O Chiado todos os dias
Pessoas, muitas pessoas. Pessoas de todas as idades e tipos físicos, estrangeiros, imigrantes, portugueses. Sozinhas ou em grupo, apressadas ou deambulando com calma. O rio que se avista lá ao fundo, correndo azul para o oceano, tem o seu contraponto no rio de gente que flui pela Rua Garrett num movimento incessante. São as pessoas que dão alma ao Chiado.
O bairro mais emblemático de Lisboa é um melting pot onde vivem e trabalham milhares de pessoas, além das muitas mais que todos os dias por aqui passam a caminho de algum outro lugar, ou que aqui vêm expressamente para fazer compras ou passear. Mas o que é que atrai tantas pessoas ao Chiado?
“É um bairro agradável com muita variedade de comércio e muitas facilidades de acesso”. Esta é a opinião partilhada por Maria Herundina e Paula, ambas empregadas de escritório, que aqui trabalham há já mais de vinte anos. A primeira afirma mesmo que até gostaria de viver aqui, mas “as casas são demasiado caras”. Estamos sentadas no interior fresco do Chá do Carmo, um dos lugares mais aprazíveis do Chiado para usufruir de um almoço leve mas com qualidade, ou de um lanche reconfortante no fim de um dia de trabalho. O ambiente é clássico e tranquilo, ideal para comer e conversar com calma. Lá fora, as esplanadas do Largo do Carmo enchem-se de pessoas em busca de uns momentos de descontracção à sombra dos jacarandás que ainda conservam algumas das suas flores roxas e perfumadas, apesar do vento que teima em soprar. Um jovem flautista com ar desalinhado toca melodias conhecidas, tentando angariar algumas moedas, e no piso de calçada portuguesa um pombo marcha sob o olhar indiferente do guarda de espada em punho à entrada do Quartel. Um quadro imobilizado no tempo? O ruído dos carros que passam incessantemente e os laptops utilizados por alguns dos frequentadores das esplanadas destroem sem escrúpulos esta impressão. “O Chiado tornou-se menos tradicional”, como diz Francelina, que completa aquela tríade de colegas.
De facto, para um bairro que durante tanto tempo teve a fama de elitista e bate recordes no preço dos imóveis por metro quadrado, a quantidade de jovens que se vêem nas ruas é surpreendente. A isto não será estranho o facto do Chiado se situar paredes-meias com o Bairro Alto, onde actualmente coabitam o very typical para turista ver e o trendy para um público jovem com gostos alternativos. Mas há também algum mérito próprio: as lojas mais antigas têm vindo a ser progressivamente substituídas por outras vocacionadas para uma clientela cuja faixa etária é mais baixa e para quem a qualidade não é tão importante como a visibilidade.
Esta mutação resulta em parte de um dos momentos negros inscritos na história do Chiado: o incêndio que destruiu uma área importante do bairro em 1988. Fiona é inglesa e veio trabalhar para aqui um ano depois da catástrofe. Na memória tem ainda presente a desolação que sentiu ao ver destruídos edifícios tão antigos. E interrogou-se: “como é que vão conseguir recuperar tudo isto?”. O Chiado estava então bastante diferente do que é hoje. Os turistas continuavam a visitar o bairro mas havia muito menos movimento, sobretudo à noite, quando ficava praticamente deserto. A recuperação tardou em fazer-se sentir, mas a verdade é que chegou e com pleno sucesso. O projecto de reconstrução elaborado por Siza Vieira manteve as fachadas originais dos edifícios, o que provou ser uma decisão acertada. O nosso arquitecto mais famoso, que curiosamente é portuense, vai para sempre ficar ligado a este bairro lisboeta na memória colectiva e no Páteo que tem o seu nome.
Os ícones que ainda subsistem são usufruídos com afecto pelos frequentadores do Chiado. A esplanada d’A Brasileira está sempre cheia e no largo em frente as pessoas sentam-se no muro de mármore do metropolitano ou aos pés da estátua do poeta cuja alcunha deu nome ao bairro (ou terá sido o inverso?). Lêem o jornal ou um livro, ou simplesmente observam alguns malabaristas que mostram a sua arte. Pela porta com alpendre metálico Arte Nova da loja Paris em Lisboa entra e sai uma clientela maioritariamente feminina e com algum poder de compra. O cheiro a papel da Livraria Bertrand chama os amantes da leitura, enquanto o cheiro a café da Casa Pereira atrai os gulosos. Mantendo a fachada e os interiores do início do século, a Gardénia ainda agrada às vítimas da moda – antes chapéus, agora roupa e calçado das últimas tendências. Os velhos e ruidosos eléctricos da Carris continuam a ter adeptos indefectíveis e pavoneiam o seu amarelo característico pelas ruas sinuosas do bairro.
Quando a tarde chega ao fim e se acendem as luzes, o Chiado acalma. A maré humana que invadiu o bairro durante o dia recua e o movimento abranda, mas não morre. É a altura ideal para os que gostam de passear sem atropelos, os que gostam de petiscar ou jantar sem olhar para o relógio, ou aqueles para quem estas ruas são a antecâmara de uma noite mais agitada no Bairro Alto. Encerrados os escritórios e as lojas, os noctívagos tomam conta do bairro, vampiros modernos que lhe insuflam energia, em vez de a sugarem. Alguém me disse que o Chiado é um bairro com coração. Eu concordo plenamente, mas acrescento: e o coração do Chiado são as pessoas.
Fotos de A. Afonso
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