Nas curvas da Pampilhosa
Chamam-lhe da Serra, e por alguma razão haveria de ser. Cravada numa encosta desse mar de montanhas que se eleva no centro do nosso país e é apelidado de Cordilheira Central (mais especificamente, as Serras da Estrela, do Açor e da Lousã), seja de onde for que se queira chegar a esta vila há que vencer uns bons quilómetros de consecutivas curvas e contracurvas que nem as melhorias rodoviárias mais recentes conseguiram suavizar. Não fosse isso suficiente, contem também com um carrossel de subidas e descidas, que obriga a manipular constantemente a alavanca das mudanças e poderia bem servir de teste a um piloto de ralis. Pouco amiga de quem for propenso a enjoos ou vertigens, esta é no entanto uma região absolutamente fascinante e – felizmente! – ainda não descoberta pelo turismo de massas. Por ser uma região ainda desconhecida para mim, foi a minha escolha para participar no projecto #EuFicoEmPortugal*.
A caminho da Pampilhosa, depois de entrar no IC8 não consegui deixar de me lembrar dos trágicos incêndios de 2017, que causaram dezenas vítimas mortais e devastaram habitações e grandes áreas de floresta. As cicatrizes são ainda muito visíveis na paisagem que a estrada atravessa: árvores completa ou parcialmente queimadas entre outras que já recuperaram (eucaliptos, na sua maior parte), e grandes extensões já cobertas de árvores ainda pequenas (infelizmente também eucaliptos, na maioria), todas bem alinhadinhas, denunciando a sua plantação recente. Muitas mais cicatrizes haverá, invisíveis ou bem disfarçadas, no coração das pessoas que aqui vivem. Este pensamento acompanhou-me durante toda a minha estadia.
Visíveis são também os efeitos das restrições impostas às actividades económicas e ao relacionamento interpessoal para evitar a propagação incontrolável da covid-19. Vi muitos estabelecimentos fechados, quem sabe se para sempre. Aproveitando uns dias de sol e calor que anteciparam brevemente o Verão, as pessoas privilegiavam as esplanadas, onde não é obrigatória a máscara para os clientes. Várias infra-estruturas que já deveriam estar a funcionar ainda estavam encerradas, algumas delas com obras a decorrer e que talvez já estivessem terminadas se o país não tivesse sido obrigado a parar durante dois meses. Andei em estradas onde não me cruzei com um único carro durante longos minutos, passeei por ruas desertas, e uma das praias fluviais já abertas que visitei está completamente sinalizada para evitar ao máximo o cruzamento de pessoas nos locais de passagem. São tempos estranhos, estes que vivemos…
A Pampilhosa da Serra é uma vila meio tradicional, meio modernaça, como muitas outras que encontramos por todo o país. Não tem edifícios muito altos, apenas meia dúzia de prédios com três ou quatro andares. A maioria das casas de habitação são de traça simples, telhados de duas águas, cores claras, com um ou outro pormenor mais pitoresco para embelezar. As mais antigas perfilam-se numa das margens do rio, as outras trepam pelas encostas sul e oeste ao longo de ruas sinuosas e íngremes.
No centro da localidade passa o Rio Unhais, que foi aproveitado para a criação de uma praia fluvial ao lado do edifício, a tender para o futurista, das piscinas municipais. De resto, tudo o que parece ser importante na Pampilhosa está aqui à volta, numa mistura quase íntima e no mínimo incongruente, mas que não parece incomodar ninguém: os bombeiros ao lado do cemitério, a igreja em frente ao jardim anexo à praia, a Câmara junto a um mini centro comercial, o Tribunal próximo do Pavilhão Multiusos, com a Santa Casa da Misericórdia do outro lado da rua. Mais ao longe, numa das encostas destaca-se outro edifício branco e de linhas modernas: o único hotel da vila, que está actualmente encerrado. Tal como o pequeno Posto de Turismo a que chamam JIRA e até mesmo a praia fluvial, onde não corria quase água nenhuma. Estarão talvez à espera dos meses de Julho e Agosto para abrir, quando os filhos da terra vierem de visita nas férias, muitos deles decerto emigrados pelo mundo. E será também talvez nessa altura que põem a funcionar a fonte do Monumento ao Emigrante erguido no jardim por trás da Câmara.
Portanto, no domingo em que andei a passear pela vila parecia que estávamos em época de defeso, com uma ou outra excepção. A Igreja Matriz tinha as portas escancaradas para quem quisesse visitá-la ou quiçá para encorajar os fiéis, mostrando que está devidamente marcada para que possam participar na missa com o necessário distanciamento social. No largo ao lado, a água jorrava abundante ao longo de um muro forrado a azulejo e pedra, em jeito de fonte. E muitas pessoas tinham decidido almoçar fora de casa ou simplesmente ir tomar um café, enchendo as poucas esplanadas disponíveis. Também eu aproveitei para almoçar por ali, no restaurante Caruma, que tem um ambiente tranquilo e fresco com vista para o jardim da praia.
O Rio Unhais tem um curso de poucas dezenas de quilómetros e corre praticamente paralelo ao Zêzere até nele desaguar junto à aldeia de Padrões. Nasce acima de Unhais-o-Velho, na zona do Açor a que chamam Serra da Cebola, e não teria grande história para contar se nele não tivesse sido construída a Barragem de Santa Luzia. Da Pampilhosa à barragem são cerca de 17 quilómetros em estradas nacionais com bom asfalto, mas que mesmo assim não deixam de ser sinuosas e lentas de percorrer. Pelo caminho passei perto de aldeias com nomes tão deliciosos como Signo Samo, Selada das Pedras ou Brejas do Gavião. A paisagem é ampla e os meus olhos fugiam continuamente para ela, apesar da atenção redobrada que precisava de ter na condução. Ali as serras estendem-se a perder de vista, numa ondulação suave que nunca encontrei em qualquer outra região do país. O trânsito era escasso, volta e meia lá aparecia alguma carrinha conduzida com velocidade de quem conhece bem aquelas curvas, e que eu deixava passar logo que a estrada o permitia, só para poder continuar a conduzir devagarinho para poder apreciar a paisagem. Nas cristas das serranias, as pás dos já habituais aerogeradores não paravam de rodar, e por vezes a sombra de uma águia atravessava obliquamente a faixa cinzenta do asfalto.
A estrada penetrou de repente num enorme maciço rochoso e a surpresa assaltou-me depois de uma curva: a enorme mancha irregular do lago da barragem, definida por uma faixa contínua de cor clara encimada por colinas suaves cobertas de árvores, a água de um azul profundo a brilhar sob o sol aberto. Mentes absolutamente brilhantes criaram logo ali um espaço para parar o carro e um miradouro, de onde esperei que saísse uma família para depois poder eu subir e ficar com a paisagem toda só para mim. E que paisagem! Dali avistam-se quilómetros de água e serra, com as duas abóbadas de betão da barragem do lado esquerdo a fecharem uma garganta estreita por onde passa o rio, prolongadas por uma crista quartzítica impressionante e depois por uma encosta funda, que termina num vale muito verde com não mais de uma dezena de casinhas. O conjunto é verdadeiramente admirável, tirei fotografia atrás de fotografia e foi com alguma relutância que saí dali para regressar ao carro.
O destino seguinte era a praia fluvial, à qual se acede por um belíssimo e muito fresco parque florestal. Será de certeza uma boa praia, mas na verdade não consegui chegar perto dela. Num sábado de grande calor, toda a gente das redondezas teve a mesma ideia que eu e não havia nem um buraquinho decente para estacionar o carro. Acabei por desistir, voltei para trás e tomei a estrada que dá acesso à barragem, depois parei algures num local menos frequentado e desci até à beira de água. Num rio tão pequeno como o Unhais, a grande área da bacia hidrográfica de Santa Luzia só se explica porque recebe também água da Barragem do Alto Ceira, através de um túnel de derivação com vários quilómetros – um transvase entre as bacias hidrográficas do Mondego e do Tejo. Outra particularidade desta barragem é o facto de a central hidroeléctrica de Santa Luzia descarregar a água turbinada directamente no Rio Zêzere, através de uma conduta que termina na central hidroeléctrica do Esteiro, perto das aldeias de Janeiro de Cima e Janeiro de Baixo.
No caminho de regresso à Pampilhosa decidi tomar a estrada que desce do miradouro até à aldeia de Vale Grande e passa, numa curva muito apertada, mesmo por trás da estrutura da barragem e dos altos penedos que a apoiam. Se visto de cima o lugar me impressionou, quando o olhei de baixo ao passar de carro a sensação que me provocou foi absolutamente esmagadora.
Nesta minha estadia de quatro dias para visitar a região fiquei alojada na Póvoa, uma aldeia sossegada a meia dúzia de quilómetros da Pampilhosa da Serra. A Isabel House, o único alojamento rural que ali existe, é uma casinha de aldeia cuidadosamente recuperada e modernizada, ideal para passar uns dias a descansar e passear. Divide-se em dois níveis, com a cozinha e a casa-de-banho no piso inferior e a sala e um quarto no superior. Está muito bem equipada e decorada com extremo bom gosto, e obedece a todas as normas de segurança. Apesar de só a rede móvel Vodafone chegar à aldeia, há fibra óptica instalada, pelo que a internet e a televisão por cabo têm excelente qualidade.
A Póvoa é uma aldeia pequena e muito tranquila, e os seus (poucos) habitantes são de uma simpatia a toda a prova. Também ali os esqueletos de árvores calcinadas que se espalham pelas encostas próximas não deixam esquecer os incêndios, e o zumbido, abafado mas constante, dos incansáveis aerogeradores plantados no cimo das encostas dão a falsa sensação de que há vento mesmo quando nem uma folha mexe nas árvores. Grande parte das casas da aldeia estão restauradas, muitas delas com os blocos de xisto à mostra, outras rebocadas e pintadas. Muitas estão também desabitadas – os donos vivem longe ou até mesmo no estrangeiro, outras são herança e esperam por comprador. No largo principal, onde desemboca a estrada que vem da Pampilhosa e a que em tempos chamavam “Pereiro”, há bancos de pedra junto ao muro, lugar de descanso à sombra e de conversa nas tardes mais quentes. Uma construção do lado esquerdo, que parece uma espécie de grande coreto, é a Casa de Convívio, o local das festas da aldeia. Perto da Isabel House, na Eira Júlio Antão, há uma capelinha branca dedicada a Santa Eufémia. À direita, um dos vários fontanários da aldeia, que tal como a capela tem ar de renovado há pouco tempo, e à esquerda o lavadouro público, que uma placa diz ter sido recuperado em 1997. À parte a necessidade de pintura nalguns sítios, permanece em bom estado, e a água correu quando abri uma das torneiras. Localizada entre encostas e não sendo ponto de passagem para qualquer outro lugar, a Póvoa é mais uma dessas aldeias serranas praticamente invisíveis, disfarçadas na paisagem, que só quem lá vai de propósito fica a conhecer.
Conheçam mais um pouco desta região:
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* A iniciativa #EuFicoEmPortugal é uma acção concertada entre 48 dos bloggers que pertencem à ABVP-Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, e que tem como objectivo divulgar o nosso país e incentivar os portugueses a saírem à descoberta das inúmeras maravilhas de Portugal, muitas delas ainda tão pouco conhecidas. Cada blogger escolheu uma região diferente, que visitou ou está ainda a visitar, com a finalidade de produzir conteúdo original sobre o destino escolhido. A parte prática deste projecto está a ser desenvolvida desde o dia 6 de Junho, com milhares de posts, fotografias e stories já publicadas e partilhadas nas redes sociais e na blogosfera – e muito mais continuará a ser partilhado. Sigam-nos através da hashtag e surpreendam-se com tudo aquilo que Portugal (ainda) tem de inédito para nos oferecer.
Esta viagem teve o apoio da Entidade Regional de Turismo do Centro de Portugal
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