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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Qui | 09.04.20

Aldeias com histórias: Babe

 

Há milhares de aldeias em Portugal. Algumas são conhecidas por toda a gente, quanto mais não seja de nome ou em fotografia. Muitas são visitadas durante praticamente o ano inteiro, divulgadas pela comunicação social, filmadas para documentários ou em directos televisivos, e até recebem a visita de altos dignatários do nosso país – o que, como é óbvio, em nada as desmerece. E no entanto, para cada uma destas há centenas de outras de que nunca se ouve falar, entre elas muitas que têm património antiquíssimo para conhecer, tradições que perduram desde há séculos, histórias que merecem ser contadas. É uma destas aldeias que hoje vos convido a visitar.

Babe (7)

Babe é uma aldeia transmontana a uns escassos 14 km para leste de Bragança. Sede de uma freguesia com apenas 25 km2 e pouco mais de 200 habitantes (a que também pertence a aldeia de Laviados), chamam-lhe “varanda da cidade”: à cota de 800 metros acima do mar, é um acesso ao planalto da Lombada e oferece-nos vistas panorâmicas sobre Bragança e a serra de Montesinho.

Babe - vista geral (1)

Em dias normais, o ambiente é tranquilo, até mesmo modorrento. No largo principal apenas está estacionado um carro. No grande bebedouro de granito, de aspecto muito antigo – provavelmente bem mais antigo do que a data de 1894 que está gravada numa pedra, a julgar pelo brasão dito seiscentista cravado no muro de pedra – não se vêem animais a matar a sede, e o diminuto parque infantil que fica ali mesmo ao lado está deserto. Não creio que haja em Babe muitas crianças. Em passeio pela aldeia, apenas vimos algumas idosas sentadas à porta de casa, sem dúvida a aproveitarem o calor breve do sol do meio-dia, brilhante num céu sem nuvens – que será decerto coisa rara nos Invernos da região. Mais adiante, três homens afadigavam-se à volta de uma maquineta agrícola. Passou um tractor, uma ou outra carrinha, uma moto-quatro. Consta que o pessoal da aldeia é adepto deste meio de transporte, vá-se lá saber por que mistério…

Babe - largo - fonte de mergulho

Babe - largo - bebdouro

Mas não foi sempre assim. Na verdade, o povoamento de Babe vem de época tão remota que nem se consegue definir. O castro da Sapeira, a sudoeste da aldeia, atesta a ocupação pré-histórica do local, e sabe-se que por ali passava uma via romana que ligava Bracara (Braga) a Asturica (Astorga), de que hoje resta um marco miliário. A freguesia de “Sancti Petri de Babi” é referida num documento com data de 1258 incluído nas “Inquirições” ordenadas por D. Afonso III, e supõe-se que a igreja primitiva já existisse pelo menos desde o século X. Mas foi no século XIV que ali ocorreu o momento mais marcante da longa história da aldeia: a assinatura do Tratado de Babe.

Babe - Igreja de São Pedro (4)

João de Gaunt, filho do rei Eduardo III de Inglaterra e Duque de Lencastre, foi casado em segundas núpcias com Constança de Castela, filha do defunto rei D. Pedro I de Leão e Castela, assassinado pelo seu irmão Henrique de Trastámara em 1369. Apesar de ser um dos homens mais ricos e influentes do seu país, o poder que João de Gaunt detinha não lhe parecia suficiente e por isso um belo dia decidiu avançar como pretendente à coroa castelhana, chegando mesmo a afirmar-se Rei de Castela. Aproveitando as pretensões do Duque e no seguimento do Tratado de Windsor (o tratado de apoio mútuo assinado entre Portugal e a Inglaterra em 1386, que ratificava a Aliança Anglo-Portuguesa de 1373 e dura até hoje, sendo por isso a aliança diplomática mais antiga do mundo ainda em vigor), o recém-entronado D. João I de Portugal propôs-se ajudá-lo a causar divisões nas forças militares de Leão e Castela. O encontro entre estes dois aliados deu-se em Ponte de Mouro (localidade entre Monção e Melgaço) em Novembro de 1386, quando estabeleceram um acordo que incluía, entre outras condições, o casamento de D. João com Filipa, uma das filhas do Duque. A boda acabou por se realizar em Fevereiro de 1387 no Porto, mas as tropas portuguesas só se juntaram às inglesas em Março, quando um impaciente João de Gaunt já tinha decidido encaminhar-se para Castela. Foi em Babe que instalaram os acampamentos, e foi aqui que D. João I de Portugal e o sogro assinaram, a 26 de Março de 1387, o Tratado em que o Duque de Lencastre abdicava de quaisquer direitos que pudesse eventualmente vir a ter sobre a coroa portuguesa. Foi também nesta altura, como reza a placa colocada na Igreja de São Pedro de Babe, que D. Filipa se despediu dos seus pais para assumir em pleno o papel de uma das rainhas portuguesas mais influentes da nossa História.

Babe - Igreja de São Pedro (3)

Visivelmente, a Igreja de São Pedro continua a ser o monumento mais importante da aldeia. Os primeiros registos de actos religiosos que chegaram aos nossos dias datam de inícios do século XVII, pelo que se supõe que o edifício actual tenha sido construído por essa altura, em substituição da antiga igreja. Nota-se que foi alvo de obras relativamente recentes: os muros que a cercam são de pedra de xisto aparada e têm cantarias de granito, a escadaria está em bom estado, com os espaços laterais cuidadosamente arranjados com relva e oliveiras, e o portão de ferro que guarda a entrada para o recinto tem ar de novo. A fachada da igreja é feita com blocos de granito e tem alguns elementos barrocos, embora simples, mas o corpo do edifício propriamente dito está rebocado, pintado de branco e coberto por telha. Este tipo de igrejas, em que a fachada inclui os sinos e aparenta ser um elemento independente, apenas com a espessura da sua pedra e “colado” ao resto da igreja, não é muito comum no nosso país e só aparece com alguma frequência nestas terras do norte – lembro-me de que quando visitei Babe pela primeira vez, há já bastantes anos, foi precisamente esta originalidade que me fez retê-la na memória.

Babe - Igreja de São Pedro (1)Babe - Igreja de São Pedro (2)

Se o exterior é simples, o interior é tudo menos isso. Ali reina o barroco. Os altares estão primorosamente restaurados e o dourado domina sobre fundos brancos ou com padrões. O altar principal é encantador, com as suas cores e motivos harmoniosamente conjugados e um tecto de madeira onde estão pintadas figuras quase naif, as imagens dos santos principais bem integradas no conjunto. O resto do interior da igreja é mais discreto: paredes brancas, pias em pedra já desgastada pelo passar dos séculos, elementos estruturais em granito, chão e texto de madeira castanha envernizada, algumas outras imagens de santos esculpidas de forma menos rebuscada (e provavelmente mais antigas).

Babe - Igreja de São Pedro - interior (1)Babe - Igreja de São Pedro - interior (5)Babe - Igreja de São Pedro - interior (4)Babe - Igreja de São Pedro - interior (3)Babe - Igreja de São Pedro - interior (2)

Babe - Igreja de São Pedro - interior (8)

Babe - Igreja de São Pedro - interior (7)Babe - Igreja de São Pedro - interior (6)

A São Pedro de Babe esteve também associada uma importante Comenda da Ordem de Cristo – tão importante que foi dividida em duas, como o prova uma ordem real de D. Sebastião em documento do ano de 1561 (a outra Comenda daqui resultante foi para Nossa Senhora de Gimonde, aldeia que hoje é bem mais conhecida do que Babe). Um dos detentores mais conhecidos da Comenda de São Pedro de Babe foi António Cavide, monteiro do rei D. João IV. Mas o mais famoso de todos estes Comendadores foi certamente Domingos de Morais Madureira Pimentel, Fidalgo da Casa Real e Familiar do Santo Ofício, entre outros títulos, e proprietário em finais do século XVII da emblemática Casa do Arco em Bragança – foi, aliás, este fidalgo quem mandou construir o arco que caracteriza este edifício, ao fazer a ligação entre duas casas de que era proprietário.

Babe - Igreja de São Pedro - Torre sineira

Subi os vetustos e altos degraus que conduzem à torre sineira da igreja. Lá do alto avista-se quase toda a aldeia, uma amálgama de telhados em vários estados de conservação, reflexo das casas a que pertencem. Nota-se bem que a pedra foi substituída pelo reboco pintado de branco na maioria delas. Mas há também algumas com tijolo à vista, ou revestidas de cimento nu. As de pedra são poucas e dividem-se entre o xisto e o granito. No que toca à arquitectura, Babe é um pot-pourri de tendências: uma varanda com protecção de vidro aqui, umas portas modernaças em metal acolá, um beiral suportado por estacas de madeira numa casa meio arruinada mais à frente, janelas de madeira com tinta a descascar ao lado de outras com caixilharia de alumínio, escadas e alpendres, casas simples ou com vários volumes – entre a decrepitude e o kitsch de ideias nitidamente importadas de outros países, há de tudo um pouco por aqui.

Babe - vista geral (2)

Babe - vista geral (3)

Babe (4)

Babe (5)

Babe (3)

Babe (6)

Babe (2)

Babe (8)

Descendo a Rua da Igreja, cruzamo-nos com uma idosa vestida de negro da cabeça aos pés, lenço incluído, como hoje em dia já se vêem poucas. O cumprimento é obrigatório, e acabamos por ficar à conversa com ela durante um bocado. Fala-nos com orgulho da sua igreja e evoca o Doutor Belarmino, pároco da aldeia durante cerca de 20 anos, a quem tece os maiores elogios, para no final nos contar de lágrimas nos olhos que perdeu o filho num acidente. E ainda assim, notam-se nesta senhora uma força e um enorme prazer em conversar com duas estranhas que lhe passam à porta. Nestas terras ignoradas do nosso país, apesar de já serem na sua maioria facilmente acessíveis, qualquer pessoa de fora é uma novidade que quebra a rotina dos dias.

 

Nas minhas pesquisas posteriores vim a saber que o dito pároco, falecido em 2005 e que tantas saudades deixou em Babe, foi Belarmino Afonso, sacerdote e professor que dedicou a sua vida à cultura e às comunidades da região nordestina. Formado em História, entre outros cargos foi director do Arquivo Distrital de Bragança e provedor da Santa Casa da Misericórdia desta mesma cidade, desenvolveu trabalhos e escreveu obras nas áreas da antropologia e da etnografia, e foi por tudo isto condecorado em 2002 pelo Presidente da República com a Grã Ordem do Infante.

 

Foi precisamente pela mão do Doutor Belarmino Afonso que nasceu o Museu Etnográfico Rural de Babe. Num simples edifício branco, que acumula as funções de centro de dia, estão expostos vários artefactos usados em tempos idos pela população, recuperados por iniciativa daquele pároco e agora testemunhos de vivências passadas e costumes já quase desaparecidos: candeias e candeeiros a petróleo, engenhos agrícolas arcaicos, dobadouras, bem como utensílios usados pelos ferreiros da aldeia, que em tempos foram famosos. De facto, as facas produzidas por estes ferreiros de Babe eram reconhecidas em toda a região transmontana pela sua grande qualidade, tal como atestado pelo Abade de Baçal numa das suas obras.

Babe - Museu Etnográfico Rural

A religião tem, como é óbvio, um papel importante na vida dos habitantes de Babe. Além da igreja, existem na aldeia duas capelas: a de São Sebastião, que fica à entrada, e a de São José, que data de finais do século XVII e é mais singela, toda em pedra. Ambas estão restauradas. Há ainda uma Tulha das Almas, um edifício curioso não pelo seu aspecto, pois é um simples casinhoto de pedra, apenas identificado por uma mó e algo que parece ser parte de uma pequena roda de azenha, mas pela sua função: servir de armazém para as oferendas de cereal para “as almas”.

Babe - Capela de São José

Babe - Tulha das Almas

O pão é um dos alimentos mais importantes das gentes transmontanas, tal como em todas as outras regiões do nosso país, e por isso muitas das festas tradicionais que perduram até hoje, algumas oriundas de ritos pagãos, estão ligadas ao seu culto. Agregadas às celebrações religiosas da igreja católica, são sempre ocasiões importantes na vida das aldeias, e Babe não é excepção. É na época natalícia, entre a véspera da consoada e o dia de Reis, que aqui se celebra a Festa dos Rapazes, uma das mais importantes e animadas do ano, tanto que muitos emigrantes vêm nesta época à sua terra propositadamente para participarem. São protagonistas os rapazes maiores de 12 anos, cumprindo vários rituais que vão permitir-lhes o acesso ao mundo dos adultos. Há desfiles com gaiteiros e bombos, praxes que envolvem ovos e farinha, actuações de grupos musicais, e comida e bebida com fartura.

 

Para melhorar as condições destas celebrações comunitárias, em 2016 o espaço da antiga escola primária (já desactivada) foi reabilitado e convertido em centro de convívio e pavilhão multiusos, e é desde então um dos palcos principais das festividades que se realizam ao longo do ano. Ainda assim, há quem ache que as festas têm vindo a perder o encanto. Numa longa conversa com outra das habitantes da aldeia, muito mais jovem do que a anterior, ficámos a saber que muitas tradições já desapareceram, algumas delas bem interessantes. Havia a arrematação das roscas, com os pães preparados pelas mulheres e raparigas da aldeia a serem depois compostos em ramos com frutas e guloseimas para serem leiloados, os lucros da venda revertendo para a igreja. Outra festa comunitária tradicional era a lenha das almas de Todos os Santos, em que os jovens iam, com carros de bois ou tractores, “roubar” ou apanhar lenha, que depois era vendida no largo da aldeia. Ficavam assim algumas casas já aprovisionadas de lenha para uma parte do Inverno, e o dinheiro conseguido era destinado às missas rezadas ao longo do ano pelas almas dos defuntos. A festa continuava então, como não podia deixar de ser, com uma ceia partilhada por toda a gente.

 

Também a Páscoa é altura de celebração e festas em Babe, com muitos dos filhos da terra que estão emigrados a regressarem à aldeia para se reunirem aos seus familiares e amigos. Numa aldeia cada vez menos povoada, estas ocasiões são importantes para lhe insuflar mais vida e quebrar a rotina dos que a habitam em permanência. Este ano, infelizmente para todos, os que lá vivem e os que costumam ir de visita e este ano não podem fazê-lo, a Páscoa apenas poderá ser celebrada no recolhimento de cada lar. Babe, aldeia desconhecida do Portugal profundo que ainda existe, vai ficar nesta época ainda mais esquecida e isolada.

Babe (1)

 

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