Impressões de Bruxelas
Haverá melhor maneira de entrar no Ano Novo do que em viagem?
Sim, é verdade, a pergunta é retórica. Só que… por estranho que pareça (até mesmo a mim me parece estranho…), até agora nunca tinha feito nenhuma passagem de ano fora de Portugal. Mas há uns meses deu-me para começar a matutar no assunto, e deve ter ocorrido uma qualquer conjugação astral favorável às minhas intenções que fez com que tudo se resolvesse milagrosamente a meu contento e a tempo – e quando dei por mim estava em fins de Dezembro num avião a caminho de Bruxelas, com viagem de volta marcada para um dia já em Janeiro.
Porquê Bruxelas, perguntam vocês? Pois porque ainda não conhecia a cidade, e porque tenho lá amigos, e também porque me pareceu que fosse uma cidade animada o bastante para ser interessante visitá-la nesta época, sem no entanto me arriscar às grandes confusões e atropelos habituais em tantas outras cidades nestas alturas. Gente aos magotes pode estragar completamente a minha habitual boa disposição quando ando em viagem.
Os dias de Inverno têm sempre duas desvantagens: o frio e as poucas horas de luz diurna. Ir para um país mais a norte na Europa nesta estação foi um bocado arrojado da minha parte – e apesar dos zero graus que estavam em Bruxelas na véspera da minha partida, nem sequer havia a compensatória perspectiva de vir a cair neve. Mas mais uma vez a minha sorte do costume não me abandonou, e nos dias que lá passei a temperatura nunca esteve assim tão baixa. Quanto à falta de luz, se é verdade que nunca vi o sol, a curta duração dos dias foi compensada pela possibilidade de apreciar as iluminações variadas e os espectáculos de luz e som que animam a cidade nesta época festiva.
Visitar uma cidade tendo como guia alguém que lá vive há muitos anos é um privilégio, maior ainda quando essa pessoa conhece bem a história do país e tem o dom de saber conversar e chamar a nossa atenção para pormenores nos quais se calhar habitualmente não repararíamos. A minha estadia em Bruxelas foi por isso um misto de descanso e passeio, entre as visitas aos lugares icónicos obrigatórios e a surpresa sempre agradável de descobrir alguns “achados” interessantes – assim uma espécie de circuito feito “à medida” dos meus gostos pessoais.
À primeira vista, Bruxelas é cinzenta e meio desenxabida, sem aquela monumentalidade que entra pelos olhos adentro que possuem outras cidades europeias. Mas o que lhe falta em grandiosidade é compensado pela diversidade da sua arquitectura – sobretudo residencial – que só aparentemente é monótona. Durante o reinado de Leopoldo II, que subiu ao trono em 1865, Bruxelas foi palco de uma enorme revitalização, suportada por uma economia abastada e florescente. Recusando a uniformidade, cada proprietário tentou que a sua casa se destacasse das demais, e o resultado ainda está hoje bem visível. Para minha surpresa e meu enorme contentamento, a cidade está pejadinha de edifícios Arte Nova (de que sou uma apaixonada indefectível) e Art Déco, entre outros, mais abundantes e alguns igualmente felizes, no estilo modernista bruxelense.
O arquitecto mais famoso dessa época foi Victor Horta (1861-1947), pioneiro da Art Nouveau no país, de quem algumas obras estão inclusivamente reconhecidas como Património Mundial da UNESCO. A casa Van Eetvelde é uma delas, e podemos vê-la nos números 2 e 4 da Avenue Palmerston – construída em três fases, tem duas fachadas diferentes, uma mais ousada e outra mais convencional.
Na mesma rua mas no número 24 destaca-se a Villa Germaine, uma construção de 1897 em estilo eclético que não está atribuída a nenhum arquitecto específico, assimétrica, policromática e muito original.
Ali perto, o número 11 da Square Ambiorix tem aquela que é para mim a fachada mais fascinante das casas que vi. Concebida por Gustave Strauven, um discípulo de Horta, foi domicílio do pintor Georges Saint-Cyr e é uma obra extravagante e até mesmo algo excessiva: quatro varandas sobrepostas, todas diferentes, ostentando uma orgia de ferros imbricadamente forjados e com janelas a condizer – e tudo isto numa fachada de apenas quatro metros de largura. Uma autêntica “folie”!
Outro edifício famoso é a Maison Cauchie, construída em 1905 pelo arquitecto e pintor Paul Cauchie para aí viver e trabalhar com a sua mulher Lina. Exemplo máximo da técnica decorativa mural a que se deu o nome de sgraffito, esta casa situada no número 5 da Rue des Francs ilustra bem a aplicação do princípio da “arte total”, em que a distinção entre as artes ditas “mais nobres”, como a pintura, a escultura ou a arquitectura, e as chamadas “artes decorativas” se esbate, todas elas contribuindo com igual peso para o resultado final da obra.
A Maison Cauchie fica mesmo ao pé de outro dos lugares que é obrigatório visitar em Bruxelas: o Parque do Cinquentenário. Criado em 1880 a mando de Leopoldo II para celebrar, como o nome indica, os 50 anos da independência do país (apesar da história das regiões que hoje constituem a Bélgica se perder no tempo, o país tal como existe hoje é muito jovem), abrigou a Exposição Nacional organizada no mesmo ano. É uma área enorme facilmente identificável pelo Arco do Triunfo que faz parte do Palácio e que nos remete imediatamente para as Portas de Brandeburgo – mas com uma dimensão muito mais imponente. Os seus edifícios são hoje em dia usados como museus e para a organização de exposições e congressos. No canto mais a norte, a Mesquita Grande de Bruxelas ergue-se ao lado do Pavilhão Horta-Lambeaux, onde pelo buraco da fechadura (o edifício apenas abre ao público durante curtos períodos diurnos no Verão) podemos espreitar o enorme, impressionante e muito polémico baixo-relevo em mármore de Carrera executado por Jef Lambeaux para ilustrar as “Paixões Humanas” – um belíssimo mural de 12 metros de comprimento com 8 metros de altura, uma obra de fôlego que criou grande agitação na altura em que foi revelado ao público (devido à nudez das suas figuras, e não só).
Saindo do Cinquentenário pelo lado oeste estamos em Schuman, que é mais ou menos a porta de entrada do Bairro Europeu. Aqui o ambiente é outro, respira-se modernidade em cada esquina de cada edifício, entre os gradeamentos de metal que cobrem o Berlaymont (sede da Comissão Europeia), o aspecto austero do edifício Justus Lipsius, onde têm lugar as reuniões do Conselho Europeu, ou os muitos metros quadrados de vidro do Charlemagne (actualmente desactivado), do Lex e do Europa – um cubo gigantesco que integra nas fachadas caixilhos de janelas que pertenceram a construções desmanteladas de todos os países da EU, e mantém num dos seus flancos o Palace Résidence, um edifício Art Déco criado por Michel Pollak nos anos 20 do século passado. E estes são apenas alguns exemplos dos inúmeros edifícios onde funcionam as instituições que gerem a União Europeia. É uma outra Bruxelas, esta não muito diferente de qualquer outra grande capital europeia.
Mas voltemos ao que dá a Bruxelas o seu carácter próprio. Uma dessas coisas define-se em duas palavras: batatas fritas. Sim, é isso mesmo. Em Roma, sê romano; em Bruxelas, come “frites”. De preferência as da Maison Antoine, as mais genuínas (é o que consta…), onde todos os bruxelenses vão. Fica na Place Jourdan, praticamente paredes-meias com o Bairro Europeu, e começou por ser, em 1948, uma simples roulotte chamada “La Friterie Antoine”. A popularidade foi crescendo e hoje é um pavilhão respeitável e modernaço, com uma cozinha a funcionar de acordo com as normas europeias e os preceitos de higiene devidos, de onde saem caixinhas de papel cheias de batatas fritas umas atrás das outras. A Maison Antoine saltou para as páginas dos media internacionais quando há coisa de três anos Angela Merkel decidiu passar por lá para se abastecer de “frites” (e abastecer o seu staff, que sozinha seria difícil comer 45 porções das ditas cujas…), e a sua fama cresceu ainda mais. As filas são sempre grandes e o tempo de espera é suficiente para escolher entre os mil e um tipos de molhos diferentes que podem acompanhar as batatas, desde os clássicos mayonnaise, cocktail ou moutarde até aos mais estranhos méga ou bicky hot. Além das “frites” é possível comer prosaicos hambúrgueres, croquetes, brochettes (mini espetadas) ou as populares mitraillettes (sanduíches de vários tipos de carne com – claro! – batatas fritas lá dentro), e mais um sem número de petiscos diferentes, cada um mais calórico que o outro. Comida na mão, embrulhada em papel para não arrefecer, entra-se depois num dos vários bares/cafés que há em frente, com um bocado de sorte encontra-se uma mesa livre e pedem-se as bebidas. Os toldos cá fora são bem explícitos: “frites acceptées”. Se não optassem por esta estratégia, provavelmente estariam vazios a maior parte do tempo. O espírito cooperativo funciona lindamente neste caso e podemos comer as nossas batatas fritas abrigados e quentinhos. E sim, as batatas fritas da Maison Antoine são muito boas.
E a propósito dos ex libris de Bruxelas, que são vários, o maior (em todas as acepções da palavra) e incontornável símbolo da cidade é sem dúvida o Atomium. Misto de escultura e edifício – Bruxelas parece dominar com maestria a arte da integração – o mínimo que se pode dizer desta obra é que é surpreendente, e pela positiva: é muito mais bonito ao vivo do que em qualquer imagem que eu já tenha visto até hoje. Destaca-se orgulhosamente num dos extremos a norte da cidade (apesar de ser cinzento contra um céu que é quase permanentemente dessa cor), rodeado pelo verde de enormes parques e sem outras grandes construções por perto que lhe façam concorrência, e o único defeito que posso apontar-lhe são as filas monstruosas de gente que estava lá para o visitar e que imediatamente me desencorajaram de querer fazer o mesmo. Idealizado por André Waterkeyn e parcialmente projectado pelos arquitectos André e Jean Polak para a Expo 58, quando se acreditava ingenuamente que o futuro da humanidade estava ancorado na energia nuclear, tem nove esferas (representando um cristal de ferro aumentado 165 mil milhões de vezes), cinco das quais estão abertas ao público com exposições permanentes e temporárias. A esfera superior, à qual se acede directamente de elevador, tem o nome de Panorama, e além de um restaurante oferece uma vista de 360 graus sobre a cidade, a 102 metros de altura.
Ali perto, a pouco mais de 1 km, na orla nordeste do Parque de Laeken, tive mais uma agradável surpresa. Se, como eu, tiverem um fraquinho por edifícios orientais, então não deixem de ver a Torre Japonesa e o Pavilhão Chinês. Mandados construir também por Leopoldo II no início do séc. XX, ficam mesmo junto à avenida Van Praet, duas visões bem coloridas que surgem no meio das árvores do parque. O Pavilhão é uma fantasia orgíaca de arrebiques e dourados sobre azul profundo, um edifício elaboradíssimo com varandas e painéis de madeira trabalhada que foram propositadamente esculpidos em Xangai. A Torre ergue-se bem acima das copas das árvores, um paralelepípedo gigante de cor vermelho-lacre com cada piso marcado por um telhado, como é típico nos pagodes. Até há alguns anos, todo este conjunto (que inclui jardins, um outro edifício e ainda uma folly) abrigava o Museu do Extremo Oriente, mas por questões de segurança o complexo encontra-se agora fechado, à espera de renovação, e só se pode ver o exterior dos edifícios. A colecção permanente do museu está actualmente guardada no Museu do Cinquentenário.
Mas voltemos aos ex libris. De certeza que já ouviram falar no Manneken Pis, a fonte com o rapazinho a fazer xixi. Fica no recanto de uma rua perto da Grand-Place e é uma escultura pequenina (pouco mais de meio metro de altura) e escura num fontanário protegido por um gradeamento, com um magote de gente à frente a tirar fotografias. A notoriedade deve-se certamente à natureza caricata da ideia, que é de autoria desconhecida mas já velha de séculos: o “boneco” data do séc. XIV, mas a imagem que está actualmente em exposição é uma cópia criada em 1818, depois do original ter sido roubado e feito em pedaços.
Muito mais recente (foi instalada em 1987), encontramos o contraponto feminino do Manneken Pis também no centro da cidade, no Impasse de la Fidélité, ao pé de uma rua cheia de bares entre a Bolsa e as Galerias: chama-se Jeanneke Pis e é – obviamente – uma fonte com a escultura de uma menina agachada… a fazer xixi. Menos popular que o rapazinho, já começa mesmo assim a ser ponto obrigatório de “romaria” turística. Foi doada por um benemérito que queria dar qualquer coisa ao seu bairro, e a boa intenção inicial tem sido perpetuada, pois todas as moedas que os visitantes atiram para dentro desta fonte são doadas para a pesquisa contra o cancro. E existe ainda uma versão canina do tema (que eu no entanto não tive oportunidade de ver “ao vivo”), o Het Zinneke – às vezes também chamado de Zinneke Pis – com a diferença de ser apenas a escultura de um cão de pata alçada junto a um pilarete de metal, e não um fontanário.
Já falei das desvantagens de viajar no Inverno, mas agora vou falar de uma vantagem: as iluminações. Na época natalícia, as grandes cidades parece que concorrem entre elas para ver qual tem as decorações iluminadas mais bonitas e os espectáculos de luz e som mais originais. Bruxelas não podia ser excepção, e sendo as noites tão longas confesso que me soube muito bem passear nas ruas inundadas de luz e assistir ao espectáculo na Grand-Place e a outro, mais curtinho e menos grandioso mas igualmente encantador, nas Galeries Saint-Hubert.
E depois há a street art, as livrarias, os chocolates, os mercadinhos de rua e mais mil e uma coisas interessantes para ver e fazer.
Se gostei de Bruxelas? Gostei sim, e bastante mais do que estava à espera. Tanto que hei-de repetir um dia destes.
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