Diário de uma viagem à Costa Rica III
Dia 3
Levantámo-nos mais uma vez de madrugada, o que acabou por ser uma constante durante praticamente todos os dias destas férias. Às cinco e meia da manhã já estávamos a tomar café no alpendre em frente ao rio, onde conhecemos o Alex, que nos iria guiar numa visita de bote pelos canais da reserva de Tortuguero. Já era dia claro e o calor começava a fazer-se sentir. Menos de uma hora depois encontrávamo-nos no rio, sete pessoas num bote azul claro que parecia muito pequeno para a grande dimensão da Laguna de Tortuguero.
Depois de uma paragem para comprar os acessos ao parque (que servem para o dia inteiro) na bilheteira, que imita um barco e é acessível tanto pelo lado da aldeia como pelo lado da água, a aventura começou. O bote era impulsionado com pagaias e por isso fomos atravessando o canal devagar até à outra margem. A primeira coisa que o Alex nos mostrou foram os ninhos das oropêndulas, suspensos de árvores altíssimas e com um formato peculiar. Depois vimos um grupo de macacos-uivadores, tão disfarçados no meio dos ramos que não teríamos reparado neles se o guia não nos tivesse chamado a atenção. Entrámos a seguir num canal mais estreito, e a vegetação era de tal modo cerrada que mais uma vez me senti como se estivéssemos na selva. Tudo estava calmo e só se ouvia o barulho dos remos na água e os sons das aves. A Costa Rica tem centenas de espécies de aves diferentes, e os sons que elas emitem acompanham-nos por todo o lado, alguns deles bem estranhos. Vimos anhingas, garças-tigrinas e garças azuis. Curiosamente, as garças azuis são brancas enquanto ainda jovens. As garças-trigrinas ficam quietas nos ramos, tentando secar-se ao sol, e de vez em quando esticam o seu longo pescoço. E vimos borboletas de várias cores, entre elas as Morphos, que são muito grandes e de um azul cintilante absolutamente espectacular. Todo este ambiente era absolutamente novo para nós e a câmara não parava de disparar, numa tentativa vã de captar todos os pormenores para nada ser esquecido.
Mais à frente, no tronco de uma árvore, imóvel como se de uma folha se tratasse, um basilisco verde. Também lhes chamam lagartos de Jesus Cristo, e têm a particularidade de correrem sobre a água. Segundo o Alex, fazem-no pouco frequentemente e só para se exibirem. Este deu-lhe razão, pois não se mexeu de onde estava, nem mesmo com uma série de pessoas a olharem para ele e a levar com flashes das máquinas fotográficas.
O guia explicou-nos que tinha chovido nos últimos dias e por isso o nível das águas estava bastante alto, entrando pela floresta adentro, pelo que muitos dos animais preferiam manter-se mais para o interior, fora da nossa vista. Como que a contrariá-lo, pouco depois uma sombra deslizou pela superfície da água, mais à frente do nosso lado esquerdo. Era nada mais nada menos do que um caimão, de um tamanho razoável mas do qual pouco estava visível a não ser o topo da cabeça e do focinho e os olhos. De início deixou-se estar imóvel, talvez tentando passar despercebido, mas depois cansou-se da atenção que lhe dispensávamos e desapareceu debaixo da densa vegetação aquática.
Cinco minutos mais tarde parámos o barco na margem e descemos. Inesperadamente, o Alex começou a esgravatar com cuidado por baixo das inúmeras folhas mortas que cobrem o chão da floresta. E perante o nosso espanto e excitação apareceu uma rãzinha minúscula vermelha e azul. Com o nome “técnico” de dendrobates pumilio, é mais conhecida por rã blue jeans (as patas traseiras têm realmente a cor da ganga) e é venenosa. Melhor dizendo, como ele nos explicou, tóxica. Na verdade, estas rãs têm o corpo coberto com uma substância que, se em contacto com o nosso organismo (por exemplo, se lhe tocamos e levamos depois as mãos à boca sem as termos lavado primeiro) provoca um mal-estar tremendo, febre, problemas intestinais, enfim, nada de agradável, embora estritamente essa substância não seja mortal.
Avançámos um pouco mais pela floresta, por um trilho que mal se via, com muito cuidado porque aquele é um território de serpentes, algumas delas extremamente venenosas e mortais. Uma delas, de que não fixei o nome, confunde-se com os galhos das árvores e morde se por acaso sem querer lhe tocamos, e o guia contou-nos que um amigo tinha morrido uns anos antes vítima da mordedura dessa serpente. Poucos metros mais à frente alguns de nós começaram a executar uma dança estranha, com saltos e muitos “ais”. Logo a seguir percebi porquê, quando senti picadas nos pés e os vi cheios de umas formigas pequenas e escuras que me mordiam ferozmente. Conseguimos desembaraçar-nos delas (não tão rapidamente quanto quereríamos) mas as marcas das mordidelas ficaram como recordação, primeiro provocando comichões horríveis e depois sob a forma de crostas minúsculas que só desapareceram já bem depois do nosso regresso a Lisboa. Aliás, as picadelas de insectos foram o denominador comum de toda a viagem, apesar das carradas de repelente que gastámos e das pulseiras que usámos religiosamente em quase todo o lado, por vezes até mesmo enquanto dormíamos. Mas nada surtiu muito efeito, parece que os bichinhos adoram picar carne estrangeira, pelo menos na opinião dos “ticos”, e não houve repelente que nos valesse.
Pelas nove e um quarto da manhã estávamos de regresso à Casa Marbella, onde nos esperava um pequeno-almoço reconfortante com panquecas, torradas e fruta. Apesar do céu cinzento, estava já bastante calor, e soube bem relaxar na tranquilidade do alpendre da Casa, os olhos postos no canal, uma imensidão de água cinzenta em movimento limitada por árvores até onde a vista podia alcançar. À direita, distante apenas alguns quilómetros, o Cerro Tortuguero. Com os seus 119 m de altura e coberto de vegetação intensa, é o ponto costeiro mais alto a norte de Limón (a principal cidade da costa atlântica). Também se encontra integrado no Parque Nacional e tinham-nos dito que apesar da pouca elevação, a vista era merecedora, pelo que na altura pensávamos em fazer um passeio até lá. Fomos depois informados que uma parte do trilho do Cerro tinha ruído devido às chuvas, pelo que por questões de segurança não estavam a permitir visitas ao local.
Com o estômago devidamente reconfortado, decidimos aproveitar o bilhete válido para o dia inteiro e ir visitar o Parque, mas desta vez a pé. Já nos tinham avisado que os trilhos estavam muito enlameados e que não poderíamos entrar sem galochas, por isso fizemos a nossa escolha entre os muitos pares que a Casa Marbella disponibiliza para os seus hóspedes. Devidamente apetrechados, atravessámos a aldeia até à entrada do Parque, onde um jovem e simpático funcionário nos explicou as normas de segurança e deu algumas informações sobre o percurso. O único trilho autorizado, a que dão o nome de Sendero Gavilán, percorre-se em cerca de hora e meia e uma parte do seu percurso passa pela praia. Eram quase onze da manhã quando iniciámos o passeio e não se via ninguém. Apenas se ouviam os sons habituais da floresta e cheirava a terra molhada e a húmus. Lagartos centro-americanos de todos os tamanhos faziam estalar as folhas secas quando fugiam rapidamente à nossa aproximação. O sol tinha decidido aparecer mas só conseguia penetrar por entre as altas copas das árvores aqui e ali, o que era manifestamente insuficiente para conseguir secar o trilho, que estava realmente muito enlameado nalguns locais. Valeram-nos as galochas.
Fomos avançando por entre árvores que nunca tínhamos visto, algumas com raízes enormes e troncos com formas estranhas. O verde quase uniforme era quebrado pelas cores vivas das flores, helicónias, rocas de vénus e dezenas de outras completamente desconhecidas, todas com cores vivas. De cabeça no ar, tentávamos descortinar os pássaros que íamos ouvindo, mas em vão. Os animais mais interessantes que vimos estavam mesmo ao nível do chão. Além dos inúmeros lagartos, também encontrámos aranhas nephila, enormes e com pelos nas patas, imóveis nas suas teias. Só já depois do regresso a Lisboa vim a saber que são venenosas.
Mas o encontro mais memorável foi mesmo com uma cobra-da-vinha. Com uma linda cor verde, estava de olhos postos num lagarto que atravessava o trilho e deslocou-se lentamente atrás dele, parando de vez em quando para a fotografia. Desconhecíamos se era perigosa, pelo que optámos sensatamente por esperar que ela seguisse o seu caminho para longe de nós.
Depois de mais uma passagem pela praia, terminámos o percurso ao fim de cerca de hora e meia, detendo-nos brevemente à entrada do Parque para vermos melhor a exposição. No passadiço junto à bilheteira, um kiskadi curioso olhava alternadamente para a água e para nós, como que a pensar se haveria de ir embora ou ficar para mais uma foto.
O cansaço e o calor já pesavam e regressámos ao quarto para um bom duche seguido de uma sesta reparadora. Depois de recuperados, saímos para um almoço tardio no Budda Café. Instalámo-nos na esplanada virada para o rio e pedimos comida italiana e sumos naturais de fruta. Na Costa Rica um sumo natural é quase o mesmo preço de uma garrafa de água, e há sumos de todos os tipos de fruta, cada um mais saboroso que o outro. A comida também estava óptima e almoçámos com calma ao som da voz de – surpresa das surpresas – Cesária Évora. É uma sensação estranha, estar a vários milhares de quilómetros de casa e de repente ouvir sons inesperadamente familiares; ouvir uma língua que é a minha tem o condão de me fazer sentir menos estrangeira. Foi um almoço muitíssimo agradável e até a chuva que caiu entretanto pareceu estranhamente adequada.
A tarde já ia avançada e aproveitámos a escassa hora e meia de luz solar de que ainda dispúnhamos para um passeio mais pormenorizado pela aldeia. Tal como no resto do país, as casas são pequenas, com paredes de madeira e telhados de chapa de zinco. Muitas estão pintadas de cores vivas, e algumas precisam urgentemente de manutenção. Aqui a maior parte das casas está assente sobre pequenos pilares de cimento, provavelmente porque as terras devem ficar alagadas durante a época das chuvas. Em certas zonas há passadiços de cimento também construídos bastantes centímetros acima do solo, decerto pela mesma razão. Existe um campo de futebol com relva mas sem vedação, onde decorria um jogo animado e totalmente amador, e um parque infantil junto a uma zona de merendas sobranceira ao canal, com bancos e muros também com cores berrantes e esculturas de animais feitas de peças de metal, pneus ou madeira pintada. Sendo uma região tão chuvosa, causa alguma estranheza ver cabos e contadores de electricidade um pouco por todo o lado, no exterior das casas ou em postes baixos e instalados de forma rudimentar, praticamente sem protecções, acessíveis até mesmo às crianças.
Embora seja um país muito pequeno (cerca de dois terços da área de Portugal), a Costa Rica tem uma diversidade cultural surpreendente. Cada região do país tem as suas próprias características, que não se resumem apenas aos aspectos geográficos. Em Tortuguero é nítida a influência das Caraíbas, não só no tom de pele mais escuro da maioria dos habitantes, mas sobretudo na estética decorativa, na gastronomia e no modo de ser das pessoas. Há uma descontracção e uma simplicidade que já se tornam estranhas para nós, animais citadinos. As portas e as janelas estão abertas durante o dia e a rua é um prolongamento da casa; a vida diária decorre dentro e fora de portas, sem que haja uma separação nítida entre os dois espaços físicos. As crianças brincam livremente por todo o lado, sem supervisão dos adultos, e sente-se que a insegurança que é hoje típica das grandes urbes ainda ali não chegou. Não há pressas, os dias existem para serem desfrutados. De facto, esta atitude em relação à vida é praticamente comum a toda a Costa Rica. As pessoas não têm muito, mas também não precisam de muito para se sentirem satisfeitas.
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