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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Qui | 26.09.19

Allariz, jardins e muito mais

 

Temos por hábito antigo pensar que o intercâmbio entre Portugal e Espanha se faz essencialmente de lá para cá e não o inverso, mas isso não corresponde inteiramente à realidade. E vem isto a propósito de quê? Pois do Festival Internacional de Xardíns de Allariz, que visitei há poucos dias e é assumidamente inspirado no também internacional mas português Festival de Jardins de Ponte de Lima. Já alguma vez ouviram falar de Allariz? Sabem que fica a apenas 65 km da nossa fronteira? Não? Pois é, até há algum tempo eu também não sabia, mas como festivais de jardins é coisa que não abunda muito por estes lados, este foi um excelente pretexto para mais um fim-de-semana por terras galegas.

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A Allariz cheguei já pela tarde adiante, e tendo feito o trabalho de casa em condições (obrigada, Google Maps) não tive qualquer problema em arranjar sítio para arrumar o carro – no Campo da Barreira, em frente ao grande e facilmente identificável Convento de Santa Clara (ainda habitado por freiras), há um amplo estacionamento público gratuito, em terra batida mas com algumas árvores. Uma centena de passos mais e estava no hotel, onde só me demorei o suficiente para tratar das formalidades e deixar o saco. De novo na rua, lá fui eu em busca do objectivo primeiro da viagem, um espaço aberto junto ao rio Arnoia reservado para os jardins do Festival.

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Allariz é vila e sede de município na província galega de Ourense. Com vestígios de ocupação pré-histórica, tem origens declaradamente conhecidas no séc. VI mas foi só em 1154 que o rei Alfonso VII lhe concedeu foral real, e a partir daí passou e ser lugar de escala e repouso para os membros da realeza de Castela e Leão, sendo mesmo chamada de “chave do Reino da Galiza”. Desta importância resulta um extenso património arquitectónico cujo núcleo principal se manteve conservado até aos nossos dias, declarado em 1971 Conjunto Histórico Artístico pelo Ministério da Cultura espanhol e tão bem restaurado que recebeu em 1994 o Prémio Europeu para o Património Cultural Europa Nostra.

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Foi precisamente pelo coração do casco histórico que desci até chegar à beira-rio. Primeira constatação: a vila é extremamente animada. Muita gente nas ruas, nas esplanadas, nos bancos dos jardins, na relva do parque – um verdadeiro ambiente de festa, não sei se por ser sábado ou por estar sol, ou porque os espanhóis são mesmo assim, gostam de passear e conversar ao ar livre. Depois, a surpresa: Allariz é muito mais bonita do que eu estava à espera. A zona junto ao rio, que nesta altura leva pouca água e está tão tranquilo que parece um espelho negro, está lindamente recuperada e arranjada mas mantém ao mesmo tempo vastas zonas de arvoredo, e o resultado desta mistura cria um ambiente agradabilíssimo e com um carácter singular.

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Há duas pontes – uma de pedra, por onde passa a estrada, e uma outra pedonal em madeira, dentro da zona do parque. Qualquer delas serve para chegar à entrada para o recinto do Festival, devidamente delimitado numa área de 40 mil metros quadrados que se estende paralela ao rio. O preço do bilhete é quase irrisório – 2 euros – e durante boa parte do Verão o horário de abertura estende-se até às 9 da noite.

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9 Allariz - rio Arnoia.JPG11 Allariz Festival de Jardins - Entrada.jpg

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O mote do Festival deste ano é “Xardíns de Cine”, e nos 10 jardins a concurso nesta exposição a imaginação dos participantes deu azo às mais variadas interpretações do tema, umas mais minimalistas, outras mais óbvias, umas mais bem conseguidas e outras nem tanto, mas todas interessantes.

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Gostei particularmente de dois dos jardins: um com o título “Sê o herói do teu próprio filme”, projectado por três estudantes de arquitectura paisagista da Universidade BOKU em Viena e no qual evoluímos por um caminho que nos leva do nascimento à morte com referência a quatro filmes que representam outras tantas fases da vida (infância, juventude, idade adulta e velhice); o outro, a que deram o nome de “Música no jardim dos Arpel”, uma recriação do jardim da casa racionalista que é uma das protagonistas do aclamadíssimo filme de Jacques Tati “Mon Oncle” em que a estrela neste caso é a música inspirada no filme e tocada pela Hulot Band, autora do projecto em conjunto com o paisagista Charo Piñango (que assumiram em grupo o divertido nome de “Locos por Tati”).

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17 Allariz - Festival dos Jardins.JPG18 Allariz - Festival dos Jardins.JPG19 Allariz - Festival dos Jardins.jpg

Dos 12 jardins expostos, há 2 que são extra-concurso. O jardim com o número 8 é por tradição criado pelos alunos da Escola Secundária de Allariz e este ano mostra bem o que é possível fazer com materiais vulgares e muita imaginação. Inspiraram-se no filme “Lingua das Bolboretas”, rodado há 20 anos por José Luis Cuerda (com base numa história de Manuel Rivas) precisamente em Allariz e que tem um professor como protagonista, para prestarem homenagem aos professores e professoras que desde há muitos anos instruem, educam e dão asas às crianças da região.

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O outro é o jardim vencedor da edição do ano passado, um projecto da autoria de uma equipa formada por três arquitectas paisagistas portuguesas (MCR – Mónica Mota, Cláudia Vilar e Renata Ferreira) que foram colegas de Universidade e finalistas do Festival de Jardins de Ponte de Lima em 2013. O tema do ano passado era “O Erotismo no Jardim”, e as nossas conterrâneas trabalharam sobre o mito do fruto proibido de Adão e Eva – porque o que é proibido é sempre o mais desejado. Dentro na enorme “maçã” que é o motivo mais chamativo deste jardim encontramos um “quarto” muito minimalista em que a cama e um sofá são enormes canteiros de plantas.

22 Allariz - Festival dos Jardins.JPG23 Allariz - Festival dos Jardins.jpg24 Allariz - Festival dos Jardins.JPG25 Allariz - Festival dos Jardins.JPG26 Allariz - Festival dos Jardins.JPG

No local onde o curso do Arnoia (que em Allariz toma o nome de Arnado) forma um cotovelo apertado, entre o rio e o caminho que acompanha o rio há um enorme parque com árvores e relva, e aqui as margens são unidas pela ponte românica de Vilanova, em tempos a principal via de acesso à localidade mas da qual não se sabe ao certo se foi construída no séc. XII ou XIV. Menos dúvidas existem quanto à origem da igreja com o mesmo nome que lhe é contígua, datada de 1180 e que pertenceu à Ordem de São João de Jerusalém ou de Malta.

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Igrejas não faltam em Allariz. Igrejas e missas, porque quis o acaso que em quase todas houvesse ofício religioso quando por lá passei, ou tivesse terminado há pouco e as pessoas estivessem a sair – grupos de idosos na sua maioria, mas sempre conversando, conversando… A loquacidade espanhola continua viva e de boa saúde, e mesmo a abundância de telemóveis entre os mais jovens não parece afectar as suas capacidades em comunicarem de viva voz (e bem alto, a maior parte das vezes). À igreja românica de Vilanova juntam-se as também românicas de Santiago, situada na Praza Maior, de Santo Estevo e de San Pedro, e a barroca de San Bieito, todas em pedra granítica e todas restauradas, pese embora algumas tenham perdido em tempos várias das suas características de origem. Ainda assim, são todas bem diferentes umas das outras e cada uma tem os seus motivos de interesse.

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32 Allariz - Igreja de Santiago.JPG33 Allariz - Igreja de Santiago.JPG34 Allariz - Igreja de Santiago.JPG

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35 Allariz - Igreja de San Pedro.JPG37 Allariz - Igreja de San Bieito.jpg38 Allariz - Igreja de San Bieito.JPG39 Allariz - Igreja de San Bieito.JPG

Em tempos longínquos houve aqui um castelo, situado no alto do promontório de pedra a que chamam Penedo da Vela. Desaparecido totalmente em meados do séc. XIX, o local é o melhor miradouro sobre Allariz. A subida até lá não é difícil, e é absolutamente recompensada pela vista de quase volta completa que conseguimos ter sobre a vila.

40 Allariz - Vista do castelo.JPG41 Allariz - Vista do castelo.JPG

Logo abaixo, o bairro do Socastelo (“sob o castelo”) foi a partir do séc. XIII uma judiaria. Nalgumas casas destas ruelas estreitas e sinuosas ainda existem as características duas portas no piso térreo (uma grande para o comércio, e uma mais pequena por onde se acedia ao espaço privado da casa) e as típicas varandas fechadas. À presença judaica em Allariz está associada a Festa do Boi, que tem início no sábado anterior ao dia de Corpo Santo e se prolonga até ao fim-de-semana seguinte. Conta a lenda que todos os anos, durante a procissão do Corpus Christi, os judeus de Allariz achavam por bem provocar os cristãos que passavam, apupando-os e chamando-lhes nomes. Aborrecidos com tanto abuso decidiram os cristãos arranjar maneira de parar com aquela afronta e no ano de 1317, liderados pelo fidalgo Xan de Arzúa, que ia montado num boi, lançaram sacos de formigas sobre os judeus que se aproximavam da procissão, ao mesmo tempo que tentavam afastá-los com lanças, e aos mais renitentes largavam-lhes um boi atado a uma corda. Verdade ou não, a “moda” pegou e a tradição perdura até hoje. Durante as festas, de manhã e à tarde, celebra-se a corrida do boi pelas ruas da vila. Duas ou três pessoas levam nas mãos a corda que está atada aos cornos do boi escolhido para a ocasião (que vai variando de corrida para corrida), enquanto outras velam pela segurança do animal e dos “corredores” de fogem à frente do bicho. É também organizada uma Procissão Medieval, que termina em grande festa, além de outros eventos para todos os gostos. Perto da igreja de San Pedro, uma escultura modernista da autoria de Arturo Andrade celebra aquela que é a festa tradicional mais antiga da vila.

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43 Allariz - Socastelo.JPG44 Allariz - Socastelo.JPG45 Allariz - Escultura Festa do Boi.jpg

Mas nem só de jardins e festas vive a animação de Allariz. A vila é também conhecida como um óptimo lugar para compras, sobretudo devido às suas várias lojas outlet de marcas espanholas de vestuário bastante conceituadas, entre outras dedicadas a artigos diversos. Concentradas no centro histórico, sobretudo na Rúa Portelo e na Rúa Fonteiriña, estão abertas durante todo o fim-de-semana (só encerram às segundas-feiras) e têm um horário bastante alargado. Talvez também por este motivo, um dos museus que podemos (e aconselho vivamente) visitar é o Museu da Moda. Há vários outros museus – o Museo do Xoguete (brinquedo), o Museo do Coiro, o Museo de Arte Sacra de Santa Clara, a Casa-Museo Vicente Risco e o Muíño do Burato – mas este despertou-me particularmente a curiosidade por não ser uma temática habitual e por estar ligado àquela que foi, em tempos e durante vários anos, a minha área de formação e profissional. Não estando à espera de nada em especial, o espaço surpreendeu-me imenso e de forma muito positiva. Situado num edifício senhorial do séc. XIV, a casa dos Castro Oxea, este museu alia a vertente moda à etnográfica e recria, no primeiro piso, cenas da actividade local ligada à área do têxtil nos séculos passados: lojas de vestuário e de tecidos, um sapateiro, uma oficina de tecelagem, cenas de rua e até mesmo uma cozinha tradicional – tudo com enorme pormenor e realismo. O piso superior é dedicado a temas mais actuais, com a réplica de um atelier de costura, informações sobre tecidos, vídeos e painéis alusivos à indústria da moda na Galiza, um espaço infantil, uma sala dedicada à história do vestuário desde o séc. XVIII até à actualidade, contada em fotografias e com manequins trajados a rigor, e mais uma variedade de pequenos apontamentos imaginativos que dinamizam a exposição. Note-se que todo este espaço é interactivo e tem inclusivamente uma divertida passerelle onde podemos desfilar sob flashes e ao som de palmas, com projecção em directo num ecrã. Definitivamente, é um bom exemplo de como é possível criar um museu agradável, distractivo e muito interessante sem necessidade de recursos astronómicos.

46 Allariz rua O Portelo - outlet.jpg47 Allariz - outlet.jpg

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49 Allariz - Museu da Moda.JPG50 Allariz - Museu da Moda.JPG51 Allariz - Museu da Moda.JPG52 Allariz - Museu da Moda.jpg53 Allariz - Museu da Moda.jpg54 Allariz - Museu da Moda.JPG55 Allariz - Museu da Moda.JPG56 Allariz - Museu da Moda.JPG57 Allariz - Museu da Moda.JPG

Como nota final, saibam que a Área de Allariz faz parte da Rede Mundial de Reservas da Biosfera da UNESCO. Esta região possui vários tipos de paisagem e habitats, dando origem a uma grande diversidade de fauna e flora, além de existir uma utilização sustentável dos recursos e uma permanência de valores culturais com práticas tradicionais que favorecem a preservação do ambiente. A somar ao Parque Etnográfico (onde se incluem o Museo do Coiro e o Muíño do Burato), fora da vila existem junto ao curso do Arnoia várias áreas de lazer e passeio – como por exemplo a praia fluvial de Acearrica e o Centro de Educação Ambiental do Rexo – que são excelentes pretextos para belos passeios e para conhecer melhor aquele que é um dos rios mais bonitos da Galiza.

58 Allariz - Parque etnográfico.JPG59 Allariz - Casa de Insectos.jpg60 Allariz - Casa de Insectos.JPG

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Onde fiquei:

Hotel O Portelo Rural (http://www.hoteloportelorural.com/) Rúa do Portelo, 20 ALLARIZ - Ourense

Apesar de haver bastante oferta hoteleira na zona, este hotel é o único que fica situado mesmo no centro histórico de Allariz e recomendo-o vivamente. Rústico e confortável, tem todas as comodidades essenciais para uma boa estadia. O atendimento é muito simpático e familiar, e o pequeno-almoço tem quantidade e variedade suficiente para todos os gostos. A relação qualidade-preço é excelente, e apesar de ficar numa rua pedonal tem estacionamento muito próximo, o que o torna ideal para quem chega de carro. Foi também mais uma boa surpresa de Allariz.

62 Allariz Hotel O Portelo Rural.jpg63 Allariz Hotel O Portelo Rural - quarto.jpg

 

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