Cultura e arte a céu aberto - parte 1
Há lugares onde a criatividade não cabe entre quatro paredes. Espaços ao ar livre onde a história, a memória e o talento humano se encontram em feliz coabitação. Alguns recriam modos de vida que já não existem ou estão a desaparecer; outros transformam jardins e campos em plataformas de arte. Têm em comum o facto de proporcionarem uma forma diferente de contacto com a cultura – não em vitrinas ou corredores fechados, mas em cenários onde a natureza e a intervenção humana se misturam. Tenho visitado alguns destes lugares, de que sou particularmente apreciadora, e nunca saio de lá defraudada.
O mundo contado pela vida quotidiana
Incluo neste conjunto os museus etnográficos a céu aberto. Neles, a curiosidade não se alimenta apenas de objectos expostos, mas de ambientes inteiros, pensados para mostrar como se vivia, trabalhava e organizava a vida em tempos passados. São recriações que nos permitem mergulhar na atmosfera quotidiana de outras épocas, sentir os ritmos de uma comunidade e reconhecer o engenho que moldou ferramentas, casas ou formas de trabalho. Lugares que nos desafiam a olhar para o passado não como algo distante e abstracto, mas como uma herança palpável, feita de gestos ligados à sobrevivência, práticas comunitárias e ligações profundas com o meio envolvente – uma herança que é preciso acarinhar e preservar, mesmo que por vezes possa parecer obsoleta aos olhos da sociedade moderna.
O berço dos museus ao ar livre
Estocolmo, Suécia
Ao falar destes museus, é quase inevitável começar pelo Skansen. Criado em 1891, foi o primeiro museu a céu aberto do mundo, pioneiro na ideia de preservar modos de vida tradicionais fora das paredes de um edifício. Nasceu com uma ideia muito concreta: fixar a memória de um país que estava a mudar depressa. O mundo rural perdia importância, as cidades cresciam, a era industrial avançava. Era necessário guardar, de forma organizada, aquilo que definia o dia-a-dia das comunidades que viviam da terra, do trabalho manual e da relação próxima com a natureza: reunir casas, oficinas e estruturas de diferentes regiões num só local, para mostrar como viviam as comunidades rurais antes da industrialização.
O resultado é um museu vivo, que não se limita a exibir objectos soltos, mas recria ambientes inteiros. Mais de um século depois, continua a ser uma referência mundial, visitado tanto por quem procura aprender mais sobre história cultural como por famílias em passeio. É possível entrar numa casa onde as tarefas diárias ainda são feitas como no início do século passado, ou descansar dentro de uma igreja de madeira que transmite a sobriedade do quotidiano religioso. Há uma mercearia antiga, uma tipografia numa casa do século XVIII, lojas que funcionam como noutros tempos, e oficinas onde artesãos trabalham o metal ou o vidro, ou produzem peças de cerâmica ou joalharia, entre outros ofícios. O Skansen dá-nos a noção de um país inteiro resumido em parcos quilómetros – é um pouco como se estivéssemos dentro d’ A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson, o delicioso livro de Selma Lagerlöf em que a paisagem da Suécia também é uma personagem.
Tem ainda outra faceta que o torna especialmente popular: a vertente zoológica. Para quem tem crianças pequenas, esta será a principal atracção – vi muitos pais, tanto sozinhos como em casal ou em grupo, empurrando carrinhos de bebé ou com filhos pela mão. O espaço inclui um pequeno jardim zoológico com espécies típicas da Escandinávia, como alces, ursos, linces ou renas, bem como animais domésticos tradicionais das quintas suecas: coelhos, porcos, ovelhas, cavalos, e afins. Tem também um aquário, e lagos onde vivem focas e lontras. Durante a visita, passamos das ruas de uma aldeia histórica para cercados onde vacas ou cabras pastam tranquilamente. Esta combinação entre cultura e natureza faz com que a experiência seja mais variada, mais completa e, de certa forma, mais acessível para diferentes públicos.
O Skansen tem um calendário diversificado de actividades para miúdos e graúdos, sejam elas de pura diversão, como as celebrações festivas anuais, ou de educação, como as palestras sobre animais e a protecção da biodiversidade. Nota-se que procuram um equilíbrio entre aprendizagem e entretenimento, sem que uma dimensão anule a outra.
Apesar de o ter visitado numa época do ano mais tranquila, não tive dificuldade em perceber porque é que Skansen é um local tão popular entre os locais e atractivo para quem vem de fora. Não é apenas um museu etnográfico: é também um espaço de lazer, um lugar onde se pode passar um dia inteiro sem que a experiência se torne pesada ou demasiado académica. A mistura de casas históricas, demonstrações de ofícios e componente zoológica tornam-no num espaço em constante movimento.
O modelo de Skansen acabou por influenciar muitos outros museus etnográficos pelo mundo fora. A ideia de desmontar casas, igrejas ou oficinas de várias partes de um país e reconstruí-las num mesmo local mostrou-se eficaz para contar uma história colectiva. Hoje, visitar o Skansen é perceber como um projecto museológico pode ser igualmente uma declaração de identidade: aquilo que se decide preservar é aquilo que se considera essencial para compreender um povo.
A alma rural de um país
Sibiu, Roménia
O Muzeul Astra, leva a uma escala impressionante o conceito de contar a vida de um país a céu aberto. Situado numa vasta área arborizada (96 hectares na floresta protegida de Dumbrava Sibiului), reúne centenas de casas, igrejas, moinhos e oficinas que representam diferentes regiões e tradições da Roménia. Mais do que um conjunto de edifícios, é uma espécie de pequena Roménia condensada num único espaço, onde podemos atravessar séculos de história caminhando entre vegetação, água e trilhos de terra.
O Astra demonstra, de forma exemplar, a diferença entre ver um objecto isolado numa vitrina e ver esse mesmo objecto no seu contexto natural. Uma enxada exposta num museu tradicional é apenas uma ferramenta. Colocada ao lado de um celeiro ou usada numa demonstração prática, passa a ser testemunho vivo de uma forma de subsistência. Essa diferença ajuda a entender porque é que estes museus têm tanto impacto: transformam peças inertes em histórias completas. No Astra, esse princípio está bem patente.
A Roménia é um mosaico de regiões com influências diversas – latinas, saxónicas, otomanas, húngaras – e o Astra reflecte esta diversidade cultural, sobretudo em termos de arquitectura e utilidades. O espólio do museu conta com mais de 400 estruturas edificadas e mais de 200 mil objectos variados, todos preservados com cuidado. Visitar o Astra é também perceber como a identidade romena se construiu a partir da coexistência de tradições distintas. Esta pluralidade é, ainda hoje, a verdadeira riqueza de um país que mais parece uma manta de retalhos.
O espaço natural em que o Astra está inserido contribui para um efeito de imersão. As casas não estão dispostas como numa exposição em linha, mas sim espalhadas no meio das árvores, à beira de lagos, ou em clareiras. Esta organização faz com que a visita se pareça mais com uma caminhada por aldeias reais do que com uma visita museológica. A natureza funciona como cenário e, ao mesmo tempo, como parte integrante da experiência.
Entre os edifícios mais marcantes está uma igreja de madeira, que data de 1672 e é o monumento mais antigo da colecção do museu. Depois, há os moinhos – uma colecção única que inclui 33 moinhos de todos os tipos energéticos conhecidos na área euro-asiática (com excepção dos moinhos de maré), e que espelham a importância da moagem nas economias locais. E há casas de todos os tipos, algumas muito antigas ou únicas, como por exemplo a maior casa de carvalho do sudeste da Europa, construída há três séculos.
O Astra não se limita a exibir edifícios estáticos. Muitos dos espaços estão equipados com objectos do quotidiano: cozinhas com potes de barro, camas cobertas por colchas bordadas, utensílios agrícolas de uso corrente. Há até demonstrações de ofícios: oleiros, ferreiros, carpinteiros ou tecelões mostram como as mãos davam forma a quase tudo o que era necessário para viver.
Faz também parte da missão do Muzeul Astra contribuir para o desenvolvimento e promoção das comunidades rurais, tendo já divulgado ao público visitante várias minorias étnicas nacionais e mais de 200 comunidades rurais. Os eventos que organiza incluem festivais tradicionais e celebrações diversas envolvendo música, dança, gastronomia e artesanato, com a presença de artesãos oriundos de cada comunidade representada.
Não sendo uma das atracções mais divulgadas a nível turístico (pelo menos para fora do país), posso dizer com sinceridade que, em Sibiu, foi o local que mais gostei de visitar. Foi um mergulho, durante as várias horas que demorei a percorrê-lo, numa forma de pensar e organizar o mundo que já desapareceu em grande medida, mas que continua a ser fundamental para compreender a história e o carácter de um país. Não é um espaço de nostalgia, mas sim de reconhecimento. Com a minha viagem pela Roménia ainda no início, deu-me uma base importante para compreender e destrinçar tudo o que vi do país daí para a frente.
Casas de turfa e a vida nos confins do Atlântico
Skagafjörður, Islândia
À beira de um fiorde no norte da Islândia, Glaumbær é um daqueles lugares que nos obriga a repensar a relação entre ser humano e ambiente: um conjunto de casas de turfa que testemunham como comunidades inteiras conseguiram sobreviver em condições climáticas extremas, usando engenho e recursos locais. Nestas construções, a terra não é apenas chão, mas também parede e tecto.
Esta quinta histórica preservada (que inclui também alguns edifícios de madeira, antigos e bem recuperados, com exposições etnográficas várias) oferece-nos um vislumbre de como seria a vida na Islândia rural dos séculos XVIII e XIX. À primeira vista, as casas parecem pequenos montículos cobertos de relva, confundindo-se com a paisagem. Só mais perto é que percebemos que existem fachadas de madeira, com entradas para interiores bem organizados. A turfa, retirada dos campos vizinhos, era usada em blocos compactados que, empilhados em configuração de espinha, formavam paredes espessas capazes de isolar contra o frio e o vento. No tecto, uma camada adicional de terra e vegetação ajudava a reforçar a estrutura. Não era arquitectura de ostentação, mas de sobrevivência, nascida da necessidade e da adaptação.
Por dentro, as divisões são estreitas e pouco iluminadas, mas revelam uma organização funcional surpreendente. Há cozinhas com fogões a carvão, quartos partilhados por várias pessoas, despensas com prateleiras para conservar alimentos e áreas de trabalho onde se fiava lã ou se preparavam utensílios. O mobiliário, em madeira simples, mostra como cada peça tinha de ser prática e duradoura. O museu conserva muitos desses elementos originais, permitindo-nos imaginar o quotidiano das famílias que aqui viveram até ao século XX.
O que mais me chamou a atenção foi a forma como estas casas exprimem uma lógica comunitária, que ainda hoje sobrevive em muitas partes da Islândia. Glaumbær não era apenas uma residência isolada, mas um conjunto de edifícios interligados, uma espécie de aldeia minúscula sob uma mesma cobertura de turfa. Essa proximidade física traduzia também a importância da cooperação: num ambiente hostil, a sobrevivência dependia de esforços partilhados, desde a produção de alimentos até à manutenção das construções.
Há também um lado simbólico nesta arquitectura. As casas de turfa significavam não só abrigo físico, mas igualmente uma extensão da própria terra. A fronteira entre o natural e o humano era ténue: vivia-se dentro daquilo que o solo oferecia. Esta ligação à natureza é uma constante na cultura islandesa, visível tanto nas sagas medievais, que celebram a dureza da vida nos confins do Atlântico, como na literatura mais contemporânea, que continua a retratar a Islândia como um território onde a paisagem molda o carácter das pessoas.
Visitar Glaumbær fez-me, de certo modo, perceber como a chamada “modernidade” mudou (e vai continuar a mudar) tão radicalmente os nossos conceitos de conforto. Hoje em dia, habituados a casas luminosas e bem equipadas, causa-nos estranheza atravessar um corredor estreito ou entrar numa divisão sombria. Mas não há como ignorar a engenhosidade que permitia, em tempos menos tecnológicos, transformar recursos escassos em abrigo eficaz. A turfa pode parecer frágil, mas revelou-se mais resistente e duradoura do que muitos materiais modernos.
Glaumbær não é só um museu sobre casas antigas, mas sim uma lição sobre resiliência e adaptação. Mostra como a arquitectura pode ser profundamente enraizada no ambiente e como, mesmo em condições adversas, as comunidades encontraram formas criativas de viver e prosperar. É um lugar que nos lembra que a cultura não se exprime apenas em palácios ou monumentos grandiosos, mas muitas vezes em soluções simples, engenhosas e silenciosas que garantiram a continuidade da vida em regiões isoladas.
A paisagem que se tornou museu
Zaandijk, Países Baixos
Nas margens do rio Zaan, às portas de Amesterdão, Zaanse Schans é uma pequena localidade transformada em museu activo, onde moinhos, armazéns e casas de madeira recriam a atmosfera holandesa dos séculos XVIII e XIX. Aqui, não se trata apenas de conservar edifícios históricos, mas de mostrar como funcionava (e em certa medida ainda funciona, pese embora mais assente no turismo) uma comunidade próspera, sustentada pela engenhosidade técnica e pelo comércio. Se conseguirmos ignorar as centenas de turistas que visitam a aldeia, não é difícil “encaixar” neste cenário a beleza do quotidiano e as personagens retratadas por Vermeer nos seus quadros.
O que distingue Zaanse Schans é a sua ligação ao vento e à água. Os moinhos eram usados para tudo, desde a moagem tradicional destinada à alimentação até à produção de óleo ou de pigmentos, passando pela serração de madeiras. Cada moinho tinha uma função precisa. Juntos, formavam uma rede que, em plena era pré-industrial, colocava a região de Zaan na vanguarda da inovação: nesta que foi a área industrial mais antiga da Europa Ocidental, chegaram a existir, nos séculos XVIII e XIX, cerca de seiscentos moinhos de vento em funcionamento simultâneo. Alguns dos que vemos hoje em Zaanse Schans ainda são usados. Entrar num deles é ter uma aula in loco sobre a transformação de uma energia natural em força produtiva: as engrenagens de madeira rangem, as pás rodopiam, e sente-se no ar o cheiro a madeira serrada ou a sementes esmagadas.
O projecto de Zaanse Schans sensivelmente como o vemos hoje foi concebido em 1946 pelo arquitecto Jaap Schipper. Os edifícios que congrega foram resgatados em locais diversos e transportados, por estrada e por via navegável, para a área onde actualmente se encontram. Alguns já não correspondem exactamente à estrutura original. É o caso do De Kat, o único moinho de vento do mundo ainda em funcionamento que mói pigmentos minerais para a produção artesanal de tintas de acordo com a composição criada por Rembrandt, tal como se fazia há séculos. Desmantelado em 1904 até à altura da cremalheira, em 1960 foi reconstruído com a colocação do corpo de um outro moinho na subestrutura. Quanto ao Het Jonge Schaap, também ainda activo, é uma réplica fiel de um moinho de serração original de 1680, em tempos situado atrás da estação ferroviária de Zaandam e demolido em 1942. Antes da demolição foi cuidadosamente estudado e medido, o que permitiu a sua reconstrução posterior por artesãos locais. Funciona desde 2007 em Zaanse Schans, operado por uma equipa dedicada de moleiros.
Para além dos moinhos, o complexo inclui oficinas e armazéns onde se fabricavam produtos que ainda hoje associamos à identidade neerlandesa. Há queijarias que mostram o processo artesanal de produção, sapatarias dedicadas aos famosos tamancos de madeira e pequenas lojas que exibem artesanato local. Esta componente prática liga a vocação museológica à comercial, onde tradição e consumo se misturam sem conflitos.
O ambiente urbano recriado em Zaanse Schans também tem o seu encanto. As casas pintadas em tons de verde e branco, com telhados inclinados e janelas de guilhotina, evocam a estética típica da região. Várias delas foram transferidas de outras localidades para aqui, de modo a preservar o conjunto arquitectónico, e são habitadas, o que reforça a sensação de que não estamos apenas perante uma reconstrução museológica, mas num lugar que continua a ter vida própria. A etnografia pode não se resumir apenas ao registo de costumes desaparecidos.
Interessante em Zaanse Schans é também a forma como o património cultural e o natural se articulam. O rio, os canais e os prados em redor criam um enquadramento que explica porque é que esta região se tornou um pólo de actividade económica. Não é apenas uma sucessão de edifícios bem conservados, mas uma paisagem cultural em que cada elemento – água, vento, madeira, barro – desempenhou um papel na construção de um modo de vida. É o equilíbrio entre o passado preservado e o presente activo que faz de Zaanse Schans um lugar tão singular dentro do panorama dos museus ao ar livre.
Memórias a céu aberto
Estes quatro espaços são diferentes nas geografias, nos climas e nas tradições, mas partilham uma mesma virtude: transformam a história em algo palpável. Cada um deles tem a sua marca própria: Skansen alia a preservação cultural a uma vertente zoológica que aproxima gerações; Astra mostra a diversidade e a riqueza da vida rural romena; Glaumbær ensina-nos como a adaptação à natureza foi, em si mesma, uma forma de cultura; e Zaanse Schans revela a engenhosidade que transformou o vento e a água em motores de prosperidade. No fundo, todos estes lugares nos relembram que a cultura não é feita apenas de grandes monumentos ou obras-primas consagradas, mas também de soluções práticas, de rotinas e de modos de vida que sustentaram comunidades inteiras.
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(Este artigo foi publicado pela primeira vez no blogue Delito de Opinião)
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