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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Sex | 03.10.25

Cultura e arte a céu aberto - parte 2

 

Arte e jardins: uma convivência feliz

 

A arte não se exprime apenas em telas, esculturas ou edifícios. Também os jardins podem ser entendidos como criações artísticas, concebidos com a mesma intenção de provocar emoção, contemplação ou surpresa. Um canteiro desenhado com rigor geométrico, um lago artificial que reflecte a luz de determinada maneira, ou a escolha de espécies que florescem em sequência ao longo das estações: tudo isto revela um gesto criativo tão intencional como o de qualquer pintor ou escultor.

Neste ponto de encontro entre a natureza e a imaginação humana surgem espaços singulares. Uns transformam vastas áreas em museus ao ar livre, onde esculturas convivem com árvores centenárias e caminhos errantes. Outros têm o próprio jardim como obra central, seja pela exuberância das cores, pela harmonia das formas ou pela maneira como nos transportam para universos culturais distintos.

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O que une todos estes lugares é a ideia de que um jardim pode não ser apenas lugar de relaxamento, brincadeira ou passeio, mas também uma experiência estética. A cada passo, há uma narrativa que se desenrola – umas vezes explícita, outras sugerida pelo ritmo das plantas, pela disposição dos espaços ou pela relação com a história do lugar.

Gosto particularmente de jardins que se afirmam como obras vivas em constante transformação. É esta vitalidade, feita da combinação entre concepção artística e natureza em mutação, que torna cada experiência única. Porque aqui não estamos apenas a contemplar arte ou a admirar paisagens, mas a caminhar dentro de criações que respiram e se renovam com a passagem do tempo.

 

Onde arte e natureza se reinventam

Brumadinho, Brasil

Entre todos os lugares que demonstram como a natureza pode ser palco para a criação artística, o Inhotim ocupa uma posição singular. Situado em Brumadinho, no estado brasileiro de Minas Gerais, é considerado o maior museu a céu aberto da América Latina e um dos mais notáveis exemplos de como arte e natureza podem conviver em equilíbrio dinâmico. Ali, não sabemos ao certo se são as obras que embelezam a paisagem ou se é a exuberância tropical que dá vida às obras. O resultado é uma experiência imersiva, uma verdadeira viagem sensorial entre galerias, trilhos, lagos e jardins botânicos.

A origem do espaço está ligada à colecção do (controverso) empresário Bernardo Paz, que começou a reunir obras de arte contemporânea a partir dos anos 80. Em 2004, decidiu criar um instituto que permitisse reunir esse acervo num lugar onde a arte dialogasse directamente com a paisagem. Aberto ao público em 2006, o Inhotim passou a acolher instalações de artistas brasileiros e internacionais em edifícios de arquitectura singular e em áreas abertas que se fundem com o entorno. O nome fora do comum deste instituto terá uma explicação curiosa: parece derivar de uma forma popular de dizer “Senhor Tim” – o local foi em tempos propriedade de um fazendeiro inglês de nome Timothy (na linguagem local, “Senhor Tim” derivou para “Inhô Tim”).

O espaço cresceu até atingir uma escala impressionante: são mais de 140 hectares visitáveis, com dezenas de galerias, esculturas monumentais e um parque botânico que reúne espécies raras de vários cantos do planeta. As plantas não são apenas pano de fundo; fazem parte da proposta curatorial. Uma alameda de palmeiras pode ser tão marcante quanto um pavilhão de arte, e uma colecção de cactos do deserto pode rivalizar com a intensidade de uma instalação.

A diversidade das obras expostas confirma a ambição do projecto. Entre as esculturas ao ar livre destaca-se a Beam Drop Inhotim, de Chris Burden: dezenas de enormes vigas de metal cravadas verticalmente no solo, lançadas de grande altura sobre cimento fresco, num gesto radical que se tornou escultura monumental e memória do impacto da gravidade e do acaso. Outras obras convidam à experiência sensorial ou lúdica. A Viewing Machine, de Olafur Eliasson, é um caleidoscópio gigante que fragmenta e multiplica o jardim à sua volta em padrões geométricos infinitos. Troca-Troca, de Jarbas Lopes, usa carros coloridos desmontáveis que podem ser combinados em novas formas, transformando a lógica utilitária do automóvel em jogo artístico. A dimensão política e histórica também encontra espaço no Inhotim. O Barco, de Grada Kilomba, é uma instalação poderosa composta por estruturas de ferro, com palavras gravadas, que evocam o porão de um navio negreiro. Caminhar entre estas peças é um confronto com a memória da escravatura, com a dor e a resistência de milhões de vidas silenciadas e apagadas.

O Inhotim distingue-se também pelas galerias dedicadas a criadores específicos. A Galeria Adriana Varejão, que integra obras da artista plástica que foi casada com Bernardo Paz, é uma das mais emblemáticas, até mesmo pela sua arquitectura. Já a Galeria Psicoativa, de Tunga, oferece um mergulho no universo enigmático do artista: esculturas e instalações que exploram alquimia, metamorfose e inconsciente, num espaço onde razão e mistério se confundem. Na galeria Cildo Meireles, gostei especialmente do Desvio para o Vermelho, um ambiente monocromático que nos envolve num universo inteiro dominado por aquela cor. O quotidiano – uma mesa, uma sala, objectos banais – transforma-se em cenário inquietante, onde o trivial esconde algo de perturbador. Entre as experiências imersivas, a galeria dedicada a Yayoi Kusama é a minha favorita, com duas obras que nos transportam para um universo de repetições e reflexos infinitos, característicos da artista japonesa. A sensação de estar dentro de um espaço que se multiplica infindavelmente é uma das mais intensas da visita ao Inhotim. E há ainda lugar para homenagens à comunidade local nos murais Abre a Porta e Rodoviária de Brumadinho, de John Ahearn & Rigoberto Torres, criações cheias de realismo e cor.

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A soma destas (e de muitas outras) experiências confirma a singularidade do Inhotim: um lugar onde arte e paisagem são inseparáveis, e onde cada obra ganha novos significados ao ser vivida num espaço aberto, tropical e vivo. Mais do que um museu, é um organismo que desafia a ideia de que a arte só pertence a paredes brancas ou corredores fechados.

Visitar o Inhotim exige tempo e entrega. Dois dias serão o mínimo necessário para os vários percursos expositivos, em trilhos que contornam lagos e jardins temáticos, com galerias e instalações escondidas entre a exuberância vegetal, descobrindo obras que surpreendem a cada volta do caminho. Não sei dizer se me marcou mais o acervo artístico, a riqueza botânica, ou a forma como tudo se conjuga. Talvez o maior mérito do Instituto seja exactamente este: mostrar que arte e natureza não são esferas separadas, mas domínios que, em conjunto, podem reinventar a forma como olhamos o mundo.

 

A arte em diálogo com a natureza

Porto, Portugal

Longe da escala monumental do Inhotim, o ponto forte de Serralves está no equilíbrio entre várias dimensões: a arquitectura, o jardim histórico e a arte contemporânea. É um dos meus sítios preferidos no Porto. Reúne três pólos que se complementam: o Museu de Arte Contemporânea, a Casa de Serralves e o Parque. Nenhum destes espaços se entende isoladamente, pois é na articulação entre eles que reside o impacto do lugar.

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O parque, com mais de 18 hectares, foi concebido entre as décadas de 30 e 40 do século passado sob a orientação do arquitecto francês Jacques Gréber. Inspirado em modelos de jardins clássicos europeus, combina áreas formais – com avenidas, escadarias e lagos geométricos – com zonas mais orgânicas, bosques e clareiras. Caminhar no parque é absorver diferentes linguagens paisagísticas, desde o rigor geométrico ao romantismo naturalista, numa diversidade que nunca soa forçada. A vegetação é cuidadosamente pensada: magnólias, camélias, cedros e espécies raras convivem em cenários que mudam consoante os humores de cada estação do ano.

Mas Serralves não é apenas jardim. É também palco de um dos museus mais activos de Portugal no domínio da arte contemporânea. O edifício, assinado por Álvaro Siza Vieira, é um exemplo de como a arquitectura pode ser discreta e ao mesmo tempo marcante. As linhas sóbrias e a integração na paisagem criam uma continuidade natural: do interior para o exterior, das salas brancas para o verde que se vê pelas janelas, nunca perdemos a noção de que estamos imersos num espaço mais extenso.

É precisamente nesta convivência entre museu e parque que Serralves se distingue. As exposições não se limitam às galerias; transbordam para o ar livre, ocupando clareiras, prados ou estruturas do jardim. Aqui, a arte contemporânea, tantas vezes associada a ambientes urbanos ou industriais, respira de outra maneira. Vários artistas de renome internacional têm em Serralves marcas permanentes, mas as surpresas fazem parte do percurso. Nunca sabemos exactamente o que vamos encontrar, e é esta incerteza que torna cada visita única. No campo da inovação, o projecto “Serralves em luz” está entre as experiências artísticas mais memoráveis que já tive a felicidade de visitar.

Para além da arte e da paisagem, Serralves tem também uma vertente patrimonial e arquitectónica importante. A Casa de Serralves, construída entre 1925 e 1944, é um dos exemplos mais notáveis de Art Déco em Portugal. O edifício, com as suas linhas elegantes, interiores sofisticados e ligação directa ao jardim, acrescenta uma dimensão histórica que enriquece a experiência. Não é apenas cenário: é parte do diálogo que o espaço estabelece entre passado e presente, tradição e contemporaneidade.

Há alguns anos, o parque ganhou uma nova atracção, na linha de outros jardins estrangeiros famosos: a Treetop Walk, um passadiço elevado que permite caminhar entre as copas das árvores. Para além da perspectiva inusitada sobre o parque, esta estrutura simboliza bem a filosofia de Serralves: olhar de outro ângulo, experimentar uma ligação à natureza de forma diferente.

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Há algo em Serralves que sempre me faz pensar sobre a noção de escala. A grandiosidade aqui não está no tamanho absoluto, mas na subtileza com que elementos distintos se entrelaçam. Um jardim que é também museu, um museu que é também parque, uma casa histórica que é também espaço de arte. Nada funciona solitariamente, e é essa teia de relações que dá sentido ao conjunto. Fica na memória o modo como tudo se conjuga num ambiente coerente, em que cultura e paisagem não são mundos de costas voltadas, mas antes partes de um mesmo organismo. Vivo.

 

Arte, Oriente e tropicalidade: um trio equilibrado

Funchal, Portugal

O Monte Palace, situado na encosta sobre o Funchal, é um dos lugares que melhor demostra que um espaço a céu aberto pode ser concebido como obra de arte total. Uma antiga quinta, transformada em hotel de luxo no início do século XX, é hoje uma área de 70 mil metros quadrados onde a vegetação tropical, a arte e a memória histórica vivem em harmonia. A casa principal, pintada em tons pastel que contrastam com as madeiras e os ferros forjados escuros, continua a ser um dos ícones visuais do conjunto. Da sua esplanada-miradouro desfruta-se de uma das vistas mais belas sobre a baía do Funchal, recorte azul entre o verde tropical da montanha.

O percurso pelos jardins é feito de espantos sucessivos. Caminhos em declive revelam clareiras, lagos, painéis de azulejos e esculturas escondidas entre a vegetação. Esta dimensão cenográfica é intencional: tudo parece estar pensado para surpreender. Durante o passeio encontramos obras decorativas de várias origens, esculturas contemporâneas e instalações artísticas que foram sendo acrescentadas ao longo dos anos, tornando os jardins num espaço activo de coexistência da natureza com a cultura.

Entre os elementos que mais marcam a identidade do Monte Palace estão as colecções de azulejos, que relatam episódios históricos de diferentes épocas, desde narrativas religiosas até representações da expansão marítima. O mais impressionante é o conjunto “Aventura dos Portugueses no Japão”, formado por mais de uma centena de azulejos que narram, em sequência, o encontro entre duas culturas distantes. Mais do que simples decoração, estes painéis são uma forma de inscrever a história na paisagem, mostrando que um jardim também pode ser um repositório de memórias.

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Os Jardins Orientais merecem um destaque especial. Com pagodes, portais vermelhos, esculturas de inspiração asiática e lagos que reflectem pontes de madeira, criam uma atmosfera distinta dentro do complexo. A conjugação de bambus, fetos arbóreos e lanternas de pedra com a arquitectura vermelha dos pavilhões compõe uma paisagem que parece transportar-nos para outro continente. É uma das áreas mais fotogénicas do Monte Palace (e a minha preferida) e também das que mais puxam à contemplação: a simetria dos elementos e o contraste das cores têm um efeito quase hipnótico. Já para não falar dos lagos povoados por carpas koi de várias cores, que oferecem entretenimento garantido.

No coração do jardim encontra-se o lago central, alimentado por uma muito “instagramável” cascata em modo cortina de água. Habitado por cisnes nórdicos, alvíssimos, funciona como espelho para a vegetação envolvente e para as esculturas posicionadas estrategicamente à sua volta. Toda a concepção estética do local e o jogo entre reflexo, movimento e som da água transformam esta área num dos pontos mais atractivos da visita.

O museu, edifício colorido engenhosamente integrado no declive do terreno, é um espaço de contraste: no interior, a cor e o brilho de uma notável exposição de minerais de todo o mundo e das obras de arte contemporânea ali expostas; no exterior, o verde omnipresente e a diversidade botânica. Uma opulenta colecção de esculturas africanas deu origem à criação do Jardim de Escultura Contemporânea do Zimbabué, onde convivem com a vegetação tropical que evoca o continente mais próximo da ilha da Madeira. No Monte Palace, a arte prefere não estar encarcerada entre paredes.

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Mais do que um aglomerado de jardins exóticos, mais do que um espaço para mostrar ao público obras de arte coleccionadas, o Monte Palace é um exercício de harmonização e equilíbrio, de comunhão entre a criatividade dos mundos humano e natural, criado para saciar os nossos sentidos. Um objectivo conseguido com sucesso.

 

Um museu como complemento

Marraquexe, Marrocos

Nos anos 30 do século passado, o pintor francês Jacques Majorelle deixou-se seduzir pelo exotismo de Marraquexe e decidiu construir, na periferia da cidade, um refúgio que fosse simultaneamente casa, atelier e jardim. Durante décadas, coleccionou plantas raras, sobretudo espécies tropicais e cactos, criando um espaço que, pela diversidade botânica e pela cenografia pensada em cada recanto, se tornou indissociável não só da casa que rodeia, como da própria obra do artista. No lugar que permanece com o seu nome, o elemento mais marcante é cromático: o célebre “azul Majorelle”, tom profundo e luminoso que o pintor adoptou como marca própria e que passou a revestir muros, fontes e estruturas arquitectónicas do jardim, transformando-o numa tela habitável.

Após a morte do pintor, o espaço entrou num período de abandono até ser resgatado, nos anos 80, por Yves Saint Laurent e Pierre Bergé, que reconheceram o valor único do conjunto. Foi sob o seu patrocínio que o Jardim Majorelle se revitalizou, mantendo a herança do seu criador, mas acrescentando uma nova camada de significado: abriu-se ao público, e tornou-se ícone cultural e museu.

Passear pelo jardim é atravessar um percurso de contrastes calculados. Sob os nossos pés, os caminhos de cor ocre que remetem para a tradição marroquina; à volta, o choque vibrante entre o azul, o amarelo intenso e o branco que marcam portas, vasos e elementos decorativos. Entre estes planos de cor erguem-se mais de trezentas espécies de plantas, vindas de cinco continentes: palmeiras imponentes, bambus ondulantes, buganvílias, lótus, nenúfares. Uma diversidade vegetal não caótica, antes coreografada para criar um equilíbrio subtil entre sombra e luz, densidade e abertura. O jardim desdobra-se numa sucessão de quadros vivos: a vegetação enquadra a cor dos caminhos e das paredes, o reflexo da água intensifica o contraste dos elementos arquitectónicos.

A presença da água é essencial na experiência do lugar. Fontes geométricas, tanques ornamentais e o lago maior, coberto de nenúfares, introduzem movimento e som, ao mesmo tempo que reforçam a sensação de frescura. São pontos de pausa bem-vinda, onde simplesmente apetece existir.

Do jardim passamos com naturalidade para o Museu Pierre Bergé, instalado no antigo atelier de Majorelle: um espaço intimista que reúne peças de joalharia, trajes, tecidos e objectos do quotidiano que sublinham a riqueza da herança amazigh no território marroquino. A inclusão deste museu acrescenta profundidade ao complexo – para além da experiência estética e sensorial, mergulhamos no património cultural da região, reforçando o conceito de que a arte não vive apenas da cor ou da forma, mas também da identidade.

 

O local ganhou ainda maior notoriedade após a morte de Yves Saint Laurent, cujas cinzas foram depositadas no jardim, perpetuando a ligação íntima entre o estilista e o lugar que elegeu para o acolher. Esta dimensão memorial confere-lhe uma aura particular, entretanto complementada pela abertura, paredes-meias com a Villa Majorelle, de um museu dedicado ao costureiro.

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O Jardim Majorelle é um lugar onde a simbiose quase orgânica entre arte, moda e paisagem resulta numa forte identidade visual e numa atmosfera única. Visitá-lo é como entrar num universo onde a cor se torna emoção, e onde a vegetação não é apenas ornamento, mas sim matéria plástica ao serviço da visão artística partilhada pelos seus criadores.

 

Arte com flores

Lisse, Países Baixos

Situado em plena região dos campos de tulipas, o parque Keukenhof nasceu em meados do século XX com um propósito claro: mostrar ao mundo a excelência da floricultura holandesa. O nome remete para o século XV, quando as terras eram usadas para a horta da cozinha (“keuken”) do castelo da condessa Jacoba van Beieren. O passado agrícola cedeu entretanto lugar a um projecto que viria a assumir proporções monumentais: um jardim concebido como vitrina artística da produção floral, e também como cenário de sonho para os mais de um milhão de visitantes que o procuram todos os anos, durante as escassas oito semanas de Primavera em que o Keukenhof permanece aberto.

O que distingue este parque não é apenas a quantidade impressionante de flores plantadas – mais de sete milhões de bolbos a cada temporada – mas sobretudo a forma como estas são organizadas. Paisagistas e jardineiros concebem todos os anos novos desenhos, inspirados em temas que mudam a cada edição, criando tapetes cromáticos de enorme impacto visual. Cada canteiro é pensado como se fosse uma pincelada, e o resultado são cenários exuberantes de cores mutáveis, que se transformam de semana para semana entre Março e Maio. É esta dimensão efémera que confere ao Keukenhof um fascínio especial: quando o visitamos sabemos que aquilo que os nossos olhos vêem existe apenas naquele momento, e desaparecerá em breve para dar lugar a algo diferente no ano seguinte.

As tulipas, claro, são as protagonistas absolutas, celebradas em toda a sua variedade de formas e cores. Mas o Keukenhof não se limita a esta flor que é um dos símbolos da Holanda. Jacintos, narcisos, lírios e orquídeas complementam o espectáculo, ampliando a diversidade e acrescentando fragrâncias ao deleite visual. Percorremos alamedas arborizadas que se abrem sobre grandes manchas coloridas, cruzamos pontes e descobrimos recessos mais intimistas, onde a escala se reduz para permitir uma contemplação mais pausada. O desenho do parque procura esse equilíbrio entre grandiosidade e detalhe, garantindo que, para lá da imponência, exista também proximidade.

Os elementos arquitectónicos reforçam esta dualidade. Há esculturas que emprestam um toque de nobreza a certos ambientes, mas é nos pavilhões modernos que o parque mostra maior ousadia. Abrigam exposições temporárias, recantos temáticos e mostras dedicadas a espécies específicas. São espaços que ligam o jardim à tradição floral holandesa, mas também à ideia do jardim como trabalho artístico – onde a mão humana organiza a natureza segundo linhas de composição e experimentação estética.

Visitar Keukenhof é, por tudo isto, uma experiência de contemplação e de aprendizagem, com muita felicidade à mistura. Não é sem razão que há imensas crianças entre os visitantes. Enquanto passeamos entre lagos, esculturas contemporâneas e cenários quase teatrais, descobrimos o rigor técnico por trás de cada flor, de cada combinação cromática ou de espécies botânicas. O jardim é, simultaneamente, espectáculo e laboratório, vitrina comercial e obra de arte temporária.

Em Keukenhof, a natureza também é moldada pela visão criativa humana, mas o foco não está na integração da arte plástica com a paisagem e sim na própria concepção do jardim como obra artística. A paleta não é de tintas, mas de flores; o material de trabalho não é metal, pedra ou linho, mas sim terra e água. É esta singularidade que faz dele não apenas o maior jardim de flores do mundo, mas também uma das mais expressivas demonstrações de como o design paisagístico pode elevar-se à categoria de arte.

 

Cultura sem paredes

Depois de percorrer estes lugares, é inevitável reconhecer que a cultura não se esgota em museus fechados nem em salas de exposição. Tanto nos espaços etnográficos como nos jardins artísticos, a experiência ganha outra intensidade quando se vive ao ar livre, em contacto directo com a paisagem, com o clima, com os sons e até com os cheiros. É este cruzamento entre arte e natureza que lhes confere uma vitalidade singular: não são só locais para contemplar, mas também palcos para memórias, tradições e visões criativas contemporâneas.

No fundo, estes espaços convidam a uma forma de visita mais atenta e mais sensitiva. Não se trata apenas de ver, mas de estar, de caminhar, de deixar que a envolvência acrescente camadas de significado ao que ali se mostra. E talvez seja isso que os torna tão inesquecíveis: ao sair de cada um deles, trouxe comigo não só imagens de beleza, mas sobretudo a sensação de ter experimentado, ainda que só por umas horas, uma forma mais rica e sensorial de estar em contacto com a cultura.

 

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(Este artigo foi publicado pela primeira vez no blogue Delito de Opinião)

 

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