Coimbra, Lousã, Góis: cidade, serra e água num roteiro de 3 dias - parte 1
A cidade e o rio
O distrito de Coimbra estende-se do litoral até ao interior serrano e, não sendo um dos maiores do país em termos de área, é sem qualquer dúvida um dos que apresenta maior variedade e riqueza de paisagens, histórias e culturas. Associada à fundação de Portugal, a cidade de Coimbra é um manancial de descobertas e aprendizagens – ou não fosse ela a cidade universitária mais famosa e mais cheia de tradições, algumas delas velhas de séculos. É por isso o sítio certo para começar este roteiro de três dias por uma das regiões do nosso país de que mais gosto, e aonde nunca me canso de voltar e ser surpreendida.
Dia 1
Coimbra, cidade secular
Coimbra é e será sempre a nossa cidade dos estudantes. Em nenhuma outra localidade portuguesa a tradição universitária está tão presente e tem tanta História. Embora o “Estudo Geral” tenha sido fundado em Lisboa e durante vários séculos alternado entre a capital e Coimbra, em 1537 D. João III decidiu que a instituição universitária ficasse definitivamente instalada nesta cidade. O que muita gente não sabe é que esta decisão levou ao planeamento de uma rua propositadamente dedicada ao desenvolvimento das instalações universitárias – uma rua vanguardista para a época, com grandes dimensões e implantada em linha recta, fora dos limites (na altura) amuralhados da cidade, onde os edifícios seriam construídos segundo padrões rigorosos, no melhor espírito renascentista, e cujo nome espelha essa intenção inicial: Rua da Sofia. É, pois, um óptimo ponto de partida para descobrir uma zona de Coimbra que é, por um lado, o coração da cidade mas, por outro, às vezes esquecida ou relegada para segundo plano numa visita, com o protagonismo a ser dado a áreas arquitectónicas mais monumentais, como o conjunto do Paço das Escolas, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha ou o Convento de São Francisco.
Pelos cânones dos nossos dias, a Rua da Sofia já não é monumental nem impressionante, parece simplesmente uma rua com muito trânsito e onde o comércio tradicional ainda impera. Contudo, um olhar mais atento vai revelando pormenores que indiciam a sua importância: várias igrejas muito próximas umas das outras, muitos edifícios de traça antiga com varandas de ferro forjado, alguns revestidos a azulejo, montras e portas de lojas rematadas por colunas e frontões trabalhados, fachadas com brasões. Com sinais metálicos, letras brancas e laranja sobre cinza-antracite, o Município de Coimbra assinala as edificações mais relevantes – afinal de contas, a Rua da Sofia não é uma rua qualquer, pois faz parte do conjunto arquitectónico da Universidade de Coimbra que foi reconhecido pela UNESCO em 2013 como Património da Humanidade.
Foi Frei Brás de Barros (na altura, por nomeação de D. João III, Reformador da Congregação da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, sediados no Mosteiro de Santa Cruz) que criou o plano para a Rua da Sofia, segundo o qual os vários colégios de ensino (na altura associados a ordens religiosas) seriam erigidos no lado nordeste da rua, enquanto o lado oposto seria reservado para habitação e comércio de apoio às instituições e seus alunos. Os primeiros colégios construídos foram os de São Miguel, Todos os Santos, Nossa Senhora do Carmo e do Espírito Santo, e mais tarde os da Graça e de São Pedro, já na extremidade norte da rua. Rompendo com os planos iniciais, no lado poente foram instalados os colégios de São Tomás e de São Boaventura e, em 1543, o novo Convento de São Domingos, cujo edifício primitivo tinha sido destruído pelas cheias do Mondego.
Com a extinção das ordens religiosas masculinas em 1834, os edifícios dos colégios perderam a essência e foram progressivamente reconvertidos para outras finalidades. Se actualmente não é difícil identificar alguns dos antigos colégios, pelas suas igrejas – como as de São Pedro, da Graça e do Carmo – ou por continuarem a ser edifícios institucionais, como sucede com o Palácio da Justiça, que foi em tempos o Colégio de São Tomás, torna-se bem mais complicado perceber que há um mercado ou centro comercial instalado no Convento de São Domingos, que no antigo Colégio de São Boaventura há uma loja com grandes portas de vidro, e que o Colégio do Espírito Santo é só mais um edifício de comércio e habitação como os outros. Salva-se a originalidade de algumas lojas e a ausência (por enquanto) das grandes cadeias de fast food.
A Rua da Sofia começa na Praça 8 de Maio, a data de entrada das tropas liberais em Coimbra no ano de 1834. É aqui que se encontram os Paços do Concelho, ocupando uma boa parte do antigo Mosteiro de Santa Cruz. Fundado em 1131 com o patrocínio do nosso primeiro rei, teve como estudante mais famoso da época medieval Fernando Martins de Bulhões – ou, como é mais conhecido, Santo António de Lisboa. Mas o que vemos hoje deste mosteiro é principalmente o resultado das obras efectuadas no século XVI, o que explica a preponderância de elementos do gótico tardio tanto na fachada principal da igreja como no interior.
A extinção das ordens religiosas também afectou o Mosteiro de Santa Cruz, parte do qual acabou por ser destinado a outros fins. Mantiveram-se a igreja e a sua sacristia do século XVII (que tem pinturas de Grão Vasco e Cristóvão de Figueiredo), algumas capelas, o Claustro do Silêncio e o antigo refeitório. O interior da igreja não é exuberante, mas há vários elementos para os quais os olhos se desviam imediatamente. O mais chamativo de todos (pelo menos para mim) é o lindíssimo órgão barroco, uma peça muito harmoniosa no seu todo e invulgar pela cor avermelhada, que cria um contraste atractivo com o ouro dos ornamentos e a cor de chumbo dos tubos. As paredes estão decoradas até meia altura com azulejos barrocos, recortados no topo, que compõem painéis figurativos em azul e branco, e na abóbada de pedra há uma rede de nervuras rematadas por florões dourados.
Vermelho e ouro repetem-se no altar-mor, ladeado pelos famosos túmulos de D. Afonso Henriques e de D. Sancho I concebidos pelo escultor francês Nicolau de Chanterenne em estilo manuelino – de que os retábulos são obras-primas da estatuária, pela sua impressionante riqueza de pormenores. Do mesmo escultor são também o maravilhoso púlpito, cujo trabalho tão minucioso mais parece uma renda, e os baixos-relevos com cenas da Paixão de Cristo que se vêem no Claustro do Silêncio. A presença dos túmulos dos nossos primeiros dois reis levou a que ao Mosteiro de Santa Cruz fosse atribuído em 2003 o estatuto de Panteão Nacional (que divide com a Igreja de Santa Engrácia, com o Mosteiro dos Jerónimos e com o Mosteiro da Batalha).
Contornando o quarteirão até à parte de trás do mosteiro vamos descobrir outra preciosidade, ainda desconhecida de muitos: o Jardim da Manga. A razão para este nome permanece um mistério (há uma lenda que o associa a D. João III, que teria supostamente ordenado a sua construção, mas não corresponde à verdade), mas ele já vem da época em que este jardim era um claustro do Mosteiro de Santa Cruz, construído em torno da magnífica fonte que ainda hoje continua a ser o centro das atenções. A obra foi concebida em 1530 pelo escultor e arquitecto francês João de Ruão, também a mando do prior frei Brás de Barros. Esta fonte, com uma cúpula sobre a bacia central rodeada por quatro capelas e oito tanques rectangulares, dispostos em forma de cruz e com pequenos repuxos de água, tem grande importância simbólica, por ser considerada a primeira obra arquitectónica completamente renascentista erigida no nosso país. É também uma das Fontes da Vida mais importantes da arquitectura europeia (na arquitectura cisterciense, a fonte da vida significava imortalidade).
A edificação está decorada com colunas e arcos, escadas, gárgulas e volutas que terminam em cabeças de animais. Compondo a simetria do conjunto, quatro rectângulos de relva e duas laranjeiras, cujos frutos competem em cor com o amarelo-vivo escolhido para pintar o exterior do monumento. Apesar de estar situado junto a uma artéria bastante buliçosa de Coimbra, o Jardim da Manga transmite uma sensação de tranquilidade, de lugar à parte no mundo, impermeável ao que está do lado de fora, como que a convidar à reflexão – uma herança, talvez, da época em que foi um claustro monástico.
Esta viagem temporal aos primórdios da cidade de Coimbra não poderia ficar completa sem uma visita à Sé Velha – por ter sido mandada construir por D. Afonso Henriques quando a cidade era capital do reino, e por ser a catedral românica da época da fundação de Portugal que terá sofrido menos alterações de fundo na sua estrutura e aspecto.
As semelhanças entre esta Sé e a sua homónima de Lisboa parecem dever-se ao facto de terem sido concebidas pelo mesmo arquitecto, um tal de Mestre Roberto, que se supõe ter sido francês. De construção sólida, paralelepipédica, encimada por ameias, e com janelas tão estreitas que às vezes não passam de fendas, o seu ar de fortaleza medieval só é quebrado pelos volumes arredondados do exterior da capela-mor e pela Porta Especiosa, um portal renascentista particularmente belo que se destaca na fachada lateral norte da Sé. Esculpida em pedra de Ançã, mais clara do que a das paredes do edifício, a sua feitura atribui-se também a João de Ruão e Nicolau de Chanterenne.
O interior é bastante simples, quase espartano, com abóbadas em pedra nua, e arcos e colunas sem grandes arrebiques a separarem as naves. A hegemonia é quebrada por quadros de dimensões avantajadas, pendurados nas paredes das naves laterais, inseridos em vãos com arco, alguns deles forrados a azulejo hispano-mourisco (que vieram do bairro de Triana, em Sevilha). Além de dois túmulos e uma primorosa pia baptismal, o destaque vai para o retábulo da capela-mor concebido no estilo gótico flamejante, muito elaborado e colorido.
Talvez como reconhecimento pela sua longevidade, a Sé Velha está também intimamente ligada ao presente e à tradição estudantil de Coimbra, pois as suas escadas exteriores são o palco da serenata que dá início, todos os anos, aos festejos da Queima das Fitas nesta cidade.
Ao encontro do rio Ceira
Deixamos a cidade para trás e vamos em busca dos segredos de um dos rios mais fascinantes da região centro de Portugal: o Ceira. Precisaríamos de muitos dias para os descobrirmos todos, mas ficar a conhecer alguns já é recompensa suficiente. Tomamos a N17, que segue este rio durante alguns quilómetros até se apartar em direcção ao norte. A primeira paragem que fazemos é na praia fluvial da Bogueira, em Casal de Ermio. Deserta neste Outono que já vai avançado, o rio mais parece um espelho, e a pequena queda de água que se forma mais à frente apenas se ouve. Há um bar, agora fechado, um deck em madeira que será provavelmente uma esplanada na época alta, e outro mais à frente, onde imagino toalhas de praia estendidas e pessoas a apanharem sol. Um caminho de terra batida segue pela margem do rio, e as folhas dos plátanos pintam o chão em tons variados de castanho.
Três quilómetros mais à frente na M552 novo desvio, desta vez para o Poço do Boque. Há uma ponte metálica para os carros, com separador pedonal, e depois desce-se até um lugar a que o adjectivo idílico é bem adequado: um açude por onde o Ceira escorre em desníveis vários, pouco íngremes, e em abundância (graças às chuvas que têm caído). O entorno é meio selvagem – o Poço do Boque não é considerado zona balnear – e isso aumenta o encanto do lugar. Junto às árvores há um pescador, imóvel, paciente na sua demanda por peixe fresco do rio. Os sons zen da natureza só são quebrados pelos latidos insistentes de um cão numa casa próxima (talvez não goste de forasteiros…), e pela passagem ocasional de um carro na ponte. É um daqueles sítios que ilustram bem a definição de bucólico.
Passando Serpins, ao pé do parque de campismo, encontramos a praia fluvial da Senhora da Graça. Aqui o Ceira corre mais agitado entre as plataformas de cimento criadas para definir a praia fluvial. O local é arejado, tem uma grande área com relva e um parque infantil, um edifício baixo de apoio à praia e um café com esplanada, bastante frequentado neste dia em que o sol resolveu dar um ar da sua graça. Do outro lado da ponte, uma janela artesanal de madeira com letras naif publicita Serpins, e mais acima desenha-se o perfil da Igreja Matriz, com a sua torre sineira barroca em relevo contra o céu brilhante de azul e nuvens.
O último destino no dia é mais um daqueles lugares excepcionais pela sua morfologia geológica: a garganta de Cabril do Ceira. Aqui, o rio passa apertado entre maciços quartzíticos de altura respeitável, e o efeito é impressionante. Caprichoso, mostra-se tranquilo até passar as portas rochosas, mas a partir daí desata aos saltinhos sobre o leito irregular, soltando espuma, abrindo caminho entre os abetos e eucaliptos jovens que povoam as margens. Consta que no Verão está mais calmo e transforma-se numa lagoa maravilhosa para banhos, mas neste crepúsculo outonal o ambiente é propício para deixar a imaginação correr solta. Nem sequer falta um túnel misterioso, escuro e húmido, cavado na serra algures no século passado para uma suposta ligação ferroviária, que me faz sentir como que transportada para um filme de aventuras.
Definitivamente, “monótono” não é adjectivo que se aplique a uma viagem em Portugal.
Dia 2 do roteiro: A serra e o xisto →
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