Croácia - Diário de viagem - V - Ao encontro da Dalmácia ou uma tarde em Split
Na costa leste do mar Adriático, a Dalmácia estende-se desde a ilha de Pag, na Croácia, até à baía de Kotor no Montenegro. Com uma costa muito recortada e inúmeras ilhas, água límpida e um clima temperado, atributos geográficos a que se junta uma riqueza histórico-cultural invejável, é provavelmente a região mais bonita da Croácia.
Dia 4 da viagem. Foi com frio e ameaça de chuva que deixámos a região dos lagos de Plitvice. São cerca de 60 km até entrar na A1 pelo nó de Gornja Ploča, trajecto que se cumpre em bastante menos de uma hora, que a estrada é boa. A auto-estrada A1 Liga Zagreb a Split, seguindo depois para sul até perto de Ploče, onde curva para o interior até à fronteira com a Bósnia-Herzegovina. Está planeado o seu prolongamento até Dubrovnik, mas a conclusão ainda não está à vista.
Assim que saímos do túnel de Sveti Rok – um túnel com quase 6 km de comprimento que passa sob a montanha de Velebit – parecia que tínhamos mudado de país. O sol já se deixava ver entre as nuvens altas, a temperatura exterior começou a subir e passados poucos quilómetros a paisagem também mudou, os picos montanhosos substituídos pelo azul e verde do mar e das ilhas.
A saída de acesso a Split faz-se pela portagem de Dugopolje e depois são mais cerca de 13 km até chegar à rotunda de acesso à cidade. Os arredores de Split são desprovidos de qualquer encanto, o que só é surpreendente até certo ponto se pensarmos que estamos na segunda maior cidade do país. Aqui o trânsito já é muito, mas as vias são largas e a sinalização é boa. Entra-se em Split por uma espécie de via rápida com semáforos, que se transforma em avenida larga quando seguimos as indicações para o centro da cidade.
Ao todo já lá iam 3 horas de viagem desde a saída de Plitvice, por isso a nossa primeira preocupação foi arranjar um local para deixar o carro e partirmos daí à descoberta da cidade. Em Split há muitos parques de estacionamento mas todos são pagos, o que se torna financeiramente pesado ao fim de várias horas. Talvez pela sorte de ser a primeira visita, foi suficiente virarmos duas esquinas para conseguirmos encontrar um “buraquinho” onde estacionar, num beco sossegado e com sombra, e muito perto do terminal dos autocarros, um excelente ponto de referência para não nos perdermos.
Guia na mão (os mapas conseguimos depois, no posto de turismo), bastou seguir para sul durante dez ou quinze minutos para encontrarmos o nosso destino: o Palácio de Diocleciano. Ao contrário do que o nome parece indicar, não é (actualmente) um edifício fechado mas sim um bairro dentro de muralhas. Com uma área de 30.000 m2 e remontando ao séc. IV, foi aqui que o imperador romano Diocleciano viveu a última dezena de anos da sua vida depois de abdicar do poder. Ao longo dos séculos o Palácio teve várias finalidades e no seu interior cresceu uma pequena cidade, que no início do séc. XX abrigava cerca de 3200 habitantes em 278 casas. Hoje é sobretudo uma área de compras e lazer, agradável e fervilhante de vida, é certo, mas completamente virada para o turismo.
A entrada de quem vem do lado norte faz-se pela Porta Áurea, antes da qual existe um pequeno parque onde a figura dominante é a da estátua de Gregório de Nin (da autoria do escultor croata Ivan Meštrović), um bispo que viveu no séc. X e ficou famoso por se ter oposto ao Papa e introduzido a língua nacional nos ofícios religiosos. Consta que dá sorte esfregar o dedo grande do pé da estátua, e este é o motivo da diferente tonalidade que aquela parte do corpo da dita cuja apresenta por comparação com o resto. Uma crença que eu não posso comprovar ou desacreditar, pela simples razão de que não sou nada supersticiosa e portanto dispensei o ritual.
Atendendo a que já passava bem das duas da tarde e os nossos estômagos roncavam de fome, a primeira coisa que fizemos assim que entrámos no Palácio foi… descobrir um sítio agradável onde pudéssemos comer. E olhem que não foi fácil. Não pela falta de lugar onde, mas sim precisamente pelo contrário: a oferta é imensa e para todos os gostos, há restaurantes e cafés e bares ao virar de cada esquina e às vezes porta sim, porta sim, e por isso a dificuldade está na escolha. Depois de umas voltas pelas ruelas estreitas do bairro, num pátio descoberto e sossegado, longe da confusão das ruas principais, encontrámos o Mazzgoon (Bajamontijeva ul. 1, 21000 Split) e por ali ficámos a aproveitar a frescura oferecida pelas altas paredes de pedra e tijolo semi-rebocado, onde várias portas de metal estão decoradas com pinturas alusivas à história de Split. Um mimo.
E um mimo estava também a comida, desde a salada até às massas, terminando na sobremesa deliciosa e no café, tudo acompanhado de um atendimento simpático, prestável e rápido. Têm website e página no Facebook, caso queiram saber mais pormenores. E já agora leiam este artigo, que fala também de outros restaurantes que parecem ser igualmente recomendáveis.
Apetites devidamente saciados, pés ao caminho para irmos finalmente apreciar em condições o motivo da nossa visita.
Os pontos principais a visitar no Palácio não são muitos e vêem-se facilmente num simples passeio sem rumo definido. Depois da Porta Áurea (1) e seguindo sempre em frente chega-se ao Peristilo (2), um grande pátio rectangular rodeado de arcadas, com a Catedral (4) e a Torre do Sino (5) do lado esquerdo, o Vestíbulo (3) ao fundo, e o acesso ao Templo de Júpiter (6) do lado direito.
Mapa do Palácio de Diocleciano, com os principais pontos da visita assinalados a vermelho
A Catedral foi em tempos o mausoléu de Diocleciano, e a visita é paga. Nós aproveitámos e comprámos um bilhete que incluía também a visita à cripta e ao baptistério (que resultou da conversão do Templo de Júpiter). Existe ainda um museu com o Tesouro da Catedral, mas essa visita nós dispensámos.
Se pensarmos que Diocleciano foi um dos mais sangrentos perseguidores dos cristãos no império romano, é irónico que o seu mausoléu tenha sido convertido precisamente no mais importante símbolo católico de Split, a Catedral de São Domnius. E mais irónico ainda é o facto de São Domnius ter sido um bispo do séc. III martirizado e decapitado por ordem de… exactamente, de Diocleciano. Inimigos religiosos em vida, unidos na morte por um mesmo local evocativo. De dimensões algo reduzidas e com planta octogonal, a Catedral tem uma atmosfera e uma originalidade muito próprias, com a sua cúpula abobadada, as suas colunas de granito vermelho com capitéis coríntios, frisos ricamente decorados, pormenores do gótico tardio convivendo amenamente com outros da época barroca e, como não podia deixar de ser, muito, muito dourado.
Por baixo da Catedral, a cripta não é mais do que uma espécie de cave húmida, transformada entretanto em capela, com nichos abobadados nas paredes e ao centro um altar com uma imagem de Santa Lúcia.
Mas aquilo que é verdadeiramente imperdível é a subida à Torre do Sino, mesmo ao lado da entrada para a Catedral. Também é necessário pagar (2€) mas vale bem o dinheiro pelos 360 graus de fabulosa vista que é possível observar do cimo dos 57 metros da torre. O mar a sul, com o porto e a marina, o casario da parte mais antiga da cidade, e ao longe os edifícios incaracterísticos da área mais recente. A caminho do topo, subindo por uma escadaria íngreme e estreita, passamos pelos sinos (que são vários, e não apenas um). Esta Torre, actualmente o emblema de Split, é bem mais recente do que o resto do Palácio, pois só foi construída no séc. XII. Na base, a entrada está “guardada” por dois leões esculpidos em pedra.
Do outro lado do Peristilo acede-se ao Templo de Júpiter por uma ruazinha estreita. Lá dentro, por baixo de uma abóbada excepcionalmente bem preservada, existem apenas uma pia baptismal ornamentada com altos-relevos medievais e uma altíssima escultura representando S. João Baptista, também da autoria de Ivan Meštrović.
O Vestíbulo é uma construção circular ampla com o tecto semi-esférico parcialmente aberto, por baixo do qual um grupo de tocadores de músicas tradicionais fazia a sua apresentação, numa tentativa de venderem alguns CDs à enxurrada de turistas que constantemente visitam o local (e de que nós fizemos parte). Quando falo em enxurrada não estou a exagerar, que no ano passado a Croácia recebeu mais de 14 milhões de visitantes e o Palácio de Diocleciano, sendo um dos sete locais do país que fazem parte do Património Mundial da UNESCO, é ponto obrigatório de visita para quem vem para estes lados.
Ao longo do lado sul das muralhas do Palácio estende-se a Riva (7), uma larga e extensa alameda pedonal junto ao mar que termina, no lado oeste, no Mosteiro franciscano e no Palácio Bajamonti-Dešković. Altas palmeiras, bancos estrategicamente virados para o mar, esplanadas, lojas e vendedores ambulantes, de tudo um pouco se encontra neste “passeio público” cheio de gente e de animação.
Quase no extremo leste da Riva uma abertura na muralha leva-nos à passagem inferior que atravessa as caves do Palácio (8), actualmente ocupadas por balcões e vitrinas que expõem um sem número de produtos para venda, e de onde emergimos para o exterior por uma escadaria.
Depois de vaguearmos mais um bocado pelos pátios, ruínas e ruelas do bairro, encetámos o caminho de regresso pela porta por onde tínhamos entrado. Cá fora, dois rapazes altos como torres vestidos de soldados romanos encenavam lutas e tentam atrair turistas para se deixarem fotografar com eles, em troca da esperada compensação monetária – que no entanto alguns se recusam a pagar.
O sol já se punha quando voltámos ao carro para nos dirigirmos a Trogir, onde na véspera (… abençoadas novas tecnologias!) tínhamos reservado alojamento para os dias seguintes. A menos de 30 km de Split, Trogir pareceu-nos uma opção mais calma para usarmos como base na nossa visita à região, e suficientemente perto de tudo – além de ser uma cidade bonita. A opção que fizemos revelou-se a mais acertada (e de que maneira!), como vão perceber pelos próximos posts.
A estrada tem muito movimento e uma parte estava em obras, por isso o percurso demorou mais do que esperávamos. Mas o mais complicado foi – para não variar – encontrar o nosso alojamento, que na verdade não se situava mesmo em Trogir mas sim 3 ou 4 km mais à frente, em Seget Donji, uma zona balnear que se estende para oeste ao longo da costa. Depois de várias voltas para trás e para a frente, subindo e descendo por estradinhas estreitas e mal iluminadas – entretanto já era noite cerrada – e de uma escusada incursão até à marina, de termos passado lá bem perto (obviamente sem sabermos) por duas vezes e de termos perguntado a várias pessoas, lá conseguimos encontrar alguém que nos indicou a casa certa.
Os pormenores do lugar vão ficar para depois, mas só vos digo que tanta trabalheira acabou por ser bem recompensada.
Por recomendação da dona da casa, e depois de largarmos as malas, saímos para jantar no Zule, a uma curta de distância de 100 metros do apartamento. É um típico restaurante de praia, despretensioso e com uma grande sala semi-aberta para o exterior, tecto forrado a palhinha e plantas trepadeiras a alegrarem o ambiente. Escolhemos um prato típico dos Balcãs, de seu nome Ćevapčići (ou Ćevapi), carne picada e temperada, enrolada em forma de salsicha e depois grelhada, que acompanham com batata frita, uma salada ligeira e molho de tomate. O serviço é muito simpático e informal, mas bastante eficiente, e os preços não assustam.
Para terminar a noite em beleza e desmoer o jantar, um curto passeio junto à praia, com as luzes da ilha de Čiovo a verem-se ao longe.
A surpresa aguardava-nos no dia seguinte, mas nós ainda não sabíamos.
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