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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Ter | 17.11.20

Diário de uma viagem à Islândia IV

Segundo dia nos Westfjords

 

Por ser muito recomendada pelos melhores guias de viagem mas pouco popular entre quem visita o país, a região dos Westfjords já foi apelidada de “o lugar desconhecido mais famoso da Islândia”. Intocada e quase desabitada (há apenas cerca de 7500 habitantes em todo o território), é um destino para quem gosta de natureza, de tranquilidade e de viajar sem pressas. A região vive desde sempre da indústria pesqueira, por isso as localidades situam-se todas junto à costa, e as estradas que as unem seguem quase sempre o recorte dos seus fiordes profundos. As distâncias são longas, muitas vezes em estradas de gravilha, e não há atalhos possíveis. Imagino que no Inverno a sensação de isolamento seja ainda maior.

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Dia 4

 

Farnel pronto e pequeno-almoço tomado, saímos do apartamento com a firme determinação de ir até ao fim do mundo. Enfim, quase… Foi mesmo essa a impressão que tive quando chegámos a Selárdalur, no extremo do Arnarfjörður. Este fiorde é um dos maiores e mais espectaculares fiordes da Islândia, e está rodeado de montanhas íngremes e vales profundos. Com um dia completamente cinzento e nuvens tão baixas que nem deixavam ver os cumes mais elevados, escuros e raiados de neve, a atmosfera era quase mística. Nesta ilha nascida do fogo e moldada pela água e os ventos, onde toda a vida continua a estar tão ligada à natureza e aos seus humores, consigo perceber melhor as personagens que o Nobel da Literatura islandês Hálldor Laxness escolheu para aquele que é provavelmente o seu romance mais famoso, “Gente Independente” – cuja leitura, a propósito, recomendo vivamente, mesmo para quem não tenha apetência especial pela Islândia.

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Um exemplo da “fibra” de que os islandeses são feitos é Samúel Jónsson, a razão da nossa ida até este lugar tão inóspito dos Westfjords. Nascido em 1884 nesta região, de onde nunca saiu apesar de ter vivido em vários lugares diferentes, Samúel teve uma vida dura, durante a qual viu morrer toda a sua família, incluindo os três filhos pequenos e a mulher. Aos 65 anos começou a receber uma pensão do Estado e pôde então dedicar-se ao sonho da sua vida: a arte. O local onde viveu até 1969, ano da sua morte, é tão insignificante por si só que nem vem no mapa, e para aqui chegar é preciso procurar por Listasafn Samúels Jónssonar (em português, Museu de Arte de Samúel Jónsson).

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Embora sem formação artística específica, Samúel Jónsson tinha um talento inato para o desenho, a pintura e os trabalhos em madeira. Neste sítio esquecido pelo mundo, onde nem electricidade havia, construiu sozinho – e sem a ajuda de máquinas – a sua casa, uma galeria de arte, e uma igreja. Pintou e esculpiu em madeira lugares que nunca tinha visitado, socorrendo-se de imagens em postais e livros. No seu característico estilo naïf, construiu um pequeno jardim de esculturas, onde a peça que mais chama a atenção é uma fonte rodeada de vários animais, toscamente representados, que podemos interpretar como sendo leões. Ver esta escultura trouxe-me imediatamente à ideia a Fonte dos Leões, no Alhambra – e na verdade foi esta a inspiração de Samúel, como percebi passado um bocado, ao ver uma fotografia do local afixada no interior de uma das janelas da sua casa.

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O talento de Samúel Jónsson nunca foi reconhecido enquanto viveu, e mesmo hoje em dia não faz parte da lista dos artistas plásticos islandeses de nomeada. Os edifícios de Brautarholt, um dos quais é agora uma casa de chá (infelizmente fechada quando visitámos o lugar), sobrevivem e foram reconstruídos graças à divulgação feita por alguns jornalistas e documentaristas, já depois da morte do artista, e sobretudo à acção da “Félag um listasafn Samúels” (Associação do Museu de Arte de Samúel Jónsson), que angaria donativos e mantém preservado o seu espólio.

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Pelos vizinhos que com ele conviveram, a imagem de Samúel Jónsson que nos chegou até hoje é a de um homem modesto e afável, um “artista de coração inocente”, como o definiu Hannibal Valdimarsson num artigo escrito em 1976. Por ironia do destino, começou a perder a visão à medida que foi avançando na idade, mas isso não o demoveu de continuar a perseguir os seus sonhos: entre 1962 e 1965 construiu, propositadamente para ali colocar uma pintura criada por si, a igreja de betão pintado que hoje vemos no local. É sem qualquer dúvida um grande exemplo de alguém que não deixou que as suas limitações o impedissem de cumprir um ideal, um homem com vontade férrea e muita resiliência, que ilustra bem o carácter dos islandeses como povo.

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Voltámos à estrada de terra batida ao longo do fiorde – felizmente um pouco menos má do que outras que percorremos – até Bíldudalur, um vilarejo com apenas 200 almas onde não parámos, apesar do tentador anúncio de um Museu dos Monstros Marinhos. O nosso destino era a maior queda de água dos Westfjords, localizada a 60 km de Bíldudalur: a cascata de Dynjandi. Abro aqui um parêntesis para uma pequena nota sobre as cascatas na Islândia. Cerca de 11% da área do país está coberta por glaciares (são “só” 269…), cuja massa de gelo começa a derreter parcialmente quando as temperaturas aquecem, algures na Primavera, formando centenas e centenas de rios e ribeiros que na sua maioria encontram, algures durante o seu percurso, descidas abruptas por onde se despenham de forma mais ou menos espectacular. Para nós que vivemos num território muito mais “velho” do que o da Islândia, e portanto geologicamente mais “gasto” em termos de relevo, além de menos gelado, qualquer cascata maiorzinha é um fenómeno digno de visita. Mas se na Islândia pararmos para ver todas as cascatas semelhantes às que temos em Portugal… bom, não fazemos mais nada, porque são inúmeras – aquelas fitas de água branca a escorrer pelo verde ou castanho das encostas acabam por fazer parte da paisagem, e deixamos de lhes ligar importância. É só mais uma cascata…

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E no entanto, nada disto nos prepara para as quedas de água “a sério”. Até podemos já ter visto dezenas de imagens com as cascatas mais icónicas da Islândia, mas não há nada que se assemelhe à sensação de conhecer ao vivo estas gigantes da natureza. A cascata de Dynjandi avista-se de longe, quando ainda andamos às voltas na estrada para lá chegar. De um lado temos o recorte do fiorde – aqui muito fechado, quase um lago – e do outro uma falésia em degraus por onde a água cai abundante e ruidosa. Muita água, e muito barulhenta. Dynjandi significa “a retumbante”, e faz jus ao nome.

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Parámos no estacionamento e subimos até à base da queda de água. Pelo caminho encontramos outras cascatas, seis ao todo, pequenas quando comparadas com o colosso que domina a paisagem mais acima. Têm nomes próprios, e ao longo do trilho marcado há pontos de observação para cada uma, alguns deles com bancos onde podemos descansar – para ver de perto muitas das belezas naturais mais famosas da Islândia é preciso andar bastante e frequentemente subir, subir… Mas embora o percurso nem sempre seja fácil, o objectivo final recompensa o esforço. Como neste caso. Elegante quando vista à distância, de perto a Dynjandi é fascinante, um enorme manto branco que se estende por 100 metros de altura, descendo em ligeiros socalcos, a água em fios finos como a urdidura de um tear. As quedas de água são para mim fenómenos mesmerizantes. A energia incrível que a força destas águas me transmite é difícil de descrever, e fico sempre com vontade de não sair dali.

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Continuámos a seguir para norte pela Estrada 60, ora acompanhando o mar, ora cruzando os vales que esventram as serranias, outras vezes percorrendo estreitas faixas de estrada construídas sobre os diques que sustentam o avanço do oceano. No fio condutor da paisagem os cenários iam mudando ao ritmo do conta-quilómetros e eu tentava absorver tudo, fascinada por esta terra tão diferente daquilo a que estou habituada. Fotografei até à exaustão, mesmo sabendo que a maior parte das imagens não seriam mais que borrões tremidos. Quando as memórias começarem a esbater-se, serão elas (e isto que escrevo) que me farão viajar de novo.

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Em Julho, as temperaturas médias nos Westfjords são de 6°C para a mínima e 10°C para a máxima. No Inverno andam entre os 0 e os -10°C, mas por vezes chegam quase aos 15 negativos. Se nos dias em que andei pelo norte da Islândia, em pleno mês de Julho, nunca deixei de ter frio, nem quero imaginar como será no Inverno, ainda por cima com toda a região coberta de neve. É realmente necessário ter um carácter muito forte para viver aqui, à mercê de um clima tão duro e frequentemente agressivo, e os cerca de 200 habitantes de Flateyri sabem isso melhor do que ninguém. Em Outubro de 1995, uma avalanche sepultou uma parte desta localidade e 45 pessoas sob vários metros de neve. Vinte não sobreviveram. Um documentário foi realizado em 2010 sobre esta tragédia, que podem ver aqui. A construção de um dique deflector tem evitado a ocorrência de males maiores desde essa altura. Em Janeiro deste ano houve duas outras grandes avalanches: uma foi desviada para o mar e provocou um tsunami (sem vítimas, mas que afundou vários barcos), a outra conseguiu galgar uma parte do dique e atingiu uma casa, de onde um dos seus quatro habitantes teve de ser desenterrado, felizmente com vida.

 

Flateyri foi fundada em finais do século XVIII e chegou a ser um importante centro de caça à baleia e ao tubarão-da-Gronelândia. Nos anos 90 era uma localidade piscatória florescente, mas a crise de 2008 chegou a todos os cantos do país e o encerramento de várias empresas pesqueiras obrigou uma parte da população a mudar-se para outras paragens. Com tudo isto, poder-se-ia pensar que a vila é tristonha e desenxabida, mas tal não é verdade. Para começar, é aqui que encontramos a loja mais antiga do país ainda em funcionamento, que se mantém quase inalterada desde a sua abertura há mais de um século: a livraria Bræðurnir Eyjólfsson, mais conhecida simplesmente por “Livraria Antiga”. Gerida pela mesma família desde há quatro gerações, o apartamento anexo à loja, onde viveram os bisavós do actual proprietário, permanece sem qualquer modificação desde os anos 50 e é agora um museu. A memória da cidade está também preservada em alguns outros edifícios, cuja história é resumidamente contada em painéis explicativos colocados ao pé de cada um deles.

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Depois, um passeio pelas ruas da localidade revelou-nos casas em cores pastel, com muros e jardins decorados (parecem ter uma predilecção especial por bicicletas), alguma street art, uma igreja com o típico campanário alto e pontiagudo, o pequeno porto de abrigo com uma dúzia de embarcações modernas. A norte, tão vigilante quanto perigosa, uma crista de montanhas manchadas de branco pela neve resistente.

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Tínhamos parado para comer no caminho, mas o frio pedia uma bebida quente e um bolo para confortar o estômago. O Gunnukaffi, que fica quase ao lado da livraria, tem um exterior pouco apelativo mas uma atmosfera interior completamente diferente. É amplo, decorado com algum gosto, as empregadas são simpáticas e as bolachas grandes e deliciosas. Num sofá perto da nossa mesa, um cliente tinha-se instalado a trabalhar no seu portátil, manta nas pernas e gorro de lã com “orelhas” na cabeça, apesar do ambiente confortavelmente aquecido.

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Ísafjörður é a maior cidade dos Westfjords e fica a apenas vinte minutos de Flateyri, muito graças ao túnel Vestfjarðagöng, o maior da região, que neste percurso fura pelas montanhas ao longo de cinco quilómetros e nos poupa a uma penosa viagem pelo sinuoso desfiladeiro de Breiðadalsheiði. É verdade que nos túneis não há nada para ver – a monotonia consegue ser maior que a das auto-estradas – mas são uma benesse quando queremos chegar mais depressa ao nosso destino, sobretudo quando o tempo já começa a escassear e ainda temos bastantes quilómetros para percorrer até ao fim do dia.

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Espalhando-se na margem de um fiorde muito abrigado e sobre uma península de areia que quase o encerra, Ísafjörður foi uma visão de beleza quando saímos do desfiladeiro. A água cor de chumbo era um espelho perfeito, sem uma única ruga, onde os edifícios e as embarcações se reflectiam fielmente; e uma neblina baixa suavizava a rudeza das montanhas e dava à paisagem um aspecto etéreo, irreal. Parecia-me que a qualquer momento se iria dissolver no ar.

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Lamentavelmente, este efeito encantatório desapareceu quando entrámos na cidade, que é tão insípida quanto a maior parte das povoações islandesas. Casas de chapa ondulada, alguns prédios baixos com linhas elementares e cores neutras, construções com ar de pré-fabricados junto ao porto… em suma, nada de particularmente interessante. Aproveitámos para meter gasolina e fazer umas boas compras no supermercado, e depois encetámos o caminho de regresso a Tálknafjörđur, praticamente pelas mesmas estradas por onde tínhamos andado durante todo o dia.

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A distância de 160 km demorou mais de duas horas a percorrer, sem paragens. Viajar nos Westfjords é lento e sem dúvida cansativo, sobretudo para quem conduz, muito por conta dos troços de estrada sem asfalto, íngremes e tortuosos. Mas a nossa viagem à Islândia não teria sido a mesma se tivéssemos ignorado esta região, que é bastante diferente do resto do país. Com 16 milhões de anos, é a parte mais antiga da Islândia, por isso não tem vulcões activos nem campos de lava. Forma uma península muito separada do resto da ilha, com um interior muito montanhoso e uma costa totalmente constituída por fiordes profundos – embora haja fiordes noutras regiões da Islândia, em nenhum lado se comparam a estes. Tem praias de areia branca, que não encontramos no resto do país. É o extremo da ilha mais perto da Gronelândia e com as condições climáticas mais extremas, a região onde cai mais neve, onde os Invernos são ainda mais duros. As estradas ficam frequentemente tapadas e as avalanches são uma ameaça constante. A pouca luz do sol que recebem durante grande parte do ano é em certos sítios bloqueada pelas montanhas. Em contrapartida, não há falta de auroras boreais, e a rara presença humana torna a região muito apetecível para a vida selvagem.

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Em nenhum outro sítio senti tanto o isolamento das pessoas que ali vivem, a beleza dura dos elementos da natureza, a desolação mitigada pela paz que aquela atmosfera nos transmite. Os Westfjords são um mundo à parte.

 

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O roteiro e várias informações práticas sobre a Islândia estão aqui: Coleccionar paisagens surreais na Islândia

 

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