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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Qua | 26.01.22

Histórias da água e da pedra na Beira Baixa

 

É de água e de pedra que são feitos muitos dos lugares mais memoráveis do nosso país. A água que vai abrindo caminho entre a rocha, de onde os homens tiram a pedra para dela nascerem estradas, pontes, muralhas, abrigos… A pedra que se ergue da água, e a água que a desgasta. Ou a água que desaparece, ou muda de curso, expondo a pedra que em tempos escondeu.

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Desta vez vamos passear por terras da Beira Baixa onde a dança entre estes dois elementos tem deixado marcas e histórias desde tempos bem longínquos, nalguns sítios até anteriores à presença humana. Fazem-me companhia?

 

 

Santuário de Nossa Senhora do Almurtão

 

Senhora do Almurtão,

Minha tão linda arraiana!

Virai costas a Castela,

Não queirais ser castelhana.

 

Olha a laranjinha que caiu, caiu.

Num regato de água, nunca mais se viu.

Nunca mais se viu, nem se torna a ver.

Cravos à janela, rosas a nascer.

 

Senhora do Almurtão

à vossa porta cheguei.

Tantos anjos me acompanhem

como de passadas dei.

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Acompanhadas pela batida dos adufes, estas e outras quadras são cantadas todos os anos durante a romaria à Senhora do Almurtão – ou Santcam Mariam Almortam, como está mencionada no foral concedido em 1229 por D. Sancho II a Idanha-a-Velha. Esta devoção velha de séculos é celebrada duas semanas depois da Páscoa, no santuário que se ergue isolado a uma dezena de quilómetros da vila de Idanha-a-Nova, sede do município. Com vista para a imensidão parada e quase nua dos campos desta zona da Beira Baixa, aqui sentimos na pele o isolamento das regiões interiores do nosso país, onde as condições de vida nunca foram fáceis. É, por tudo isto, um bom sítio para começar o nosso passeio.

 

 

Idanha-a-Velha

 

É aldeia histórica, daquelas bem antigas, mas a fama não lhe subiu à cabeça. Mantém um ambiente plácido e despretensioso, a pedir conversas à sombra de uma árvore e sesta em tardes de calor. Com raízes fundas no séc. I a.C., foi Civitas Aegitidanorum para os romanos e depois Egitânia para os visigodos, e ainda hoje existem vestígios da sua importância milenar, que só começou a diminuir no séc. XVI.

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Em Idanha-a-Velha a pedra é omnipresente. Nos edifícios restaurados, nos monumentos, nas ruínas. Em cada canto há vestígios do passado, perpetuados em pedra. Ela está nos grandes blocos do troço da muralha robusta que nos acolhe à chegada, e nas casas de dimensão modesta que convivem, ombro a ombro e sem conflitos, com outras pintadas de branco. Está na Igreja Matriz, com a torre enfeitada por um catavento de metal e por cegonhas de carne e osso, penas e bico, e no pelourinho do século XVI que lhe faz companhia. Está, sobretudo, na Igreja de Santa Maria, que foi Sé Catedral da visigótica Egitânia e mais tarde mesquita, e é provavelmente a face mais visível da história desta região. Sucessivamente utilizada e modificada ao sabor das vontades dos vários povos que por aqui passaram (suevos, visigodos, muçulmanos, cristãos), teve sempre como denominador comum o facto de ser um local de culto, função que apenas perdeu no séc. XIX. Agora faz parte de um museu e vive rodeada de outras pedras, trazidas à luz do dia por escavações ou encontradas sabe-se lá onde, muitas delas com letras, inscrições, desenhos, testemunhas mudas de tantas histórias que desconhecemos.

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Idanha-a-Velha está encaixada num cotovelo do rio Pônsul, que a rodeia quase completamente. Pouco caudaloso e tranquilo, do lado nascente a sua travessia faz-se sobre uma ponte, também de pedra e também de origem romana, sob a qual a água passa tranquila e transparente, apenas agitada por apressados cardumes de peixes. Do lado oposto da aldeia não há ponte para o atravessar, mas há pedras – poldras, para ser mais precisa, reaproveitadas de silhares romanos, perfeitas para um exercício de equilíbrio.

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O passeio tende a ser demorado, há que dar tempo aos olhos para absorverem todos os pormenores: as rosas que trepam pelas fachadas, a velha amoreira que dá o nome a uma das ruas, os detalhes arquitectónicos do solar da família Marrocos, abandonado desde os anos 50 e ainda à espera de quem pegue no projecto da sua reconversão em hotel. A pedra continua presente nas capelas, que são várias: a de São Dâmaso, a de São Sebastião e a do Espírito Santo. Há um forno comunitário e um lagar de varas; há os palheiros de São Dâmaso, que agora albergam a oficina de arqueologia; há um arquivo epigráfico, e uma Torre dos Templários. Há muito que ver nesta aldeia, meio perdida no limbo entre um passado que foi florescente e um futuro que continua incerto.

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Monsanto

 

Pedra e Monsanto são quase palavras sinónimas – não gramaticalmente, mas na prática, porque é o granito cinzento que primeiro nos vem à memória quando pensamos nesta aldeia. Vista de longe, confunde-se com a serra e não é possível distinguir entre as casas e a rocha. Umas e outra vivem em harmonia, e nalguns casos mesmo em regime de coabitação.

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Cravada na encosta escarpada, o passeio faz-se entre subidas e descidas nas ruas pavimentadas com paralelepípedos de granito. A leste e oeste, as “portas” que marcam antigos limites da aldeia, quando a chegada ainda não se fazia por carro. São muros altos com uma passagem em arco, estrategicamente colocados cada um junto à sua capela: a de Santo António no lado poente, e a do Espírito Santo a nascente. Preteridas em favor do acesso asfaltado que faz a ligação mais fácil à N239, a Igreja Matriz de São Salvador é actualmente o primeiro edifício religioso que vemos ao chegar. Data dos séculos XV-XVI mas tem elementos barrocos – como aliás sucede com grande parte do património religioso português.

 

Vamos seguindo pelas ruas entre casas que parecem ter brotado dos penedos, aproveitados sempre que possível para substituir uns alicerces, parte de uma parede, ou até mesmo um telhado. A uniformidade pardacenta da pedra é quebrada por vasos com plantas e roseiras que trepam pelas fachadas. Passamos pela Igreja da Misericórdia, renascentista e a fazer lembrar uma pirâmide. Atrás dela, o ex libris de Monsanto, a Torre de Lucano, com o seu relógio, os seus sinos e o seu galo, que parece de prata mas não é – é apenas uma cópia do verdadeiro, o que foi oferecido em 1938 quando Monsanto ganhou o título de “aldeia mais portuguesa de Portugal”, ainda hoje colado a ela como uma segunda pele.

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Subimos para sul. Do Miradouro – há outros, mas este parece ser o “oficial” – temos a vista mais fotogénica sobre os telhados da aldeia, mas ainda assim não é suficiente. Há que subir mais, primeiro para conhecer as ruínas da Torre do Pião e da Capela de São Miguel, em volta da qual cresceu a aldeia a partir de finais do século XII mas hoje isolada do casario, que optou pela protecção da encosta mais abaixo. Depois trepamos finalmente ao Castelo, heróico resistente a invasões várias durante séculos, mas que acabou por soçobrar no século XIX à explosão acidental da pólvora guardada no seu paiol e ao desabamento de um penedo sobre a muralha.

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A 758 metros de altura, este é o ponto mais elevado da região, e daqui a vista alcança dezenas de quilómetros em toda a volta, estendendo-se até para lá da nossa própria fronteira. Neste lugar, não há como não nos sentirmos pequeninos…

 

 

Penha Garcia

 

Penha Garcia tem duas caras. Uma é a que vemos antes de chegar, a partir da estrada. Daqui parece apenas mais uma aldeia pacata e sem grande novidade, estendendo-se pela encosta da serra granítica que tem o mesmo nome. Depois começamos a percorrer as suas ruas íngremes, que desembocam em minúsculos largos rodeados de casas em pedra ou brancas de cal, com cortininhas de renda nas janelas. Passamos pelo jardim que homenageia os Combatentes da Guerra no Ultramar, vamos subindo até ao pelourinho e à igreja, e finalmente trepamos até ao castelo. Não é muito mais do que uma pequena muralha reconstruída, pedras que formam um arco e umas ameias, mas tem duas vantagens: a primeira é a vista desafogada sobre o casario da aldeia e a verde planície beirã; a segunda é revelar a outra face de Penha Garcia, aquela que nos faz abrir a boca de espanto e que a aldeia oculta a quem comete o pecado de a ignorar – e é, fica aqui o aviso, um dos meus lugares favoritos em Portugal.

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Este lado da serra é um impressionante maciço quartzítico que foi escavado pelo rio Pônsul, e antes disso pelas águas primordiais que configuraram o nosso planeta. Também aqui água e aedra estiveram em simbiose para formar uma paisagem a todos os títulos extraordinária. O rio está represado desde finais dos anos 70 e agora corre pelo vale apenas em versão de ribeiro. Nas margens do Pônsul sobrevivem azenhas, em tempos importantes para a vida da aldeia e hoje já praticamente todas recuperadas, agora para fins turísticos. Fazem parte do Complexo Moageiro e desvendam-nos pormenores sobre técnicas de moagem tradicionais e a vida dos moleiros.

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Mas as surpresas não se ficam por aqui. As paredes rochosas deste desfiladeiro estão marcadas, em vários pontos, por icnofósseis – rastos deixados por trilobites há qualquer coisa como 480 milhões de anos (antes da existência dos dinossauros). As trilobites foram artrópodes da era Paleozóica, antepassados dos actuais crustáceos e insectos, e viveram exclusivamente em ambientes marinhos. Um antigo palheiro foi convertido na Casa dos Fósseis, onde estão expostos centenas de espécimes de icnofósseis e vários minerais característicos do local.

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Nesta espécie de anfiteatro de rocha, a água quase poderia passar despercebida, mas não é o caso. O rio corre solto entre árvores e penedos pela maior parte do vale, e as suas águas foram aproveitadas para criar um recanto ao qual o adjectivo “idílico” serve como uma luva: é a praia fluvial do Pego, uma espécie de piscina rodeada por um passadiço em madeira e alimentada por uma queda de água – e um daqueles sítios de onde não apetece sair.

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Termas de Monfortinho

 

Nas Termas de Monfortinho, a água é rainha. Encostada à fronteira entre Portugal e Espanha, com apenas a estreiteza do rio Erges a separar os dois países, a localidade vive essencialmente da água que brota da serra de Penha Garcia. Com uma temperatura de 29°C na nascente e um elevado teor de sílica (são indicadas sobretudo para problemas de pele), estas águas já eram apreciadas e utilizadas pelos Romanos, numa época em que toda a região tinha grande importância na Península Ibérica.

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Hoje em dia, as Termas de Monfortinho são procuradas sobretudo pela tranquilidade. Há todo um mundo de opções de balneoterapia, massagem e electroterapia à disposição de quem queira tratar algum problema específico ou, pura e simplesmente, relaxar. O edifício é dos anos 40 e tem o aspecto característico da arquitectura do Estado Novo, simétrico e de linhas direitas, com vários volumes dominados por um corpo central com arcadas, um pé direito altíssimo, e muitas vidraças. Quanto ao interior, esse foi completamente modernizado há uns bons anos para albergar todas as comodidades de um complexo termal actualizado, que inclui gabinetes médicos, salas específicas para os tratamentos, solário, piscina e dois ginásios.

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Em frente ao edifício das Termas há um pomar com bancos para repouso, que se estende até ao rio. Por aqui passa a Rota do Erges (PR6 IDN), um percurso pedestre circular com 5 km que se desenvolve em torno da localidade, percorrendo a agradável margem do rio e depois subindo a encosta arborizada por trás da Termas e do Hotel Fonte Santa, culminando no Miradouro da Serra do Cancho.

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Este pedaço meio ignorado da Beira Baixa tem muito para mostrar, e muito mais para contar. É terra de marafonas e adufes, das festas dos bodos, de vestígios arqueológicos e memórias que se perdem no tempo, de cozinha farta e que recupera a tradição, e de boas infra-estruturas turísticas. É terra para visitar com calma e com a certeza de que aqui há nunca haverá lugar para a monotonia.

 

(Este artigo foi publicado pela primeira vez no website Fantastic)

 

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