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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Ter | 09.04.24

Cotswolds, a Inglaterra genuína - parte 1

Moreton-in-Marsh e o Arboreto de Batsford

 

Cinco e meia da tarde de um dia de Junho excepcionalmente morno em Bourton-on-the Water. É quinta-feira, mas parece fim-de-semana. As margens do Windrush estão pejadas de gente: famílias sentadas na relva, casais em passeio romântico, bancos de jardim ocupados por pessoas dedicadas à nobre arte de nada fazer. Há miúdos a jogar à bola, e ir buscá-la ao rio parece ser um bom pretexto para se molharem, mesmo vestidos. Na verdade, o Windrush é mais canal do que rio, e a água mal lhes chega aos joelhos – é uma espécie de piscina para crianças, só que mais longa do que o habitual e de acesso mais fácil. Miúdos e graúdos estão contentes com estas temperaturas inesperadas, e contentes estão os patos, que vêem a sua dieta habitual reforçada com as sobras dos lanches comidos à sombra das árvores.

 

Também nós aproveitamos para descansar, sem nada mais para fazer do que esperar pelo autocarro que nos irá levar de volta a Moreton-in-Marsh, de onde saímos de manhã para passarmos o dia a caminhar. Temos mais de 17 quilómetros percorridos, com poucas paragens pelo meio, e as pernas já começam a revoltar-se. Portanto, descansamos, enquanto absorvemos a atmosfera descontraída desta pequena vila situada no coração do Reino Unido, na região que dizem ser a quinta-essência de Inglaterra: as Cotswolds.

 

As Cotswolds são uma cadeia de colinas que se estendem entre a região central e o sudoeste de Inglaterra, cujo leito rochoso de calcário jurássico dá origem a um tipo de habitat de pastagem raro no país. A área abrangida vai de Stratford-upon-Avon até Bath e inclui um nunca acabar de locais históricos e aldeias plenas de charme, onde o tempo parece ter desacelerado, preservando as tradições e a aura de outros séculos. Reconhecida como sendo a região mais genuinamente inglesa, permeada por paisagens rurais e um ambiente de serenidade, visitar as Cotswolds é uma espécie de viagem ao passado, com momentos em que sem grande esforço conseguimos imaginar ter recuado algumas centenas de anos.

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Moreton-in-Marsh

 

Foi de comboio que chegámos a Moreton-in-Marsh, vindo de Londres. Assim que deixámos os subúrbios da capital, a paisagem tinha começado a mudar, com o verde a ocupar as janelas durante a maior parte do percurso. Era o início de uma tarde de sol e céu limpo, a Primavera perto de se transformar em Verão e uma atmosfera modorrenta a condizer. A estação estava posta em sossego, e as poucas pessoas que saíram do comboio depressa desapareceram. À primeira vista, parecia não se passar nada; não soubesse eu que estava em Inglaterra, poderia julgar que era hora da sesta. Só quando chegámos à High Street – o troço da A429 que cruza a localidade de norte a sul sobre o Fosse Way, uma via importante na época da ocupação romana – é que deu para perceber o movimento (principalmente rodoviário) que a vila tem, a ponto de serem necessários alguns semáforos.

 

Tal como a maior parte das localidades das Cotswolds, Moreton-in-Marsh começou a progredir na Idade Média graças à produção de lanifícios. Os férteis campos de pasto da região têm as condições ideais para a criação ovina, permitindo que os rebanhos se alimentem de forma saudável, e as ovelhas da raça Cotswold estão bem adaptadas às condições locais e têm sido historicamente criadas para a produção de lã de alta qualidade. Os edifícios da High Street são exemplo desse desenvolvimento: belas casas de cor ocre construídas em pedra das Cotswolds – um calcário oolítico local, robusto e único em termos de tonalidades e padrões, que dependem de cada pedreira, por vezes com manchas de fósseis. Este tipo de pedra tornou-se extremamente popular na construção a partir do século XVII, e a sua durabilidade permitiu que a maioria das casas se mantenha de pé e em bom estado até aos nossos dias. Com apenas dois ou três pisos, telhados íngremes feitos de ardósia de pedra escura onde se destaca uma grande chaminé, e por vezes com águas-furtadas, não admira que a este estilo de arquitectura tenha sido dado o nome de “estilo de livro de histórias”.

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Nas ruas secundárias de Moreton-in-Marsh as casas têm jardinzinhos resguardados por muros de pedra ou tijolo, ou por vezes apenas pequenos canteiros floridos de ambos os lados das portas, mas na High Street os pisos inferiores estão ocupados por lojas – sinal da vocação mercantil desta vila desde o século XIII, onde a rua principal era (e continua a ser) uma via comercial por excelência. Não há luzes de néon nem montras espalhafatosas, substituídas por portas em tons pastel, floreiras e nomes em placas de madeira ou metal. E é aqui que é montado, todas as terças-feiras a partir das 9 da manhã, o maior mercado de rua das Cotswolds, com mais de 200 bancas que vendem praticamente de tudo.

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Crê-se que o edifício mais antigo da localidade seja a Curfew Tower, que terá sido construída no século XVI. Tanto o relógio como o sino são seiscentistas, e o seu toque marcou a vida dos habitantes todos os dias até emudecer definitivamente em 1860. Mas o edifício que mais chama a atenção é o Redesdale Market Hall, ostensivo pelas suas dimensões e pináculo, marcando o centro da vila – embora só tenha sido erigido em 1887 por Sir Algernon Mitford, que em 1905 foi agraciado com o título de 1º Lord Redesdale. À primeira vista parece uma igreja, mas na realidade é um centro cultural com espaço para concertos e outros eventos.

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A igreja paroquial, essa está numa localização mais recatada, e tem aspecto menos exuberante, apesar da sua torre piramidal que perfura as alturas. Dedicada a São David e construída em 1858 sobre uma antiga capela, o seu estilo é enganadoramente medieval – tal como sucede, de resto, com várias outras igrejas da região, que assumem uma traça mais antiga do que a sua idade real. Característica também comum à maioria das igrejas que visitámos nesta viagem é o facto de estar rodeada por árvores e um relvado que acumula a função de cemitério.

Outra curiosidade de Moreton-in-Marsh é a sua aparente ligação a J. R. R. Tolkien. A Tolkien Society crê que o The Bell Inn, que fica na High Street, serviu de inspiração para o The Prancing Pony (O Pónei Galopante), o pub mais famoso da Terra Média na trilogia “O Senhor dos Anéis”. Prova disso serão as semelhanças nos três andares do edifício do pub e a sua entrada através de um pátio, bem como as coincidências entre Moreton-in-Marsh e a localidade de Bree, onde se situa o pub imaginado. A distinção está mencionada numa placa afixada na fachada do edifício, que funciona também como alojamento local. No amplo pátio murado há mesas e cadeiras de madeira escura, acomodadas sob uma pérgula protectora, e muitas plantas. É uma espécie de jardim acolhedor, com ambiente tranquilo, frequentado por casais com ar de bem na vida e senhoras de cabelo branco que nos tratam por “love”, onde tomámos uma bebida a meio da tarde. Mais “British” do que isto é impossível.

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Pelo Monarch’s Way até ao Arboreto de Batsford

 

Prados com erva fofa pontilhados por flores amarelas e brancas (anémonas-dos-bosques, margaridas e malmequeres-dos-brejos), cancelas de madeira que temos de abrir e voltar a fechar, ovelhas de pêlo claro a pastar ou deitadas à sombra das árvores… Parece cliché, mas é uma realidade constante nas Cotswolds, onde os trilhos pedestres continuam a ser uma das formas mais populares de deslocação entre as aldeias (para os visitantes, que os locais parecem andar sempre de carro, a julgar pelo movimento louco das estradas principais). Adicionem sol e uma temperatura do ar amena, e fica completo o convite para uma caminhada de 3 km entre Moreton-in-Marsh e um dos parques mais bonitos da região: o Arboreto de Batsford. O trilho faz parte do Monarch’s Way, um percurso pedestre com mil quilómetros que retrata a rota de fuga seguida pelo Rei Carlos II em 1651, depois de derrotado na Batalha de Worcester.

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Um arboreto é uma espécie de cruzamento híbrido de um parque com um jardim. É a natureza domada pelo Homem, mas a fazer de conta que o não foi. É espaço de lazer, onde podemos ter a certeza de encontrar um ambiente relaxante, e ao mesmo tempo de aprendizagem, oferecendo informação sobre uma grande variedade de espécies arbóreas, bastas vezes oriundas de zonas geográficas remotas. É lugar de estudo e conservação de espécies genéticas vegetais, muitas delas ameaçadas de extinção. É um catálogo botânico vivo.

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O de Batsford foi criado em finais do século XIX também por Sir Algernon Mitford, que herdou a propriedade e decidiu transformá-la num parque naturalista com influências orientais, influenciado pelos anos que tinha vivido no Japão e na China ao serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros inglês. Foi ele quem esteve na origem da grandiosa colecção de bambus e dos muitos elementos orientais congregados na área mais intimista do arboreto, bem como do longo curso de água artificial no lado ocidental do parque e da gruta do eremita.

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Contudo, a concepção do espaço tal como hoje o encontramos deve-se a Frederick Anthony Hamilton Wills, 2º Lord Dulverton, que tomou posse do local na segunda metade do século XX. Restaurou o que existia (que se tinha degradado por negligência, em grande parte devido à Segunda Guerra Mundial) e introduziu colecções de bétulas, áceres, carvalhos, freixos, tílias, magnólias, pinheiros, abetos e muitas outras árvores raras.

As mais raras de todas têm uma história fantástica, e no entanto quase passam despercebidas. Perto da ponte japonesa, um pequeno grupo de pinheirinhos com ar enfezado, cada um deles rodeado por uma cerca de rede, apenas chama a atenção por destoar das árvores encorpadas, bem adultas, que o rodeiam. São pinheiros Wollemi (Wollemia nobilis), informal e carinhosamente apelidados de árvores-dinossauro. Há 130 milhões de anos, quando os jurássicos dinossauros eram donos do nosso planeta, estas árvores cobriam a Austrália, mas ter-se-iam extinguido há uns dois milhões, mais coisa menos coisa, e delas só existiam vestígios fósseis. Ou assim se julgava. Em 1994, David Noble, guarda-florestal no Parque Nacional de Wollemi, descobriu um pequeno bosque de árvores desconhecidas num desfiladeiro remoto da sua área de trabalho – desconhecidas para ele e até mesmo para os peritos dos Jardins Botânicos Reais de Sydney, que só perceberam de que espécie se tratava quando a compararam com fósseis antigos. Considerada a “descoberta botânica do século”, e porque existiam menos de 100 árvores adultas, o local foi mantido em segredo até se verificar que era possível cloná-las com sucesso. Estes clones originais fizeram um furor tão grande que acabaram por ir mais tarde a leilão na Sotheby's, os lucros tendo servido para apoiar investigações posteriores para conservação da espécie. Duas árvores descendentes destes clones foram plantadas em Batsford em 2007. Em geral, o pinheiro Wollemi é conhecido por ter um crescimento relativamente lento. Em condições ideais, pode crescer até cerca de 25 a 40 centímetros por ano, mas em condições menos favoráveis o seu crescimento pode ser ainda mais lento.

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A diversidade arbórea do espaço é fascinante e afasta a monotonia. Nos seus 56 hectares acolhe mais de 1300 espécies diferentes de árvores, arbustos e bambus, num total de 2850 espécimes etiquetados. O verde dominante é quebrado pelos tons de ferrugem e vinho do ácer (ou bordo) japonês, pela paleta de rosas das flores de magnólia, pelo vermelho-acastanhado do tronco das gigantescas metasequóias (outro fóssil vivo, com 90 milhões de anos), pelo branco da árvore-dos-lenços (Davidia involucrata) e das cheirosas madressilvas, pelo amarelo berrante dos lírios que florescem à beira da água.

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O Arboreto de Batsford tem também um centro de jardinagem bastante concorrido – a paixão inglesa por jardins não é um mito – e um restaurante tipo self-service amplo, impecavelmente organizado e não demasiadamente caro, com um terraço ao ar livre perfeito para dias amenos, como o da nossa visita. O sítio certo para repor energias para a caminhada de regresso a Moreton-in-Marsh.

 

Parte 2 da viagem - De Moreton-in-Marsh a Bourton-on-the-Water (a publicar) →

 

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