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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Qui | 06.07.23

Diário de uma viagem à Islândia XII

Entre dois continentes

 

O último dia de uma viagem tem sempre, para mim, um sabor agridoce. Por um lado, há aquela vontade de despachar um final já anunciado, colapsar as horas passadas na burocracia de um aeroporto, as filas, a espera, a vontade de que o avião acelere para chegar mais depressa a casa – a casa que é sinónimo de descanso, casulo e território conhecido. Por outro lado, há a tristeza de um período feliz que termina, dias de liberdade longe da rotina e dos horários de trabalho, longe das obrigações e das notícias que nos transtornam, do esforço diário de resolver os problemas e as chaticezinhas que se vão atravessando na minha vida, a vida de uma pessoa vulgar.

 

É por isso que quando tenho algumas horas disponíveis antes do voo de regresso, tento que elas sejam ocupadas com algo de memorável, para que este último dia seja menos estéril e dele fique com uma recordação feliz, não apenas a de um aeroporto e uma viagem de avião. Não é preciso que seja algo de extraordinário; basta-me um passeio num lugar agradável, ver algo de novo, ou revisitar um sítio de que gosto particularmente. E foi também esta a razão pela qual guardámos para a última manhã na Islândia a visita a um local especial – não por ser particularmente bonito, mas por ser uma curiosidade geográfica.

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Dia 12

 

Para a nossa última noite na Islândia tínhamos decidido ficar a uma curta distância do aeroporto. Até à hora do voo só tínhamos disponível a manhã, e queríamos aproveitar o mais possível até ao último minuto. Alojámo-nos em Þorlákshöfn, a uns meros 80 km de Keflavík, na Jonna Guesthouse. A casa fica num bairro tranquilo e o dono, que conhecemos ao pequeno-almoço, é um pescador, além de gerir o alojamento. Simpático e bem-humorado, fez-nos companhia enquanto arranjávamos a nossa comida, colocada à disposição dos hóspedes no balcão da cozinha e num grande frigorífico envidraçado. O quarto tinha espaço suficiente, incluindo mesa e cadeiras para comermos, e a cama era confortável. Gostei sobretudo da informalidade do ambiente.

 

Þorlákshöfn é uma localidade piscatória, e o único porto natural viável na costa sul da Islândia entre Grindavík e Höfn. Pode acolher navios e ferries, e durante muitos anos teve ligação marítima regular com as ilhas Westman, que ficam cerca de 70 km a sudeste. Na maior destas ilhas, Heimaey, ergue-se o vulcão Eldfell, que entrou em erupção em 1973. A totalidade da população teve de ser evacuada para Þorlákshöfn, e muitas dessas pessoas acabaram por ficar definitivamente instaladas na localidade – que, no entanto, tem apenas cerca de 1500 habitantes.

 

Em contraste com a atmosfera quase soalheira de quando tínhamos tomado o pequeno-almoço, deixámos o alojamento sob um céu a ficar pesado e sem nesga de sol, um bocado a condizer com o meu espírito. A vontade de continuar na Islândia era muita, mas o bilhete de regresso estava comprado e não havia volta a dar. Para esticar o passeio, demos uma volta pela localidade, que não difere grandemente da maioria das outras pequenas cidades islandesas. Construções muito espalhadas numa área completamente plana, parece uma espécie de cidade-Lego. As casas têm ar de paralelepípedos de brinquedo, baixas e simples, na sua maioria revestidas a chapa ondulada de cores neutras, uma ou outra em madeira. Quase todas têm jardim à volta, delimitado por arbustos e sebes, muitas delas também com árvores. Há meia dúzia de prédios com dois ou três pisos, e vários edifícios compridos que serão certamente fábricas ou armazéns. Isolada no meio de nada, ergue-se a Þorlákskirkja, a igreja local. Cinzenta como a atmosfera, feita em pedra e betão, e com telhado escuro de metal corrugado, as suas linhas modernas não iludem: foi construída em 1979 e consagrada, no rito protestante, em 1985.

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A Dorsal Mesoatlântica, cordilheira submarina que se estende pelo oceano Atlântico até ao Árctico, não se encontra totalmente submersa, emergindo em alguns pontos na forma de ilhas. Um dos seus locais mais elevados é o Pico, na nossa ilha açoriana com o mesmo nome; outro é o Hvannadalshnúkur, no glaciar Vatnajökull – precisamente na Islândia. A sua formação deve-se à divergência entre placas tectónicas, que estará na origem do afastamento entre os continentes, a um ritmo que se calcula ser de 2 cm por ano. No hemisfério norte, o limite em que as placas tectónicas norte-americana e eurasiática divergem passa pela península de Reykjanes, onde se situam o vulcão Fagradalsfjall (cujas duas erupções recentes ainda estão na memória) e o aeroporto de Keflavík.

 

É exactamente por isso que foi construída nesta península, sobre o vão que mostra nitidamente a deriva continental, a Miðlína – que significa “linha central” e é mais conhecida como Ponte Entre Continentes.

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De acesso exclusivamente pedonal, foi inaugurada em Julho de 2002, e tem uma função simbólica e ao mesmo tempo educativa, chamando a atenção para o facto de as placas tectónicas norte-americana e eurasiática estarem continuamente a afastar-se uma da outra, um dos fenómenos geológicos mais importantes do nosso planeta, pese embora tão lento que muita gente certamente o desconhece. Com 18 metros de comprimento, a ponte está suspensa a 6 metros de altura sobre um desfiladeiro de areia cinzenta, delimitado por formações rochosas mais elevadas. Construída em metal, com protecções laterais elevadas para evitar quedas e um piso gradeado para deixar ver o chão mais abaixo, cada uma das suas extremidades está apoiada num continente diferente – geologicamente falando.

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Uma placa assinala o centro da ponte, local onde simbolicamente podemos sentir-nos estar com um pé na Eurásia e outro na América. Junto a cada entrada, um painel dá as boas vindas à respectiva placa tectónica, descrevendo o fenómeno e prestando informações sobre cada uma. Um explica que a placa euro-asiática é a maior do planeta, que nela se encontram algumas das formações rochosas mais antigas da crosta terrestre, e que é pressionada a sudeste pelas placas indiana e australiana, as quais derivam para norte. Esta colisão dá origem aos Himalaias. O painel do lado norte-americano refere que enquanto a separação entre África e América do Sul começou há 135 milhões de anos, a da Eurásia e América do Norte só teve início há 65 milhões de anos.

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O primeiro nome dado a esta estrutura foi Ponte de Leif, o Sortudo. A intenção foi homenagear Leif Erikson, que viveu entre finais do século X e princípios do Século XI e terá sido – segundo rezam as sagas islandesas – o primeiro europeu a pisar solo americano, cerca de 500 anos antes de Colombo ter reclamado para si a descoberta do continente. Leif era norueguês (na altura, a ilha que é hoje a Islândia pertencia à Noruega) e terá chegado a terras americanas por volta do ano 1000, liderando uma expedição que acabou por estabelecer uma base de inverno na região a que chamaram Vinlândia e se presume ser a actual ilha da Terra Nova.

 

Apesar de estar num local afastado de tudo, a ponte é bastante popular – e não escapa à praga dos cadeados que assola as pontes metálicas que encontramos por essa Europa fora.

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O resto da manhã foi ocupado com tarefas comezinhas: atestar o depósito do carro, comprar alguma coisa para comer antes do voo, e devolver o Dacia Duster que tinha sido nosso companheiro de aventuras durante aquelas quase duas semanas. Os voos de regresso (com escala em Frankfurt, à falta de ligação directa a Lisboa) foram normais e sem história, mas cheguei a Portugal já com saudades da Islândia.

 

Escrevo este último post quase três anos volvidos sobre a viagem, por isso posso dizer com toda a certeza que esta road trip pela Islândia foi uma das viagens mais marcantes que fiz até hoje. Vários factores contribuíram para isso, e um dos mais importantes terá sido sem dúvida o facto de ter sido em 2020, o primeiro ano da pandemia, quando a vaga inicial deu tréguas e alguns países começaram a abrir as suas fronteiras. O privilégio de viajar sem restrições – sem uso obrigatório de máscara, nem quaisquer regras impostas de distanciamento social – depois de um período tão complicado e assustador, e o facto de o país ter na altura um turismo apenas residual (por comparação com o que costuma ter em época alta), pesaram muito na impressão geral com que fiquei da viagem. Um mês de Julho algo frio mas praticamente sem chuva, com dias intermináveis e um céu “nocturno” absolutamente surreal, contribuiu para o meu encantamento.

 

Outro factor não menos importante foi a simplicidade e simpatia dos islandeses. Apesar de reservados e não sendo habitual desfazerem-se em sorrisos, são corteses q.b., eficientes e amigáveis para os visitantes. Sem mostrarem ostentações desnecessárias, nota-se que há na generalidade um grande nível cultural e de desenvolvimento, fruto do tipo de educação que dão às crianças e de terem ensino gratuito praticamente até à Faculdade. Na Islândia prezam-se as tradições, a língua e a cultura, e a taxa de leitura no país é elevada. Aliás, é bem famoso o seu hábito de oferecerem livros no Natal, costume que até tem direito a um nome específico: jólabókaflóð (basicamente, “inundação de livros no Natal”).

 

Tudo isto, somado a alguns pormenores de ordem pessoal e à beleza fora de série do país, fizeram com que este destino, habitualmente qualificado “de sonho”, tenha não só cumprido esta expectativa, como até a tenha ultrapassado. É claro que nem tudo foram coisas boas, até porque não existem países sem defeitos. Mas na Islândia o excepcional superou o menos bom.

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De há uns anos para cá, sinto cada vez mais a necessidade de que as minhas viagens tenham uma componente forte de ligação à natureza. Continuo a apreciar a vida das cidades e a sua vertente cultural, mas tenho uma atracção maior pelos ambientes mais rurais e, sobretudo, por aqueles em que o Homem nada (ou pouco) interferiu. É neles que me sinto realmente em liberdade e onde consigo carregar melhor as minhas energias. Os dias que passei na Islândia foram, neste aspecto, compensadores muito além do que tinha imaginado – e por isso, para mim, esta viagem tocou a perfeição.

 

←Dia 11 da viagem: Na paisagem irreal de Landmannalaugar

 

O roteiro e várias informações práticas sobre a Islândia estão aqui: Coleccionar paisagens surreais na Islândia

 

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