Cores de Aveiro
Eram nove e picos da manhã de um sábado de Verão quando descemos do hotel até ao centro da cidade em busca do pequeno-almoço. Depois da agitação da noite anterior, Aveiro estava posta em sossego. Os poucos carros que passavam nas ruas quase não faziam ruído, na areia da Funky Beach – uma praia improvisada junto ao Museu, cheia de pormenores engraçados – havia apenas uma criança a brincar, supervisionada por duas senhoras, e na Praça da República as franjas de tecido branco da instalação “Passagem” dançavam ao sabor da brisa que espalhava o calor.
Não durou muito esta calma. Sentada numa esplanada junto à ria vi as portas do centro comercial abrirem-se, o passeio pedonal repentinamente mais cheio de gente, os primeiros barcos multicoloridos a rolarem lestamente na direcção do Cais da Ponte Nova, ainda sem lotação completa mas já com os guias a apregoarem bem alto os pontos de interesse que vão desfilando nas margens. Quando terminei o pequeno-almoço, Aveiro já fervilhava de vida, e foi ao cruzar uma das pontes pedonais sobre o canal central – colorida como um arco-íris, um dos elementos dos “Caminhos de Luz” propositadamente criados para o Festival dos Canais – que me apercebi de que gosto desta cidade cada vez mais: estou oficialmente apaixonada por Aveiro.
Como qualquer pessoa no meu estado, todos os pretextos servem para rever o objecto da minha paixão. Esta foi a minha terceira visita a Aveiro nos últimos tempos, e descubro sempre mais razões para voltar. Desta vez o motivo foi o Festival dos Canais, um evento que se estende por vários dias e alia música, arte e performances variadas. Este ano na sua quarta edição, as estrelas eram Gilberto Gil, Mariza e um espectáculo de luz, som e pirotecnia a que chamaram “Contos da Lagoa”. Mas o que mais me fez vibrar foi mesmo a actuação dos britânicos Worldbeaters, percussionistas divertidos e cheios de energia que usam roupa com luzes LED para as suas actuações e deram um animadíssimo espectáculo de street music, evoluindo pela margem da ria por entre os milhares de pessoas que os rodeavam, seguiam, e por vezes “fugiam” à sua frente. Uma animação contagiante e colorida entre as também várias instalações coloridas criadas para o evento.
Com ou sem festival, cor é o que não falta em Aveiro. Os antigos moliceiros, hoje reconvertidos em barcos a motor para passear turistas, perderam a vela e o mastro mas não as suas pinturas naïf em cores primárias garridas. Nas ruas que ladeiam o Rossio, as fachadas dos edifícios Arte Nova rivalizam em pormenor decorativo e em cor – o mais emblemático de todos, a Casa do Major Pessoa, é actualmente um museu dedicado a este estilo arquitectónico. Os azulejos das casas do bairro da Beira-Mar (que em tempos teve o nome de Vila Nova) refulgem quando lhes bate o sol, e o amarelo da Ponte dos Carcavelos sobressai sobre o verde opaco do Canal de São Roque.
Um passeio de barco pela ria desvenda mais cores da cidade (sim, eu sei que é turisticamente cliché embarcar num destes passeios, mas já sabem que eu gosto de água, e neste caso só é pena os barcos agora serem a motor e o passeio demorar tão pouco tempo…). A antiga Capitania, que começou por ser um moinho de maré e depois deu apoio à fábrica de porcelana – e que eu conheci há uns bons anos ainda em triste de estado de degradação – é agora um edifício municipal que acolhe exposições, e o branco e creme cor-de-grão em que está pintado condizem com as cores do shopping que se estende pelo lado oposto do canal. Ao fundo, no Cais da Fonte Nova, domina o barro vermelho da antiga Fábrica Jerónimo Pereira Campos, onde até aos anos 60 do século passado se fabricavam tijolos e telhas e agora está alojado um centro de congressos e exposições. E numa das pontes pedonais sobre o Canal do Cojo milhares de fitinhas em todas as tonalidades esvoaçam ao sabor da aragem, testemunhas materiais dos sentimentos de quem quer mostrar a quem passa que a amizade e o amor estão vivos e de boa saúde na nossa sociedade. Versão menos “pesada” e mais alegre dos cadeados nos gradeamentos das pontes que entraram em moda há alguns anos, surgiu em 2004 por iniciativa de dois estudantes universitários e foi de tal modo bem acolhida que após obras de recuperação em 2016 a autarquia decidiu dar oficialmente à estrutura o nome de Ponte dos Laços da Amizade.
Nas gulodices mais famosas de Aveiro, por baixo do insuspeito tom esbranquiçado da hóstia espreita o amarelão do recheio. E eu, que até nem sou grande adepta de doce de ovos, rendo-me completamente a estas delícias conventuais, popularizadas sobretudo pelas freiras do antigo Mosteiro de Jesus, a que dão o nome de ovos moles. Os meus preferidos são os da fábrica Maria da Apresentação da Cruz, produzidos desde 1882 até aos nossos dias segundo os preceitos mais tradicionais, e gosto de os comprar na loja da Rua D. Jorge Lencastre, no bairro da Beira-Mar, onde o ambiente é mais tranquilo (têm uma loja mais recente em pleno centro da cidade, perto do Canal Central).
O amarelo, além do óbvio verde, é igualmente cor dominante no Parque da Cidade, também conhecido pelo mais elegante nome de Parque Infante D. Pedro. Este jardim é para mim um dos melhores segredos de Aveiro, um lugar tranquilo e com recantos surpreendentemente encantadores. É ocupado em grande parte por um lago sobre o comprido, cruzado por pontes e habitado por um sem-número de patos. Tem uma avenida de tílias, fontes, palmeiras e outra vegetação abundante, escadaria com painéis de azulejos, uma vereda de pérgulas cobertas por buganvílias (onde o rosa-choque e o amarelo combinam na perfeição) e um edifício a que chamam Casa de Chá, e o resultado de tudo isto é um cenário absolutamente romântico e perfeito para relaxar.
Azuis com um pouquinho de amarelo são os azulejos que revestem o edifício branco da antiga estação de comboios, ao lado do qual se acede agora aos cais de embarque através de um túnel subterrâneo. Azul também, mais forte e acompanhado de vermelho, é a cor da locomotiva diesel de 1964 do Comboio Histórico do Vouga, que já me levou a passear por entre paisagens em que o verde predomina, entrecortado pelas cores variadas do casario das aldeias por onde passa. Tal como no seu “primo” Comboio Histórico do Douro , a viagem no Vouguinha é animada por um grupo regional de folclore. O destino final do passeio é Macinhata do Vouga, onde existe um núcleo do Museu Nacional Ferroviário onde estão expostas diversas carruagens de comboios antigas, todas elas bem conservadas e muito interessantes. É aqui, por entre estas relíquias do passado, que assistimos a uma engraçadíssima recriação de hipotéticos episódios da vida quotidiana numa estação de comboios algures por inícios do séc. XX.
No caminho de regresso o comboio faz uma paragem prolongada em Águeda para conhecermos as coloridíssimas obras de street art da cidade e passear sob as cores garridas dos chapéus-de-chuva que cobrem algumas ruas durante os meses de Verão: é o Umbrella Sky Project, uma iniciativa que nasceu aqui como parte do festival AgitÁgueda e já se tornou global. O que não é de estranhar, pois é uma experiência não só visualmente atraente, como sobretudo absolutamente encantatória – falo por mim, claro, mas senti-me como se estivesse dentro de um arco-íris…
Na ria de Aveiro as cores são outras, e mudam consoante os humores do tempo e as marés. Não há maneira melhor de as conhecer do que percorrendo os ainda recentes Passadiços da Ria de Aveiro entre o Cais da Ribeira de Esgueira e a Ponte Caída em Vilarinho. O percurso é fácil, quase sempre sobre a madeira castanha dos passadiços, que só aqui e ali é interrompida por pequenos troços em terra batida. A água desdobra-se em caleidoscópios de cores, ora nos prateados e azuis emprestados pelo céu, ora nos verdes e castanhos das misturas de terra e vegetação. Há bancos estilizados, também de madeira, onde podemos descansar enquanto aprendemos o significado de expressões populares ligadas aos afazeres do mar ou observamos as evoluções caprichosas do voo das aves que habitam a ria. E entre os juncos e outras plantas típicas dos sistemas lagunares escondem-se pequenos barcos, abandonados uns, outros apenas à espera do dono, fragmentos de cores vivas na placidez da paisagem.
Colorida e vibrante – mesmo quando o tempo faz caretas – Aveiro é definitivamente uma cidade aonde me apetece sempre voltar e demorar-me, e em cada vez que a visito descobrir novas cores, novos motivos para continuar a apaixonar-me.
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