Jardins
Aquilo de que mais gosto na Primavera é o seu espírito. A mudança subtil, a renovação, o crescimento, a alegria do renascimento cíclico neste continuum a que chamamos vida – a minha, a nossa, a da natureza. A certeza de que nada é imutável, e a esperança de novas possibilidades, de outras perspectivas que abrem caminhos diferentes.
Haverá melhor lugar para sentir a Primavera do que um jardim?
Um jardim é a natureza à mão de semear. É o útil aliado ao belo: uma biblioteca viva, a preservação das espécies de mãos dadas com a estética, o apelo aos nossos sentidos. Lugar de descontracção, de sossego, ou de brincadeira e alegria, de meditação, de conversas, confissões e segredos.
E por falar em segredos, quem nunca namorou num jardim? Alguns têm recantos que parecem feitos para abrigar amores fora da vista dos outros. Ou, pelo menos, para uma conversa sem sobressaltos nem interrupções, seja para trocar confidências, transmutar sentimentos em palavras, ou deixar a emoção correr em forma de lágrimas.
Nos dez jardins que rodeiam o Castelo de Sudeley, em Inglaterra, tranquilidade é algo que não falta, nem faltam recantos ideais para uma conversa fluida. Mas o mais intimista (e mais romântico) é sem dúvida o Jardim Secreto, um rectângulo de relva protegido por arbustos altos e coloridos, com um único banco estrategicamente colocado.
Em Bornos, na Andaluzia, o jardim do Palácio dos Ribera também teve originalmente um jardim secreto, de que hoje só permanece uma piscina com nenúfares, resguardada por buxos. Neste jardim renascentista, que também tem um pomar, não há multidões e o sossego é dono do lugar.
No princípio era o jardim
A relação entre jardins e espiritualidade é ancestral. Por alguma razão chamaram Jardim do Éden ao paraíso original da tradição judaico-cristã: mais do que um simples espaço terreno para proporcionar sustento físico, é um símbolo da beleza e da comunhão entre o divino e o humano, onde a presença de Deus se manifestava de forma tangível. O Jannah, conceito muçulmano de céu ou paraíso, para onde os muçulmanos bons e fiéis vão depois do Dia do Juízo Final, é descrito como um jardim belo e tranquilo, onde corre água e são servidos alimentos e bebidas abundantes aos mortos e às suas famílias. Várias outras tradições religiosas, como é o caso do budismo zen, também valorizam os jardins como lugares de comunhão com a natureza, transcendência e paz interior, ideais para a meditação, a contemplação e a oração. Concebidos para reflectir a beleza e a simplicidade do que é natural, com arranjos minimalistas e simbólicos, a harmonia dos jardins que habitualmente apelidamos de “japoneses” tornou-os extremamente populares, e hoje em dia estão espalhados por todo o mundo. Sou uma admiradora confessa destes jardins e nunca perco a ocasião de os visitar, mas o meu preferido – talvez porque concentra todas as virtudes de um jardim zen num espaço mais reduzido – continua a ser o primeiro que visitei, e onde já estive mais vezes: o Kyoto Garden, em Londres.
Kyoto Garden, Londres
Jardim Japonês, Buenos Aires
Jardim Pierre-Baudis, Toulouse
O próprio acto da jardinagem pode ser visto como uma prática espiritual de ligação à terra, uma forma de colaborar com a natureza, cultivar o solo e participar no ciclo de vida. Actividade por vezes associada à subsistência, como acontecia (e ainda acontece) nos mosteiros, não são poucas as pessoas que dizem encontrar paz e significado na criação e manutenção de jardins, seus ou de outros, ou a cuidar de hortas.
Jardins para dar cor à vida
Independentemente da beleza que têm noutras épocas do ano, é na Primavera que a maior parte dos jardins estão no seu auge. A culpa é das flores e da explosão de cor com que os pintam. Depois dos meses cinzentos e frios, em que muito do que há na natureza fica em estado de hibernação, o renascimento de um jardim é um hino à alegria que reflecte o nosso próprio desejo de nos libertarmos do peso do Inverno. Queremos luz e festa, entusiasmo, energia. E é por isso que a função ornamental de um jardim é uma das suas facetas mais importantes.
Em muitos países onde os rigores invernais são mais fortes, este amor pelos jardins é bem visível. Em Akureyri, a maior cidade do norte da Islândia, situada uns meros 50 km a sul do Círculo Polar Árctico, o encantador Jardim Botânico (Lystigarður) congrega mais de 7 mil espécies diferentes de plantas, das quais apenas 430 são nativas do país. Caminhos ondulantes, imaculadamente limpos, rodeiam canteiros com flores coloridíssimas, arbustos e árvores, zonas arrelvadas, pequenos lagos, e bancos para descanso dos visitantes.
Na região inglesa das Cotswolds, perto de Painswick, os Rococo Gardens são outro exemplo de jardim ornamental exuberante. Concebidos no séc. XVIII, espelham a alegria de viver da classe média-alta dessa época, quando a extravagância e a frivolidade reinavam. Têm uma atmosfera teatral, com elementos arquitectónicos que pouco mais são do que decorativos, secundados por uma profusão de flores de cores pastel. Um jardim repleto de pormenores deliciosos e surpreendentes.
Os Jardins Botânicos Reais de Kew, situados na periferia de Londres, têm um valor tão grande como paisagem histórica que estão desde 2003 classificados como Património Mundial pela Unesco. Criados em 1759 pela Princesa Augusta, ilustram de forma ímpar os períodos característicos do paisagismo nos séculos XVIII a XX, com ambientes que reflectem as tendências artísticas da época, oriundas tanto da Europa como de regiões mais distantes.
No reino da originalidade
Certos jardins são como que uma bolha isolada da realidade que os rodeia. Passamos o seu limiar e somos transportados para outros lugares, outras eras, outros mundos. Recriam ambientes exóticos, utopias transformadas em realidade, ou nascem da excentricidade de quem os concebe, às vezes até por acaso. São oásis de fuga à rotina, portais para um universo onde as regras do comum não parecem aplicar-se.
O Jardim Tropical Monte Palace é um pedacinho de paraíso na ilha da Madeira. Estende-se por uma área de 70.000 m2 e é povoado por milhares de espécies diferentes de plantas exógenas, em pacífica coexistência com as muitas outras que são típicas da floresta Laurissilva da Madeira. Está estruturado em vários ambientes diferentes entre si, todos igualmente encantadores. Os espaços mais exuberantes são o lago central, dominado por um grande espelho de água habitado por estatuetas e animais e alimentado por uma cascata copiosa, e os jardins orientais, onde a água e a vegetação densa predominam, decorados com esculturas, bancos, lanternas orientais em pedra, pagodes em várias versões e lagoas com peixes Koi.
Os Jardins Majorelle, em Marraquexe, foram criados pelo pintor francês Jacques Majorelle nas décadas de 1920-30, e mais tarde restaurados e desenvolvidos pelo estilista Yves Saint Laurent. O design meticuloso destes jardins é uma fusão ecléctica de estilos que combina elementos art deco, do artesanato berbere e da arquitectura mourisca. A paleta de cores vibrantes dos elementos construídos contrasta com o verde hegemónico das plantas e brilha sob o sol marroquino. Com palmeiras imponentes, cactos, buganvílias e uma variedade de plantas suculentas em harmoniosa coexistência, definindo cenários visualmente inesperados, estes jardins são uma mistura única de influências artísticas, botânicas e culturais, um oásis exótico e tranquilo no coração da cidade.
Em Ponte de Lima, os jardins do Parque Temático do Arnado são um patchwork de quatro estilos diferentes de jardins. Há um jardim romano, com piso de mosaicos e uma colunata de tijolo e pérgulas que rodeiam um lago ajardinado. No jardim barroco, o tema são as rosas, declinadas em várias cores, com canteiros delimitados por buxo ao estilo dos parterres franceses. O jardim labirinto desenvolve-se em torno de uma folly de metal, colocada numa zona mais elevada e ornamentada com jasmins, onde também crescem belos exemplares de ácer japonês. E no jardim Renascença há ciprestes e canteiros de azáleas e rododendros, e água que escorre por uma parede de pedra em socalcos. Aos jardins temáticos soma-se um horto botânico com uma estufa feita de ferro forjado cor de chumbo, que num dos lados está adjacente a dois lagos com nenúfares.
Num recanto do bairro judeu de Hervás, em Espanha, há uma surpreendente preciosidade: o pátio dos cactos. São mais de 6000 cactos de todos os géneros, que crescem nos suportes mais estranhos e originais que podemos imaginar, e cobrem completamente as paredes e boa parte do piso do minúsculo pátio de uma casa particular. É com imenso carinho e cuidado que o dono da casa conserva este invulgar jardim em miniatura, abrindo as suas portas aos visitantes.
Demonstrações de grandeza
Foram concebidos como símbolos de magnificência, destinados a exibirem ao mundo a riqueza dos seus promotores – monarcas, líderes políticos, nobres, comerciantes endinheirados. São os chamados jardins monumentais, de que existem inúmeros exemplos sobejamente conhecidos – como os de Versalhes, Schönbrunn ou Villa d’Este, só para citar alguns; ou ainda, entre os portugueses, o Jardim Episcopal de Castelo Branco, os do Palácio de Queluz, ou os do Solar de Mateus, em Vila Real. Estilos habituais nestes jardins são o renascentista italiano e o francês, demonstrativos das habilidades técnicas e da imaginação dos seus criadores. Locais de entretenimento e de socialização onde se cruzavam as elites intelectuais e artísticas, os jardins monumentais contribuíram ao longo dos séculos para o florescimento da criatividade e do intercâmbio de ideias.
Os famosos Jardins de Boboli, em Florença, são um modelo exemplar de jardim renascentista italiano. Começados no séc. XVI e ampliados nos séculos seguintes, estendem-se por um plano inclinado com vistas amplas sobre a cidade, que lhes serve também de cenário. Cobrindo uma área de aproximadamente 45 mil metros quadrados subdividida de forma regular em socalcos, os espaços verdes são definidos por caminhos regulares e ornamentados por escadarias grandiosas, terraços panorâmicos, estátuas, grandes fontes, e cavernas artificiais decoradas com pinturas.
Nos arredores de Londres, aninhados numa curva do Tamisa, os jardins do Palácio de Hampton Court ocupam mais de 240 mil metros quadrados e albergam o labirinto mais antigo do mundo, uma vinha que bateu um recorde e três colecções nacionais de plantas. Mandados construir por Henrique VIII em 1528, estes jardins relativamente modestos transformaram-se, desde essa altura, em luxuosos jardins de lazer com canteiros, estátuas e fontes. O seu extenso canal foi mandado abrir por Carlos II para preparar a chegada da sua noiva, Catarina de Bragança. No século XVII, durante o reinado de Guilherme III e Maria II, os jardins de Hampton Court tornaram-se famosos pela sua beleza e requintado desenho barroco. Data desta altura a criação do labirinto, do Jardim Privado, e do Jardim da Grande Fonte original. Os teixos deste jardim foram domados até adoptarem a sua peculiar forma de cogumelos, e mantêm-se de pé há mais de 300 anos.
Tal como a vemos hoje, a Casa da Ínsua, em Penalva do Castelo, foi construída no último quarto do séc. XVIII a mando de Luís de Albuquerque e Mello Pereira e Cáceres, um fidalgo cavaleiro da Casa Real que foi o quarto governador e capitão-general da capitania de Mato Grosso, no Brasil. Únicos, tanto como pela sua dimensão como pela originalidade e variedade de espécies botânicas, os jardins oitocentistas da Casa da Ínsua dividem-se em vários espaços, cada um deles concebido de acordo com estilo e finalidade diferentes. Há o francês, com os seus parterre geométricos e um lago com flores de lótus indianas, que florescem entre Junho e Julho e só vivem 48 horas. Há o inglês, mais selvagem, com muitos arbustos e árvores de grande porte – sequóias, cedros, paus-brasil. Há o dos aromas, com flores e um canteiro onde estão plantadas videiras das castas usadas para os vinhos Casa da Ínsua. Há um tanque com patos e um cisne, e há fontes, mesas e esculturas em pedra.
Sejam modestos ou sumptuosos, concebidos por grandes paisagistas ou meramente nascidos como hobby de um qualquer cidadão anónimo, apenas frequentados pelos habitantes de um bairro ou visitados por milhares de turistas anualmente, os jardins são uma ponte entre as pessoas e a natureza, e revelam muito sobre a cultura de cada sociedade ao longo dos tempos. Mas o seu maior feito é, sem dúvida, contribuírem – imenso! – para a nossa felicidade.
(Adaptação de um artigo publicado pela primeira vez no blogue Delito de Opinião)
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