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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Qua | 07.09.22

Diário de uma viagem à Islândia X

O sul e o Círculo Dourado

 

Muito do turismo na Islândia circunscreve-se à região sul, sobretudo ao chamado Círculo Dourado, uma rota de 300 km que passa por algumas das mais famosas atracções naturais do país. A relativa proximidade de Reiquiavique será uma das razões, e o clima algo menos agreste será outra. Nota-se um maior afluxo de pessoas em todo o lado. Sendo a maior região da Islândia (102 mil km2), tem muito que explorar. São precisos vários dias para visitar os seus lugares mais emblemáticos, e mesmo assim ainda ficará muito por ver.

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Dia 10

O primeiro objectivo deste dia era visitar Thórsmörk, o vale de Thor (esse mesmo, o deus viking dos trovões e das batalhas, e agora dos filmes da Marvel), uma reserva natural conhecida pela beleza das paisagens e famosa entre os amantes dos percursos pedestres. O acesso a partir da Estrada 1 (vulgo Ring Road) faz-se pela estrada 249, que ao fim de meia dúzia de quilómetros passa a ser F249. Neste caso, “F” significa “fjalla”, a palava islandesa para “montanha”, e nestas estradas só estão autorizados a transitar veículos 4x4. São estradas de terra ou areia com gravilha, pedregosas e nem sempre com boa manutenção, onde é frequente ser necessário atravessar rios ou ribeiros. Normalmente estão abertas apenas no Verão, dependendo das condições climatéricas. Como o Thórsmörk é bastante popular e já tínhamos percorrido outras estradas F – nomeadamente a F586, no noroeste, que nos tinha obrigado a passar alguns ribeiros a vau (a “aventura” está descrita aqui) – avançámos confiadamente durante uma vintena de quilómetros, com a trepidação habitual devida ao solo pedregoso mas dando graças por o percurso ser plano. Até que encontrámos um aviso à beira da estrada, grande, impossível de ignorar e graficamente intimidante, alertando que estávamos a entrar em território atravessado por cursos de água, que poderiam ser fundos e sobre os quais não existem pontes, pelo que só deveríamos prosseguir se tivéssemos um carro adequado e experiência em travessias a vau. Hesitámos em continuar, o nosso Dacia Duster não era propriamente o carro ideal, tinha servido para ribeiros quase rasos mas não sabíamos o que iríamos encontrar pela frente. E percorrer mais umas dezenas de quilómetros para eventualmente depois ter de voltar para trás sem chegarmos ao nosso destino seria um grande balde de água fria. Enquanto avaliávamos a situação, passaram por nós alguns veículos, que continuaram caminho sem vacilar – todos eles bem maiores do que o nosso, jeeps elevados que quase pareciam “bigfoots”, conduzidos por gente com ar de quem está habituada a fazer aquilo todos os dias. Menos confiantes do que eles, e com grande pena nossa, acabámos por jogar pelo seguro e decidimos inverter a marcha.

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É também na estrada 249, muito perto da Ring Road, que ficam duas cascatas cuja visita é altamente recomendável. Num universo estimado de 10 mil (!) quedas de água na Islândia, a certa altura podemos pensar que vamos começar a ver mais do mesmo, mas desenganem-se: as belezas naturais deste país não param de nos surpreender, e vale sempre a pena fazer um desvio para contemplarmos com os nossos próprios olhos aquilo que já vimos várias vezes em fotografia – e deslumbrarmo-nos uma e outra vez, sem qualquer sensação de déjà vu.

 

A Gljúfrabúi está escondida, e só não passa despercebida por causa do fluxo regular de pessoas que se encaminha para aquilo que parece ser apenas uma fenda numa elevação rochosa. É impossível entrar nesta caverna sem molhar os pés, mas o sacrifício é bem empregado. As paredes estão cobertas de musgo, e de um dos lados cai um véu de água pouco copioso, translúcido, que parece jorrar directamente do céu brilhante. Senti-me como se estivesse numa catedral, muros quase negros à minha volta, uma clarabóia celeste, fios de água a imitarem raios de sol. No meio há uma rocha volumosa, semiplana, que poderia bem ser um altar sacrificial, embora aqui o único sacrifício possível seja subir e posar para a fotografia da praxe.

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Um caminho de poucas centenas de metros leva-nos à Seljalandsfoss, famosa porque é possível ver a queda de água pelo lado de trás. A falésia rochosa por onde escorre está saliente em relação ao plano inferior onde a água cai, formando um pequeno lago, e no vazio que existe por trás foi aberto um trilho, cujo acesso é irregular e escorregadio, apesar de seguro. Nesta espécie de gruta vemos a paisagem exterior através de uma cortina líquida ondulante, pouco abundante por comparação com outras cascatas, mas ainda assim impressionante quanto baste. A combinação de vento e água não perdoa, e molha indiscriminadamente quem se atreve a esta experiência incomum.

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Regressámos à Estrada 1, mas só até chegarmos à 264, onde desviámos para Keldur. É aqui que está a casa de turfa mais antiga da Islândia – tão antiga que terá pertencido a Ingjaldur Höskuldsson, uma das personagens da Saga de Njál, que relata acontecimentos passados entre os anos de 960 e 1020. Keldur faz parte do Museu Nacional da Islândia desde 1946; está aberta ao público de Junho até fins de Agosto e tem visitas guiadas duas vezes por dia. Como chegámos à hora de almoço, a guia informou-nos que não poderia estar connosco nem mostrar-nos a casa por dentro, mas tivemos autorização para vaguear à vontade pelo espaço e espreitar para dentro das várias casitas. Embora a maior parte dos edifícios datem do século XIX, há partes mais antigas, algumas que remontam ao século XIII. Nesta quinta foram descobertas ruínas de 18 assentamentos diferentes, prova de que foi habitada continuamente ao longo dos tempos.

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Também aqui não poderia faltar uma igreja, revestida de chapa ondulada pintada de branco e com a data de 1875 bem visível na fachada. Achei mais curioso o cemitério atrás dela, onde a relva cobre os montículos de terra que assinalam as campas e há cruzes e lápides de várias espécies, algumas com datas tão recentes como 2002.

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A explicação para as sepulturas mais contemporâneas é simples: a quinta de Keldur continua a estar em actividade, separada dos edifícios históricos por um ribeiro e uma ligeira vedação de arame farpado. Do lado de lá há ovelhas e vacas, que também pareciam estar na sua hora de descanso, embora umas quantas não tenham resistido à curiosidade de vir observar os estrangeiros que interrompiam a paz da hora de almoço islandesa. Uma até conseguiu passar-se para o lado de fora da cerca, vá-se lá saber como. Ao longe, dois estábulos semicilíndricos, de pedra, também cobertos de erva. Junto ao ribeiro, uma fachada de madeira assinala a centenária casa do moinho, igualmente feita de turfa.

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A cerca de 20 quilómetros de distância, à beira de um rio e atravessada pela Ring Road, Hella é a maior localidade desta zona. Na estação de serviço da Olís fizemos o três-em-um: almoçámos, comprámos mantimentos no supermercado e enchemos o depósito do carro. Depois seguimos para Kerið, uma cratera vulcânica com um lago no interior. O verde-azul-cinzento da água, que contrasta com os tons avermelhados da terra que a rodeia, e a forma ovalada da cratera levam a que Kerið seja conhecida como “o olho do mundo”. Fotomontagens populares na Internet mostram-na com uma sombra escura no centro, como a pupila de um olho, mas são imagens que não correspondem à realidade. O nível da água varia de acordo com as subidas e descidas do lençol freático, e a profundidade do lago pode ir de 7 a 14 metros. Tal como outros lagos islandeses, congela no Inverno e serve de arena para patinagem. Como fica em propriedade privada, o acesso é pago: à volta de 2€, valor modesto que contribui para a manutenção do local, dotado de escadas, de um banco para observação zen, e – pasme-se! – até mesmo de uma bóia de salvação.

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Continuámos para norte para visitarmos o lugar a que chamam “o coração da Islândia”: O Parque Nacional Þingvellir (o símbolo “þ” lê-se como o “th” inglês). Com uma área de quase 100 km2, existem no seu perímetro cinco parques de estacionamento, todos pagos (o valor é fixo e cobre um dia inteiro). O mais usado é o P1, porque fica perto do Centro de Visitantes e é o mais acessível para quem vem de Reiquiavique. Nós optámos pelo P2, que nos ficava mais em caminho, e também mais perto de alguns locais do parque que queríamos visitar primeiro.

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No lado ocidental do vale de Þingvellir abre-se o Almannagjá, um desfiladeiro que marca nitidamente a deriva continental entre as placas tectónicas norte-americana e eurasiática. Há vários locais no parque onde é possível percorrê-lo, entre paredes de blocos basálticos empilhados irregularmente, como se deuses caprichosos os tivessem atirado uns para cima dos outros em brincadeira descuidada. É cruzado pelo rio Öxará, que flui para o Þingvallavatn, o maior lago natural da Islândia, situado a sul de Þingvellir, e no desnível onde o rio atravessa o desfiladeiro forma-se a Öxarárfoss, uma cascata pouco imponente (a sua maior queda tem apenas 13 metros) mas de grande efeito estético, com a água abundante a saltar irrequieta sobre os pedregulhos desordenados que estorvam a sua louca corrida.

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A sul do parque, quase na orla do lago, há mais ravinas famosas provocadas pelos movimentos das placas tectónicas. Estão cheias de água, que emerge do subsolo através dos substratos de lava porosa e cuja origem é o glaciar Langjökull, 60 km a norte. É o caso da Silfragjá, que surgiu em 1789, local excepcional para a prática do mergulho, seja de Verão ou de Inverno, pelas suas águas límpidas e por ser um lugar geologicamente atípico; e da Peningagjá que, traduzida à letra, significa “fissura do dinheiro”. Até há poucos anos, os visitantes tinham por hábito atirar moedas à água neste lugar, para atraírem a sorte e verem cumpridos os seus desejos. Este ritual foi entretanto proibido, a bem da preservação da natureza, o que explica as aparentemente estranhas placas de aviso colocadas nas pontes de madeira que atravessámos.

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Mas o principal motivo pelo qual Þingvellir é tão importante para a Islândia prende-se com a sua história. O povoamento da Islândia terá começado no ano de 874 com Ingólfr Arnarson, o primeiro norueguês a instalar-se na ilha, embora como país independente a Islândia seja muito jovem – só deixou de pertencer completamente à Dinamarca em Junho de 1944. No entanto, a sua localização remota permitiu-lhe sempre uma grande autonomia e um sistema de governação muito próprio. No início, as decisões eram tomadas em assembleias locais, mas à medida que a ilha foi sendo mais povoada tornou-se necessário organizar regularmente uma reunião em que estivessem presentes todos os chefes de clã, onde se fizesse justiça e fossem tomadas decisões gerais e equivalentes, evitando assim que alguma família se tornasse mais dominante do que outras. Foi este espírito igualitário que levou à realização, em 930, daquela que é considerada a primeira assembleia parlamentar do mundo, e que continuou a funcionar regularmente até chegar aos nossos dias: o Alþingi. O lugar onde ela se realizou até ao ano de 1800 tem o nome de Lögberg (Rocha da Lei) e fica na encosta do vale de Þingvellir. O local está assinalado com uma grande bandeira da Islândia, cujas cores representam o fogo dos seus vulcões (vermelho), a neve e os campos gelados (branco), e o oceano que a rodeia (azul).

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Embora o Alþingi tenha sido deslocado para Reiquiavique a partir de 1845, Þingvellir ainda continua mais do que simbolicamente ligado ao poder. É aqui que se situa a residência de Verão do Primeiro-Ministro islandês em exercício, um edifício de linhas simples desenhado em 1930 por Guðjón Samúelsson, no estilo minimalista e pouco ostentatório característico da Islândia. Tem cinco volumes idênticos que parecem habitações independentes, brancas com telhado negro e caixilhos e portas em verde-acinzentado. Na verdade, apenas quatro deles constituem a residência, estando o quinto dotado de instalações para o Administrador do Parque e para o padre da Þingvallakirkja, a igreja que se ergue quase ao lado. Construída em 1859 no lugar de uma outra mais antiga (segundo as sagas, desde 1017 que existe pelo menos uma igreja em Þingvellir), é igualmente sóbria nas suas linhas e cores. A torre, uma adição já no século XX, tem três sinos de épocas diferentes, datando o mais recente de 1944, o ano em que a Islândia passou a ser formalmente uma república independente.

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A visita a Þingvellir ocupou-nos durante quase duas horas de uma tarde sem nuvens e com uns suportáveis 15°C de temperatura do ar. Já eram seis e meia da tarde quando saímos, mas o sol estava alto – cortesia do Verão nórdico – e ainda tínhamos dois lugares obrigatórios do Círculo Dourado para visitar. Seguimos por isso para leste, e quarenta minutos depois estávamos em Geysir. O nome é auto-explicativo: é aqui que podemos ver a erupção de um géiser. O vale de Haukadalur é uma área de grande actividade geotérmica, com vários núcleos de fumarolas e águas borbulhantes, alguns deles com erupções regulares. O primeiro a ser referido em documentos foi o precisamente o Geysir, que chegou a atingir alturas de 170 metros – e é dele que vem o nome genérico dado a estes fenómenos da natureza. As suas erupções foram quase sempre irregulares, parando totalmente durante intervalos de muitos anos. O mais recente período de actividade regular ocorreu entre 2000 e 2003.

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Claro que não é sem razão que o local continua a ser extremamente popular entre os turistas. A poucas centenas de metros de distância do Geysir, o seu “irmão” mais pequeno Strokkur faz as honras do lugar, surgindo regularmente a cada 6-10 minutos e lançando jactos de vapor de água fervente a 20 ou mais metros de altura. O primeiro indício é uma ligeira agitação na superfície da água, de onde surge uma bolha que cresce e explode num repuxo repentino de água e fumo, extinguindo-se tão depressa como surgiu. O espectáculo não dura mais do que meia dúzia de segundos, e vê-lo uma vez não chega – ou, pelo menos, para nós não chegou, pois ficámos ali à espera da uma segunda sessão, apesar do vento geladinho que se fazia sentir.

Apesar de não ter a surrealidade de Hverir (de que falei aqui), a área que rodeia o Strokkur é fora do comum. Rolos de vapor soltam-se de inúmeras pequenas crateras no solo. A brisa espalha a neblina sobre a terra manchada pelo roxo e amarelo das flores selvagens que crescem entre regatos rasos e rochas manchadas. Em volta, renques de coníferas de um verde profundo destacam-se contra as colinas abauladas que se alongam até onde a vista alcança. Com nuvens grisalhas já a obscurecerem o sol, o cenário não podia ser mais diferente daquele que tínhamos deixado a uns meros 60 km de distância.

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Com as sombras das montanhas já a alongarem-se, chegámos à Gullfoss, que é “só” outra das quedas de água mais magníficas da Islândia. Tem tanto de impressionante como de bela, e somando tudo (paisagem, grandeza, formato) creio bem que, de todas as que vi na ilha, será a minha cascata favorita – embora na verdade seja um preciosismo dizer que gostei mais desta ou daquela, porque cada uma tem características especiais que tornam quase impossível compará-las.

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As águas da Gullfoss pertencem ao rio Ölfusá, cujo caudal é sempre abundante, qualquer que seja a estação do ano: 109 m3 por segundo, em média. O leito do rio, composto por camadas de rocha feitas de diferentes minerais, umas mais macias do que outras, foi-se desgastando de forma desigual, e o resultado é a Gullfoss ser uma cascata com dois grandes saltos, o primeiro com 11 metros e o segundo com 20. Cada ressalto está orientado numa direcção diferente, por isso a água, branca de tão buliçosa, desce em ziguezague, afundando-se numa ravina estreita de que não vemos o fundo. O vento fazia com que em alguns pontos se levantasse uma névoa fina e esvoaçante mas, porque o sol já estava demasiadamente baixo, não tivemos a sorte de ver o arco-íris tantas vezes eternizado em fotografias desta cascata.

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Há sítios de onde não apetece sair, e para mim este foi um deles. Estivemos ali quase meia hora, e não fossem o frio e o cansaço já a acumular-se, teria estado ainda mais tempo. Era hora de recolher ao alojamento, que nessa noite iria ser em Flúðir, a apenas 30 km de Gullfoss. Tínhamos reservado um mini-apartamento inserido numa casa particular, mas com entrada independente. Quarto simples e casa de banho minúscula, um sofá confortável, e uma boa kitchenette. Na região sul, que tem bastante oferta de locais onde comer, nem sempre é fácil encontrar (a preço decente) alojamentos com cozinha, e tínhamos tido este pormenor em conta na nossa escolha. Íamos precisar de fazer comida para nos alimentarmos durante todo o dia seguinte (o penúltimo da viagem), que planeávamos passar num local fascinante. Onde? Vão ficar a saber tudo num próximo post.

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O roteiro e várias informações práticas sobre a Islândia estão aqui: Coleccionar paisagens surreais na Islândia

 

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