Caminhar
Contava-me a minha mãe que comecei a andar muito cedo, e que agarrava todas as oportunidades para sair de casa. Confrontada com a condição de poder acompanhá-la desde que não pedisse colo, habituei-me desde pequenina a caminhar, por vezes distâncias que certamente pareceriam enormes para as minhas pernas de criança. Mais tarde, em viagens com o meu pai – para quem andar a pé era o modo de locomoção preferido – percorri quilómetros infindos em Nova Iorque, Londres ou Paris quase sem entrar num transporte público. Usar o autocarro ou o metro ficava reservado para o final do dia (e só às vezes…), se os pés já acusassem o cansaço.
Mesmo depois de entrar na “era das quatro rodas”, ou seja, quando passei a ter carro e autorização para conduzir, nunca deixei completamente de gostar de caminhar, pese embora durante uns bons anos só o fizesse quando não tinha outra alternativa. O frenesim diário da minha vida implicava deslocações rápidas, e a rapidez implica, em distâncias para lá de curtas, um veículo motorizado.
Fosse em Portugal ou lá fora, as minhas férias sempre envolveram caminhadas mais ou menos extensas – e nem o meu filho escapou, com uns meros cinco anos de idade, aos oito quilómetros a pé entre La Défense e o Museu do Louvre, seguidos de mais alguns a percorrer várias das enormes salas do museu. O gene de viajante que tem passado de geração em geração na minha família parece ser gémeo siamês do gene de caminhante.
Na verdade, sou daquelas pessoas que acha que andar a pé é a melhor maneira de conhecer um lugar, e este meu gosto por caminhar tem vindo a crescer com os anos. Concedo que é estranho: agora que tenho menos energia e estou em pior forma, aumentou a minha apetência pelas caminhadas. E aumentou de tal maneira, que algumas das viagens que tenho feito nos últimos anos têm propositadamente incluído uma boa fatia de trilhos pedestres. Hoje em dia, para mim, caminhar é tanto um gosto como uma necessidade, um contraponto físico e mental a uma vida que sinto (e é, sobretudo por questões profissionais) mais sedentária.
Caminhar = forma de locomoção natural
Há qualquer coisa como quatro milhões de anos, ou perto disso, os nossos antepassados da tribo Hominini tornaram-se exclusiva e definitivamente bípedes. Segundo alguns biólogos, a bipedia será até anterior ao aumento da capacidade craniana, e a libertação dos membros anteriores para outras actividades que não o apoio à deslocação terá sido um avanço de extrema importância e contribuído para esse crescimento. Várias fases evolutivas depois, o homo sapiens continua a ser bípede, e a ser um dos dois únicos mamíferos que adoptaram exclusivamente este tipo de locomoção (o outro é o canguru).
O desenvolvimento cognitivo da nossa espécie levou a que inventássemos outras maneiras de nos deslocarmos que não sobre os nossos membros inferiores. No entanto, caminhar continua a ser a forma de locomoção mais natural, simples e humana que existe. Mais ainda do que isso, o acto de colocar um pé à frente do outro, intrínseco à nossa natureza e frequentemente considerado simples e rotineiro, transcende a mera locomoção e revela-se um fascinante e multifacetado fenómeno quando explorado através de diversas perspectivas.
Caminhar nas dunas do Erg Chebbi, em Marrocos
Caminhar = andar numa determinada direcção
Embora o acto de caminhar seja satisfatório por si só – por ser um hábito saudável, porque é propício à reflexão, e porque por vezes o caminho é mais importante do que o destino – uma caminhada tendo em vista um objectivo final traz-nos um propósito definido. Há uma motivação forte, um ponto no mapa que é preciso atingir, e desistir não é opção, mesmo quando o caminho se torna mais difícil e o cansaço já pesa. Sucedeu-me isso recentemente ao percorrer uma parte do Cotswold Way, na região central de Inglaterra, num dia particularmente difícil que envolveu subidas longas, um engano que implicou uma volta maior, e uma hora de chuva torrencial no final da caminhada. Saber que me aproximava do objectivo – chegar ao alojamento, poder secar-me e descansar – deu-me “asas nos pés” e, à chegada, a sensação de ter conseguido esticar mais uma vez os meus limites.
Caminhar na região das Cotswolds, em Inglaterra
Caminhar = explorar sensorialmente diferentes ambientes
Quando caminho, os meus sentidos ficam mais despertos. A percepção do ambiente à minha volta é mais imersiva: os sons, os cheiros, as texturas do solo, as variações na luminosidade, tudo é absorvido de forma mais imediata e vívida. A forma como caminho é influenciada pelo lugar em que estou. Cada cenário imprime a sua marca na minha maneira de andar, uma simbiose única entre mim e o ambiente que me acolhe momentaneamente.
Trilho Mirador Cuernos, Parque Nacional das Torres del Paine, na Patagónia chilena
Numa cidade vibrante como Londres, a energia que parece fluir de todo o lado acelera os meus passos. A cabeça gira de um lado para o outro na ânsia de absorver todo aquele movimento, paro para tirar uma fotografia (ou muitas!), ver uma montra, esperar que um semáforo mude de cor para que eu possa atravessar, desvio-me das pessoas apressadas que se cruzam comigo. Em época de Natal, fico contagiada pela alegria das luzes coloridas e dou por mim a sorrir sem ser por nada. Já uma vila toscana como Montepulciano ou Lucca têm em mim o efeito contrário: a pedra antiga dos edifícios faz-me sossegar, como que em reverência, observar com calma, saborear os pormenores. Veneza e Bolonha pedem-me que ande ao acaso e me perca nas suas ruas, que explore os seus becos e volte para trás, que ande em círculos para ir desaguar no sítio de onde parti.
Caminhar nas ruas escondidas de Veneza
Caminhar nas ruas íngremes das vilas toscanas
Caminhar à sombra das arcadas de Bolonha
Caminhar num ambiente natural é toda uma outra experiência. Fico mais relaxada e automaticamente em sintonia com a tranquilidade da natureza ao meu redor. Uma floresta é para mim como um casulo, sinto-me protegida e confortável. Um trilho numa montanha deslumbra-me constantemente. As irregularidades do piso marcam o compasso da caminhada. A minha atenção está focada no momento: na atmosfera em que estou inserida; no obstáculo que é preciso contornar; na respiração que tenho de controlar quando a subida é mais exigente. À beira-mar, as sensações entram pela pele: a frescura da água nos pés, a textura da areia, a brisa que vem do mar e agita o cabelo. O passo é desigual, os pés enterram-se no chão, por vezes é preciso fugir de uma onda mais atrevida.
O tranquilo Bosque de Chavanod, perto de Annecy, França
El Chaltén, a capital do trekking na Argentina
Subir ao Miradouro do Poço do Salto da Inglesa no Parque Grená, em São Miguel
lhéu das Rolas, São Tomé Menorca, Espanha
Percorrer ambientes diversos é uma tecelagem dinâmica de experiências e caminhar, mais do que um acto físico, torna-se um veículo de exploração que me liga ao mundo que me rodeia e o traz para dentro de mim.
Caminhar = sentir a mutabilidade da natureza
Viver na correria da cidade desliga-nos em grande medida dos ritmos naturais da vida e das transformações a que a natureza está sujeita ao longo do ciclo das estações do ano. É certo que sentimos o frio e o calor, e apercebemo-nos de quando os dias crescem ou encolhem, vemos as folhas desaparecerem de certas árvores e as flores que às vezes desabrocham quase de um dia para o outro. Mas não vamos muito mais longe do que isso.
Percorrer a pé um mesmo trilho ou uma mesma região em épocas diferentes do ano oferece-nos toda uma outra perspectiva (muito mais abrangente) do mundo em que vivemos. Se o Minho que visito no Verão é brilhante e colorido, no Outono é maravilhoso, com as árvores pintadas em tons de ferrugem e o aroma do mosto que se espalha pelas aldeias. No Inverno, caminhei nas Fragas do Eume, na Galiza, quase sempre com o rio à vista por entre os ramos despidos dos carvalhos; no Verão, as águas do Eume ouvem-se mais do que se vêem, escondidas pela cortina frondosa que se estende ao longo das suas margens. Fazer o percurso pedestre que liga o Piódão a Foz d’Égua na Primavera é encher os olhos de paisagem colorida pelas giestas, urzes e árvores em flor, enquanto no Inverno é o cinzento que domina.
O Inverno nas Fragas do Eume, em Espanha, e o Minho no Verão
Primavera: cerejeiras em flor no Vale do Jerte, em Espanha, e giestas no Piódão
Outono no Buçaco
Caminhar ao longo das estações do ano sintoniza-nos com a natureza cíclica da vida e desperta-nos para a importância de aceitar as mudanças e transformações – as do mundo à nossa volta, e as nossas.
Caminhar = estimular a criatividade
Quando caminho sozinha num ambiente pouco distractivo, tenho tendência a divagar. E não são poucas as vezes em que noto que me surgem pensamentos mais fora do comum. Ou, se tenho alguma questão a resolver, que me é mais fácil ordenar ideias e tomar uma decisão. Caminhar actua sobre mim como uma espécie de catalisador da criatividade, de facilitador de soluções ou projectos. A cadência dos meus passos influencia o meu estado mental, como que regulando o ritmo do meu cérebro – uma espécie de meditação em movimento, de onde tudo parece surgir mais claro e descomplicado.
Passadiços da Barrinha de Esmoriz
Caminhar = sentir a mudança
Embora eu não faça caminhadas com uma regularidade fixa, tento andar a pé sempre que possível: se tenho tempo e a distância ou o peso não são incomportáveis, esqueço o carro ou os transportes públicos e vou a pé. As vantagens são mais que muitas, e caminhar tem-me ajudado até em alturas mais complicadas da minha vida: é uma terapia barata e eficaz, um estimulante natural do humor e um mitigador da tensão. Além dos óbvios benefícios para a saúde física, andar mais a pé e considerar a caminhada como uma das minhas principais actividades de lazer tem provocado algumas mudanças em mim.
Caminhar desacelera o tempo, e agora dou mais prioridade ao vagar. Neste mundo em que a pressa é uma constante, caminhar sabe-me a pausa e cada vez gosto mais de observar o que me rodeia ao ritmo dos meus passos. Andar a pé é também uma celebração da simplicidade, e tenho vindo progressivamente a tentar simplificar a minha vida, dando mais espaço (temporal e mental) ao que é realmente importante para mim. E é uma lição de humildade: quando me desloco pelos meus próprios meios apercebo-me melhor da minha pequenez na ordem natural do universo.
Caminhar até à aldeia desabitada da Drave
A ligação entre o movimento físico e a nossa mente é mais profunda do que parece. Caminhar ajuda-me tanto a reflectir como a tomar consciência do que existe à minha volta, e conduz-me a revelações profundas sobre mim própria e o nosso mundo. É a melhor maneira de me lembrar que as respostas que procuro estão frequentemente mais próximas do que pensava, e que para encontrar o extraordinário basta – tantas vezes! – olhar para o que é comum.
(Este artigo foi publicado pela primeira vez no blogue Delito de Opinião)
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