Cotswolds, a Inglaterra genuína - parte 3
Broadway e o percurso pedestre até Stanton
Manhã de sol e céu azul-turquesa, sem uma única nuvem, e temperatura amena o suficiente para não precisarmos de casaco. Não fossem as cancelas de madeira que tínhamos acabado de passar e a erva alta, absurdamente verde, de ambos os lados do trilho, nem pareceria que estávamos em Inglaterra. A tranquilidade bucólica do passeio foi quebrada de repente por dois cães felpudos que passaram por nós em louca correria, orelhas a voar e línguas de fora, numa felicidade estonteante por se encontrarem à solta. O dono, um rapaz sorridente, vinha logo a seguir. Cheios de energia, todos eles galgaram o prado inclinado bem mais depressa do que nós, que preferimos manter o nosso passo relaxado habitual. A caminhada estava no início e ainda tínhamos vários quilómetros pela frente.
Broadway: o ponto de partida
Tínhamos chegado a Broadway na véspera ao final da tarde, numa viagem de menos de meia hora de autocarro desde Moreton-in-Marsh. Durante os dois dias seguintes, esta vila seria a nossa base para explorar mais alguns trechos do Cotswold Way.
Broadway tem algo de cinematográfico logo à primeira vista. A rua principal, larga e plana, atravessa toda a vila de leste para oeste, alongando-se com elegância por entre as tradicionais casas em pedra das Cotswolds, com os seus telhados escuros e muito inclinados, as suas bay windows simétricas, e os pormenores que parecem criados para um cenário de filme de época. É fácil perceber porque lhe chamam “jóia das Cotswolds”: a harmonia arquitectónica é quase perfeita. Ao contrário de outras vilas mais pequenas, Broadway tem um ar simultaneamente rural e cosmopolita, onde se misturam a serenidade inglesa e uma certa sofisticação. Um carácter duplo que se sente na vida própria da vila e no quotidiano dos seus habitantes, por um lado, e por outro no facto de ter um grande número de pequenas galerias, lojas de antiguidades, hotéis históricos e pubs tradicionais – uma espécie de montra do que as Cotswolds têm de mais encantador.
O nome “Broadway” não é obra do acaso. Deriva de broad way, “estrada larga”, uma referência à sua rua principal, que fez parte de uma rota medieval importante. Tal como outras localidades na região, Broadway cresceu devido às produtivas áreas de pastagem circundantes e ao negócio da lã a elas associado. No século XVI, com a abertura de uma rota de diligências, prosperou como local de paragem para as carruagens que operavam o percurso de Worcester para Oxford e Londres. Foram construídas pousadas para alojar os viajantes, e eram providenciados todos os serviços necessários a quem por ali passava, desde cavalariças a bares, razão pela qual a maioria dos edifícios históricos da localidade data do século XVII. O Lygon Arms, mansão volumosa e elegante que não passa despercebida e funciona como hotel de charme, alojou o rei Carlos I durante a Guerra Civil e, mais tarde, o seu opositor Oliver Cromwell.
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No século XIX, Broadway começou a atrair visitantes e artistas, em grande parte devido à construção da Broadway Tower (de que falarei no próximo post). Na década de 1880 formou-se na vila uma verdadeira colónia criativa, conhecida como “grupo de Broadway”, onde pintores, escritores e músicos conviviam. Entre eles destacaram-se William Morris, figura central do movimento Arts and Crafts, e o norte-americano John Singer Sargent, que ali trabalhou na sua obra-prima Carnation, Lily, Lily, Rose. O prestígio de Broadway na área do design viria a ser reforçado no século XX com a família Russell. Gordon Russell, que cresceu na localidade, fundou em 1922 a empresa Russell and Sons. A sua visão unia a eficiência das máquinas modernas ao espírito artístico, conciliando a produção industrial com o respeito pelos trabalhadores. Todo este legado está patente tanto no Gordon Russell Design Museum como no Broadway Museum and Art Gallery, que recorda a colónia artística e a ligação a Sargent.
Broadway mantém-se orgulhosa desta herança cultural: a High Street exibe galerias e antiquários; o Broadway Hotel usa papel de parede com os designs criados por William Morris; e o dinâmico Festival de Artes de Broadway continua a projectar a vila para lá da sua modesta dimensão.
O alojamento escolhido para os dias que passámos nesta parte das Cotswolds é uma casa genuína do século XVII, entretanto modernizada e tornada confortável para os dias de hoje. A porta de acesso está espremida entre as montras de uma imobiliária. Do espaço exíguo da entrada, com lugar apenas para largar gabardinas e ténis, uma escada de madeira leva ao piso superior, que ocupa toda a largura do edifício. O interior peculiar mantém as paredes antigas, com alguns barrotes de carvalho à vista, o piso com desníveis e as janelas gradeadas características, em ferro e com pequenas portinholas. A mistura de design vintage com pormenores modernos diz bem com a patine da casa. Como bónus, no exterior há um “jardim secreto”, acessível a partir da rua passando por uma pequena arcada que nos leva às traseiras do edifício. Ficar neste alojamento deu-me aquela sensação de estar verdadeiramente no coração de uma vila inglesa – uma espécie de meio caminho andado para sentir o espírito da região.
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Para o nosso primeiro jantar em Broadway decidimos ir comer aquilo que, por estranho que pareça, é um dos pratos mais típicos de Inglaterra: “fish and chips”. A história deste clássico da culinária britânica – peixe frito em polme acompanhado de batatas fritas – está curiosamente entrelaçada com a Revolução Industrial e a própria identidade moderna do país, mas também com o nosso país. Segundo parece, a tradição de fritar peixe chegou a Inglaterra com os judeus sefarditas vindos de Portugal e de Espanha, nos séculos XVI e XVII, que trouxeram com eles o hábito de preparar peixe frito em azeite (geralmente bacalhau ou peixe branco) para ser depois comido frio no shabat. Quanto às batatas fritas, crê-se que tenham sido introduzidas no norte de Inglaterra, inspiradas pelas pommes frites francesas ou belgas. Tornaram-se populares entre as classes trabalhadoras urbanas no século XIX, quando as batatas começaram a ser produzidas em larga escala e a preços baixos.
Ninguém sabe ao certo quem juntou o peixe e as batatas pela primeira vez, mas este casamento culinário popularizou-se sobretudo na época da Revolução Industrial. Era uma refeição quente, barata, nutritiva e fácil de transportar, ideal para operários e mineiros. Os fish and chips eram servidos embrulhados em papel (normalmente papel de jornal) e comidos à mão, sem talheres. Tornaram-se de tal maneira importantes que nem durante as duas Guerras Mundiais foram racionados, numa decisão política consciente para manter tanto o moral como uma razoável condição física da população e dos próprios combatentes. Hoje em dia, servidos em chippies (as lojas tradicionais), em papel reciclado ou em caixas modernas, levemente temperados com sal e vinagre, e muitas vezes acompanhados de mushy peas (ervilhas esmagadas), são mais do que uma refeição: são uma herança cultural acessível a todos, sem distinção social.
Em Broadway, o Russell’s Fish & Chips é um restaurante muito popular e dá-nos a opção de vários tipos de peixe frito. Com a luz de Junho a desaparecer tarde e uma temperatura do ar simpática (eu diria até muito simpática, se pensarmos no habitual clima britânico), abancámos numa mesa da esplanada do Russell’s, que estava bastante concorrida. Fiquei com a impressão de que não são só os portugueses que gostam de jantar fora de casa à sexta-feira.
De Broadway a Stanton
O sábado amanheceu com um sol radiante, prometendo uma manhã perfeita para caminhar. Pequeno-almoço tomado na The Cotswold Larder, uma pastelaria acolhedora meio escondida numa transversal da High Street, apontámos ao Cotswold Way. Cruzámos a Church Street – onde, obviamente, fica a igreja da vila, dedicada a São Miguel e Todos os Santos – e seguimos pelo trilho de terra batida, assinalado com a habitual placa de madeira que indica os caminhos públicos das Cotswolds.
Uma das particularidades mais encantadoras desta região são precisamente os “public footpaths”, trilhos que atravessam campos, portões e até mesmo propriedades privadas – mas que, por lei e tradição, permanecem abertos a todos. Estes caminhos existem há séculos: eram as rotas usadas pelos camponeses para ir à igreja, ao moinho ou ao mercado da aldeia vizinha. Quando, nos séculos XVIII e XIX, muitas terras começaram a ficar delimitadas por muros e vedações, vários movimentos populares defenderam o “direito de passagem”, e esta pressão deu frutos. Actualmente, estes percursos estão protegidos por lei, e os “public footpaths” tornaram-se uma instituição britânica. Estão devidamente sinalizados, com portões de madeira e placas verdes ou amarelas, sempre com o típico aviso “Please close the gate”. Representam uma das formas mais genuínas de explorar a região, e poder caminhar por eles é, de certa forma, reproduzir os passos de gerações que moldaram a paisagem inglesa. Com a diferença, não despicienda, de que agora o fazemos em modo de passeio e não por necessidade.
O caminho até Stanton é um dos troços mais agradáveis do Cotswold Way. Tem alguns desníveis, mas não é um percurso difícil. À medida que subíamos ligeiramente, a vista alargava-se sobre vales e quintas dispersas. Até perto de Buckland, alterna entre prados com erva alta e curtos trechos arborizados, às vezes ladeado por sebes antigas que delimitam propriedades rurais. Buckland é uma aldeia pequena e muito antiga, situada num vale tranquilo e rodeada por um cenário pitoresco de florestas. O seu presbitério do século XV é considerado o mais antigo ainda em uso no condado de Gloucestershire. Dois dos conjuntos de edifícios mais emblemáticos da aldeia, o Buckland Court – um conjunto de antigas casas agrícolas – e a Buckland Manor, ao lado da Igreja de São Miguel, funcionam agora como hotéis de gama alta.
Em Buckland seguimos pelo troço que faz parte do Winchcombe Way, atalhando caminho através da encosta onde descansavam pequenos grupos de ovelhas com as suas crias, espapaçadas (e certamente surpreendidas) pelo calor pouco habitual, e sem possibilidade de se verem livres dos seus cobertores naturais de lã.
O atalho passa pela colina sobranceira a Laverton, outra aldeia cheia de exemplos da arquitectura vernacular das Cotswolds, e depois começa a descer para Stanton, onde chegámos duas horas e cerca de sete quilómetros depois de termos saído de Broadway. O ritmo tranquilo da caminhada, sem pressas e com as habituais (muitas) paragens para fotografar, foi ideal para interiorizarmos a paisagem e o ambiente.
Stanton, uma aldeia de postal ilustrado
Em Stanton, o Winchcombe Way desagua na High Street junto a uma antiga cabina telefónica, ainda pintada com o tradicional vermelho-vivo mas cuja função primordial foi substituída pela de quadro de avisos públicos.
O nome Stanton é uma combinação dos termos do inglês antigo “stan” (pedra) e “tun” (recinto, aldeia). A história da aldeia remonta pelo menos ao século IX, quando o rei Kenulf a doou à Abadia de Winchcombe. A aldeia prosperou durante o período medieval, e partir do final do século XVI passou por uma reconstrução significativa, muitas das casas actuais tendo origem nesse período. Após a dissolução da abadia, Henry VIII ofereceu a localidade à rainha Katherine Parr. Em inícios do século XX, o arquitecto Philip Stott comprou e restaurou a mansão Stanton Court. Decidiu também investir na recuperação de vários outros edifícios e financiou melhorias nas infra-estruturas da aldeia, como a instalação de iluminação pública, a construção de um campo de críquete e a ampliação da escola.
Na série de guias sobre arquitectura inglesa “Buildings of England” criada pelo historiador britânico Nikolaus Pevsner, Stanton foi considerada “arquitectonicamente, a mais distinta das pequenas aldeias do norte das Cotswolds”. E quem sou eu para argumentar o contrário? Fosse eu pintora exímia e ter-me-ia sentado a registá-la em papel e aguarelas. Não o sendo, fiquei-me pelas fotografias. Porque Stanton mais parece um daqueles postais antigos que perpetuam o ideal do countryside inglês. Só que aqui nada é inventado: tudo é real e surpreendentemente autêntico. Ao longo da rua principal alinham-se casas em pedra cor de mel, manchadas de diferentes tonalidades que revelam as marcas do tempo. Os telhados de pedra escura, muito inclinados e com trapeiras generosas, coroados de chaminés altas, parecem uma sucessão de pirâmides encaixadas umas nas outras. As portas e janelas, mesmo quando manifestamente novas, mantêm os característicos caixilhos quadriculados. Não há fios eléctricos à vista, nem sinais de trânsito, ou comércio moderno. E as notas contrastantes de cor ficam por conta dos buxos, das trepadeiras e das flores de inúmeras espécies. Stanton está cuidadosamente preservada, e não é de admirar que já tenha sido usada como cenário em filmes e séries de época.
A aldeia é um beco sem saída, em termos rodoviários, e fica a meio quilómetro da estrada principal. Apesar de ser sábado, o movimento de pessoas era escasso, e o de carros inexistente. Não há muito para fazer em Stanton a não ser passear sem destino. Fomos espreitar a Igreja de São Miguel e Todos os Anjos (por estes lados também não são muito imaginativos com os nomes das igrejas), escondida ao fundo de uma ruela perpendicular à High Street, onde um cruzeiro medieval parece indicar o caminho a seguir.
O edifício actual data principalmente do século XV, mas terá sido possivelmente construída no local de uma igreja saxónica. O interior é espartano e tem muita madeira escura, como é habitual nestas igrejas tão antigas. Também aqui, espelhando o lado prático dos ingleses, notei a presença de coxins semelhantes aos que tinha visto em Stow-on-the Wold, diligentemente pendurados nas costas dos bancos corridos, destinados a almofadar a genuflexão dos participantes nas missas.
Quando chegamos ao extremo leste da High Street, a rua bifurca. Seguindo pela direita, não há como ignorar a Sheppey Corner, uma casa de campo com telhado de colmo que data de meados do século XVII. É encantadora e fotogénica. Segundo as informações que encontrei, foi originalmente uma casa grande com celeiro, mas agora está dividida em três casas diferentes (Cloisters, Sheppey Cottage e Pixie Cottage), tendo sido ampliada na parte de trás na década de 60.
Stanton tem alguns alojamentos locais, mas para comer só existe um sítio: o The Mount Inn, um pub tradicional que se ergue no final da High Street, onde a rua se torna mais íngreme. O edifício, que remonta ao início do século XVII e foi originalmente uma quinta, tem uma localização excepcional e oferece uma vista panorâmica espectacular sobre o Vale de Evesham, até às colinas de Malvern e mais além. A sala do restaurante estava praticamente cheia, mas uma empregada simpática e desembaraçada arranjou-nos logo mesa junto a uma das janelas, por onde entrava um solzinho agradável.
O ambiente do Mount é descontraído e acolhedor, e serve tanto quem quer comer a sério como quem só quer petiscar, ou mesmo apenas beber uma cerveja. O menu varia consoante a época do ano, pois baseia-se sobretudo em ingredientes locais. Optei por ovo escalfado com espargos, que me soube pela vida depois da caminhada, e não consegui resistir ao brownie de chocolate com gelado para sobremesa. Tudo delicioso!
No exterior, o pub tem uma esplanada, e do outro lado da estrada há um parque de merendas, para quem tiver levado o seu próprio farnel ou optar pelo serviço de take away do restaurante.
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Energias recarregadas, ainda demos mais uma volta pela aldeia antes do regresso. Para não acumular cansaço (no dia a seguir íamos ter uma caminhada bem mais longa), decidimos voltar a Broadway de autocarro – que só passa na estrada principal, a B4632. O céu estava a ficar carregado de nuvens escuras, e quando chegámos ao campo de críquete de Stanton Court já chuviscava. Nada a que os ingleses não estejam mais do que habituados. Nem os jogadores nem a assistência, reduzida e instalada em cadeiras de lona portáteis, pareciam estar incomodados com a chuvinha. Que, na verdade, não tardou a desaparecer.
Continuando pela estrada estreita que sai de Stanton (sem bermas, como já esperávamos, mas felizmente sem trânsito), umas centenas de metros mais à frente encontrámos uma raposa, infelizmente morta. Jazia junto à berma inexistente, e teria sido certamente atropelada. O que mostra que a coabitação da vida selvagem com a humana, mesmo em ambientes bucólicos e aparentemente calmos, é tudo menos benéfica para essa mesma vida selvagem.
A paragem de autocarro é discreta (um poste com uma simples placa, que teria sido mais difícil de encontrar sem a ajuda do Google Maps) e sem abrigo. Como em quase todas as zonas rurais inglesas, os horários são limitados, mais ainda ao sábado. Ao domingo, muitas destas localidades nem sequer são servidas por transportes públicos, o que fica bem patente no trânsito automóvel intenso, que chega a ficar congestionado em certos pontos.
Porque a pontualidade britânica já não é o que era, o autocarro que nos levou de volta a Broadway chegou com uns ligeiros minutos de atraso, mas o regresso foi rápido. Sobre rodas, o percurso entre as duas localidades não demora mais do que 15 minutos a ser cumprido. O contraste com o ritmo da caminhada é evidente: o que tinha demorado horas a alcançar, desapareceu da vista em instantes. São estas mudanças – do compasso lento da caminhada para a rapidez da deslocação a motor – que mostram bem a diferença entre “viajar” e “chegar”.
De volta a Broadway, a vila mantinha o mesmo ar tranquilo da manhã, agora mais obscurecido pela ausência de sol. Foi um dia sem grandes desafios físicos, mas cheio de pequenas recompensas, e resumiu bem o que torna as Cotswolds uma das regiões mais agradáveis de explorar a pé: paisagens acessíveis, localidades bem preservadas, e uma rede de trilhos que mantém viva uma relação antiga entre o campo e quem o percorre. Um dia feito de pequenos episódios que ficam na memória.
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