Diário de uma viagem à Islândia XI
Na paisagem irreal de Landmannalaugar
Quando comecei a preparar esta viagem e fiz a lista dos lugares que queria obrigatoriamente visitar, Landmannalaugar foi dos primeiros que incluí. E decidimos reservar a maior parte um dia inteiro para fazer uma caminhada por esta região tão especial.
Dia 11
Com a viagem quase no fim, e assim em jeito de despedida em grande, preparámo-nos para passar o dia em Landmannalaugar. A logística incluía, obviamente, comida e água para várias horas, e agasalhos para todas as eventualidades – mesmo no Verão, o clima na Islândia é muito imprevisível e varia consoante a zona e ao longo do dia. Flúðir, onde tínhamos ficado alojados nessa noite, fica a cerca de 120 km de distância, que se converteram em quase duas horas de viagem pois uma parte do trajecto é feita em estradão sem asfalto.
O nome Landmannalaugar – pronuncia-se [ˈlantˌmanːaˌlœiːɣar̥] – significa “piscinas do povo” e deve-se ao facto ser uma área com nascentes de água quente que, tal como em muitos outros locais da Islândia, funcionam há séculos como lugares públicos para banho. Esta área, protegida desde 1979, faz parte da Reserva Natural de Fjallabak e é uma das mais procuradas para quem gosta de caminhar. Aliás, é aqui que começa o Laugavegur, um trilho de 55 quilómetros que liga Landmannalaugar a Thórsmörk (uma região que queríamos ter visitado na véspera, mas tivemos de desistir da ideia). O Laugavegur demora 3-4 dias a ser percorrido e foi considerado (pela National Geographic) um dos melhores trilhos pedestres do mundo. Ao longo deste trilho existem abrigos para pernoitar, mas esgotam com muita facilidade e há que reservá-los com bastante antecedência. É também possível fazer o percurso em grupo organizado, com um guia – uma opção mais segura para quem tiver pouca experiência em caminhadas de montanha.
Quem vai de carro pode optar entre dois parques de estacionamento. O mais próximo do início dos trilhos fica na área onde se encontra o Centro de Informação Turística, mas para lá chegar é necessário atravessar a vau um pequeno rio com algum caudal, suficiente para que a água quase chegue ao capô de um Dacia Duster. Felizmente, antes do rio há uma outra zona onde é permitido estacionar, ao lado da estrada, a apenas a umas poucas centenas de metros de distância, e foi aqui que deixámos o nosso carro. Depois seguimos pela planície, cruzando pequenas pontes de madeira e observando os condutores mais intrépidos (ou mais habituados) que se lançavam sem hesitação para as águas do rio. Ali ao lado, indiferentes à movimentação de carros e pessoas, vários carneiros e ovelhas pastavam tranquilamente, aproveitando a abundância de erva e a liberdade (em Setembro os donos recolhem-nas, para que passem o Inverno abrigadas, e só voltam a deixá-las à solta em Maio, após o nascimento das crias).
O trilho mais simples para quem só tem algumas horas disponíveis é o percurso circular Laugahraun-Graenagil. São cerca de 5,5 km com um desnível de 200 metros, que se percorrem com calma em duas horas e meia. O início fica entre o Centro de Informação Turística e a piscina natural de água quente: um simples carreiro de terra batida por muitos pares de botas, subindo por entre entre rochas negras com borrões de musgo verde, que se projectam como espinhos na crista da elevação.
Chegámos a uma espécie de planalto ondulante, repleto de lava petrificada, e foi como se de repente tivéssemos entrado numa pintura – talvez num quadro de Thomas Moran ou numa gravura de Hokusai. À volta de nós, um mar de montanhas ondulando umas por trás das outras, com bossas arredondadas e suaves, uma ou outra mais bicuda aqui e ali, coloridas em dégradés de verdes, em cinzas declinados até ao quase negro, em tons quentes entre o vermelho-ferrugem, o rosa-velho e o amarelo-esbranquiçado, passando por todos os ocres e castanhos que possamos imaginar. Havia manchas de neve reluzente aninhadas entre os declives, e as nuvens claras que cobriam o céu por completo lançavam um brilho difuso sobre toda a paisagem. Mais uma vez, senti-me invadida por uma sensação de irrealidade, o meu cérebro a recusar-se a processar o que via como sendo algo verdadeiro, maravilhada e ao mesmo tempo incrédula. E ainda hoje, quando olho para as fotografias que tirei (e que não têm nenhum tipo de edição), tenho dificuldade aceitar que reproduzem aquilo que realmente vi.
Este cenário dramático deve-se à presença de riólitos, uma rocha que é o equivalente vulcânico do granito, com uma composição onde predominam o quartzo e a sílica, responsáveis pela variedade de cores. A presença de outros minerais, como o ferro e o enxofre, adiciona ainda mais colorido ao ambiente. Resultando de milhares de anos de actividade vulcânica, Landmannalaugar é uma área geologicamente rara e inquestionavelmente bela – um daqueles lugares em que não podemos duvidar de que a natureza sabe o que faz, nem deixar de sentir preocupação pelo futuro da Terra.
Continuámos pelo trilho que atravessa o campo de lava de Laugahraun, formado após uma erupção que ocorreu em 1477, e depois começámos a descer. Nesta parte do percurso as rochas têm um aspecto mais suave, com a pedra meio desgastada pela acção dos elementos. Aos pés de um manto de neve ainda não derretido, passámos por um pequeno lago de água meio transparente, meio azul-turquesa pelo efeito óptico da neve submergida. Chegámos por fim ao vale, uma enorme área completamente plana, rodeada pelas montanhas multicoloridas – um gigantesco anfiteatro natural criado sabe-se lá por que deuses bem-humorados. As pernas agradeceram o terreno plano, e o fôlego também.
Do outro lado do vale esperava-nos nova subida, esta mais intensa. À esquerda, o Laugahraun; à direita, uma encosta abrupta, composta sobretudo por gravilha, feita de riscas coloridas que faziam lembrar uma manta tradicional: a Brennisteinsalda, uma montanha a que chamam “onda de enxofre” e cujo cume é acessível por um outro trilho pedestre. Mais à frente, fumarolas escapavam-se das encostas e do solo à nossa volta, com o já habitual cheiro activo destas manifestações vulcânicas. Aqui o percurso está delimitado por cordas presas em estacas, um aviso nítido de que não será boa ideia sair do caminho marcado.
Voltámos a entrar no campo de lava, que neste trecho é mais agreste: rocha com bicos e recortes agressivos ou obsidiana negra vidrada, com o trilho a tornar-se mais estreito, irregular, e mais lento de percorrer. Em caminhos deste tipo, um mero desequilíbrio pode dar origem a uma queda com consequências sérias.
Ao fim de uns bons 20 ou 25 minutos, nova mudança de cenário: chegámos ao desfiladeiro Graenagil, dominado pelo cinzento-esverdeado da montanha Blahnúkúr. Aqui o trilho começa a descer suavemente, contornando a orla sinuosa do Laugahraun até chegar ao nível do pequeno rio que corre no fundo do desfiladeiro. É uma zona mais fácil de percorrer do que a anterior, e gostei bastante deste trecho do percurso. Como já tínhamos esgotado uma parte das nossas reservas de líquidos, decidimos encher uma garrafa com água do rio, que parecia fresca e convidativa para beber. Só que… fresca estava, sem dúvida, mas sabia demasiadamente a enxofre. Não ficámos fãs, e acabámos por deitar fora o resto.
O desfiladeiro termina na vasta planície onde se encontram o Centro de Informação e o acampamento, e por esta altura estávamos praticamente no fim do percurso. Eram quatro da tarde e o céu continuava cinzento. O sol não tinha sequer espreitado entre as nuvens durante todo o dia, mas não estava demasiado frio (à volta de 12°C, o que até tinha ajudado a não aquecer demasiado durante a caminhada).
Quem gosta de acampar e quiser passar mais tempo na região tem a possibilidade de instalar uma tenda ou estacionar uma autocaravana na área de campismo que fica junto ao edifício do Centro de Informação Turística. Outro edifício proporciona alojamento em dormitórios (que necessitam de reserva prévia, sempre com muita antecedência), instalações sanitárias com duches e uma cozinha comunitária. Não há bomba de gasolina, e a única “loja” é um grande autocarro verde, que vende bebidas e alimentos fáceis de transportar numa caminhada, além de produtos básicos, como protector solar ou repelente de insectos.
E há sempre a hipótese de aproveitar a piscina natural de água quente que fica antes da entrada do Laugahraun. Com temperaturas entre 36 e 40°C, é praticamente como estar na banheira da nossa casa – apenas com a “simples” particularidade de ter de a partilhar com umas quantas dezenas de pessoas.
Para quem não tiver veículo 4x4 (obrigatório para transitar nas estradas F), há vários operadores turísticos (por exemplo a Reykjavík Excursions) que disponibilizam um autocarro diário entre Reiquiavique e Landmannalaugar, saindo da capital de manhã bem cedo (são mais de quatro horas de viagem para cada lado) e regressando a meio da tarde. E, claro, há sempre a hipótese de ir em excursão organizada – se bem que, na minha opinião, este passeio seja idealmente para fazer ao ritmo de cada um, e com tempo suficiente para apreciar o que vemos.
Landmannalaugar é um dos vários lugares na Islândia em que me senti ainda mais minúscula e insignificante do que o habitual, perante a natureza em bruto, intocada, que felizmente ainda subsiste no nosso planeta. E poder visitá-los é um privilégio, pelo qual me sinto sempre grata.
O dia seguinte seria o do regresso a casa, com voo marcado para o início da tarde, por isso tínhamos decidido passar a noite já mais perto de Keflavík. Ainda iríamos ter tempo para um curto passeio durante a manhã, mas no percurso de 170 km até Þorlákshöfn, a localidade onde fica o alojamento que tínhamos reservado, começou a instalar-se uma certa nostalgia. Valeu-me a paisagem para distracção – pois, contrariamente ao que possa parecer, viajar nas estradas islandesas é tudo menos monótono, e há sempre alguma surpresa à nossa espera.
←Dia 10 da viagem: O sul e o Círculo Dourado
Dia 12 da viagem: Entre dois continentes →
O roteiro e várias informações práticas sobre a Islândia estão aqui: Coleccionar paisagens surreais na Islândia
Já seguem o Viajar Porque Sim no Instagram? É só clicar aqui ←