeito de penetrar naquele labirinto. Os Sassi são enganadores. Olhamos para o mapa e parece que determinado ponto está ali mesmo ao lado. Orientamo-nos naquela direcção, mas as ruelas são tão imbricadas que às tantas damos por nós a andar em sentido contrário, para a seguir descobrirmos que o lugar que procuramos está dois níveis acima (ou abaixo!). Não são raras as vezes em que temos de voltar pelo mesmo caminho, para depois entrar numa outra viela, subir ou descer mais uma porção de degraus – e temos sorte se não formos dar a um beco. Meio perdida no cenário, senti-me criança a viver uma aventura livresca, quase à espera de ver o Professor Dumbledore surgir ao virar de uma esquina.
Entre tentativa e erro, lá conseguimos dar com o restaurante onde tínhamos decidido ir jantar. Chama-se “Il Terrazzino”, e o nome não engana: uma escadaria estreita, ao ar livre, deixa-nos num terraço abrigado sob uma arcada tripla, de onde temos uma vista soberba sobre a vertente norte do Sasso Barisano. Mesas quadradas, cobertas com simples toalhas brancas, e cadeiras robustas de madeira escura, num ambiente quase espartano que realça o panorama exterior. Aqui qualquer comida saberia bem, que os olhos degustam tanto quanto o palato. E no entanto, há mais. Um atendimento sorridente e caloroso, comida tradicional deliciosa – como a parmigiana di melanzane (à base de beringela) ou as orecchiette al tegamino (uma massa típica da Puglia) – e ainda a oportunidade de conhecer uma antiga adega no subsolo do restaurante. A adega data de 1600 e foi escavada na rocha, seguindo a arquitectura típica dos Sassi. Nas suas várias salas está organizada uma exposição etnográfica, com objectos originais e fotografias que mostram como era a vida dos camponeses de Matera até meados do séc. XX.
Quando saímos do restaurante, já sob o pano azul-escuro da noite, a cidade apresentava uma outra face, plena de contrastes. O negrume engolia certas partes dos Sassi, enquanto outras tinham ganhado uma vida diferente sob os focos de luz. A escuridão disfarçava as zonas ainda em ruínas, esbatia imperfeições e escondia guindastes, as luzes uniformizavam a pedra, às vezes criando pontos de cor. A Matera nocturna parece mais moderna, mas não menos misteriosa.
De regresso ao alojamento, nova passagem na Piazza Vittorio Veneto, onde o movimento decuplicara no espaço de apenas duas horas. A cidade inteira parecia ter saído à rua. O ambiente era de festa e até estavam montados grandes arcos de iluminação em vários pontos da praça, mas as suas lâmpadas mantinham-se apagadas. Só mais tarde viria a perceber porquê.
O pão de Matera
Na manhã seguinte, Mariagrazia serviu-nos o pequeno-almoço numa sala-cozinha luminosa, a divisão central do seu B&B. De um saco de papel retirou um pão estranho, com uma crosta escura e um ar tosco. Cortado em fatias, o miolo revelou-se amarelo, a fazer lembrar o nosso pão de milho, mas ao prová-lo percebi que era muito diferente, com uma textura e um ligeiro pico azedo a evocarem o pão alentejano. Sem o saber na altura, estava a comer um pão tradicional centenário, típico dos Sassi de Matera, actualmente classificado como IGP (Indicação Geográfica Protegida) e produzido segundo critérios rígidos que evitam a sua desvirtuação.
A base do verdadeiro pão de Matera é idêntica à de tantos outros pães: farinha, fermento, água e sal. Mas esta identidade é apenas genérica, pois tanto os ingredientes como o processo de produção têm particularidades que, somadas, resultam num produto muito especial. O ingrediente mais importante, a farinha, obtém-se a partir da sêmola de grãos de uma variedade de trigo tradicional muito difundida na região lucana, conhecida como “Senatore Cappelli”.Este tipo de trigo conserva no seu património genético características que não se encontram noutras variedades, e que conferem ao pão de Matera aroma e sabor únicos, além de ter um glúten mais facilmente digerido. A fermentação é longa e tem um segredo: é usada massa-mãe que envolveu a maceração de uvas e figos fermentados em água de nascente local. Finalmente, a cozedura tem obrigatoriamente de ser feita em forno de lenha alimentado com essências típicas da região.
Dizem os locais que o formato do pão de Matera – comprido, alto e arqueado, quase um cone – se assemelha ao das elevações abruptas da Murgia, a região geográfica em que a cidade se insere. Antes de a massa ir para o forno, leva três cortes rituais, em representação da Santíssima Trindade. O pão foi durante séculos a base da alimentação dos habitantes dos Sassi, e esta era uma forma de agradecerem a Deus o alimento que lhes permitia sobreviverem. A massa era cozida em fornos comunitários, e para evitar confusões cada pão era marcado com um carimbo de madeira ou terracota que tinha gravadas as iniciais da família a que pertencia. Os carimbos são hoje acervo de museu, mas o pão tradicional continua a ser o preferido pelos materanos.
A magia da pedra
No extremo oriental da Basilicata, região do sul de Itália, o sulco geológico a que dão o nome de Gravina di Matera define o território da Murgia Materana, um planalto calcário caracterizado por fendas profundas, ravinas, rochas e cavernas, coberto de vegetação mediterrânica. Os achados arqueológicos mostram que esta região é habitada desde o Paleolítico, quando as suas grutas e saliências rochosas de formação natural serviam de abrigo aos humanos, nessa altura caçadores-recolectores. Com a agricultura e o sedentarismo, por alturas do Neolítico, surgiram os primeiros assentamentos, que aproveitaram as cavernas escavadas nas encostas das ravinas, num exemplo perfeito de adaptação humana ao meio natural, tirando o máximo partido da geomorfologia e do espaço locais.
Estas habitações trogloditas nunca deixaram de ser usadas e o seu número foi aumentando ao longo dos séculos. Na Antiguidade tardia e início da Idade Média já eram a forma de povoamento mais difundida em Matera, constituindo um labirinto de grutas que se estende para lá do imaginável: o que está à vista é apenas 30 por cento do total, que ascende a um número entre 1500 e 3000, dependendo do critério usado para contabilizar as estruturas. Muitas delas foram adaptadas e modificadas ao longo do tempo, com construções de alvenaria prolongando a frente das grutas – nos Sassi, as casas foram construídas para satisfazer as necessidades das famílias. Estas habitações subterrâneas espalham-se em grupos, de forma irregular, acompanhando as camadas de rocha calcária macia. Com o passar do tempo, a forma pré-histórica de viver numa gruta cristalizou-se no modelo de habitação característica de Matera.
No entanto, embora os agricultores, pastores e comerciantes menos endinheirados vivessem nas casas trogloditas, a população pertencente às classes mais abastadas (clero, nobres e negociantes bem-sucedidos) construiu para si, na parte mais alta da cidade, palacetes e mosteiros mais consentâneos com a sua posição social, ao gosto de cada época. Esta é a razão pela qual existe uma diferença acentuada entre a morfologia dos edifícios da Civita e dos Sassi.
Ainda assim, quando no dia seguinte parámos no miradouro da Piazzetta Pascoli (a “varanda” de Matera), de onde temos uma vista abrangente sobre o Sasso Caveoso, não pude deixar de admirar a forma como ali tudo parece fundir-se naturalmente. As construções mais elaboradas transfiguram-se mais abaixo em casas que se projectam das grutas, esculpidas na colina, desdobrando-se até se confundirem com a paisagem. Casas e ravina misturadas, feitas de uma mesma rocha, unidas pelas mesmas tonalidades cruas e acinzentadas. Caos e harmonia em coabitação pacífica.
Em dia quente e sem ponta de vento, subir e descer ruas íngremes e escadinhas sinuosas não é um passatempo recomendável. Mas Matera parece irradiar uma energia especial que torna tudo mais leve. Durante as várias horas em que percorremos os Sassi, os meus joelhos não se queixaram das centenas de degraus que subi, os pés resistiram sem mossa aos milhares de passos que dei, o calor não me incomodou, o humor esteve sempre em alta. Coincidência ou sortilégio? Na dúvida, apetece-me mais optar pela segunda hipótese.
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