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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Qua | 23.04.25

Córdoba florida

 

Há cidades que se mostram de imediato, escancaradas, cheias de urgência para impressionar. E há outras, como Córdoba, que exigem vagar e um certo abandono. Aqui, é preciso desacelerar. Percorrer com calma as ruas que se desdobram umas atrás das outras, um origami de paredes alvas realçadas com faixas de cores quentes, ferros forjados sorumbáticos e milhares de flores que se derramam das varandas e janelas.

Já lá estive uma mão cheia de vezes, mas só durante a última visita é que percebi que Córdoba não é apenas uma cidade. É uma ideia de beleza interior, de harmonia resguardada. Para a conhecer há que olhar para lá do postal ilustrado. E nunca essa essência se revela tanto como durante o Festival dos Pátios*, quando, por uns dias em Maio, os moradores abrem ao mundo os pátios das suas casas e nos deixam espreitar os seus segredos.

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Visitar Córdoba nesta altura é vê-la no seu melhor – sem a dormência do calor de Verão que nos derrete a vontade, e com o ambiente de festa que atravessa toda a cidade e nos contagia. É pura alegria!

 

O Festival dos Pátios: portas que se abrem

Durante quase todo o ano, os pátios de Córdoba vivem recatados, protegidos por muros altos, portas de madeira e portões de ferro forjado. São espaços privados, onde a vida se faz longe do olhar alheio. Mas chega Maio e a cidade transforma-se. As ruas estreitas enchem-se de gente, há som de passos até mesmo no empedrado das vielas mais tranquilas, o burburinho de vozes mistura-se com risos, e as portas, antes cerradas, abrem-se como estrelas do meio-dia. Começa o Festival dos Pátios de Córdoba, uma das celebrações mais singulares de Espanha – e também uma das mais autênticas.

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A origem deste festival remonta aos anos 20 do século passado. Inspirado pela antiga tradição romana e mourisca de construção de casas em torno de pátios interiores, o município cordovês decidiu incentivar os habitantes a partilhar a sua criatividade floral com a cidade. O que começou como uma curiosidade local tornou-se, décadas depois, património vivo: em 2012, o festival foi reconhecido pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Mas este festival não é apenas um concurso de decoração. É uma mostra de identidade, de resistência ao tempo, de sentido comunitário. Durante cerca de duas semanas, mais de cinquenta pátios abrem-se ao público, espalhados por vários bairros, de que os mais emblemáticos são San Basilio, Santa Marina, Alcázar Viejo e Judería. Cada pátio tem a sua alma, a sua história e, habitualmente, o seu “porteiro” – um morador que, orgulhoso, recebe os visitantes, responde a perguntas, conta como rega as plantas todos os dias, fala do cuidado quase religioso com cada vaso. Nos pátios mais populares, durante o festival há também voluntários que regulam o fluxo de visitantes. A área reduzida de alguns deles não permite a visita simultânea de mais do que uma dúzia de pessoas, sob pena de o lugar se tornar intransitável de tão apinhado.

Pequenos ou grandes, todos eles são uma experiência intensa para o olhar: gerânios, jasmins, hortênsias, buganvílias, malmequeres, damas-da-noite, alecrins e petúnias em profusão, suspensos em paredes brancas, alinhados em escadarias, rodeando fontes, cobrindo pérgulas, disputando espaço ao céu azul. À volta, em grandes vasos ou canteiros, há cactos e palmeiras, limoeiros e ficus, fetos, crótones e roseiras, numa abundância de cores e texturas que o cérebro tem dificuldade em registar. Como música de fundo, o som de água a correr – quase todos os pátios têm uma pequena fonte ou tanque, herança do urbanismo islâmico, e por vezes também um poço. Sente-se no ar uma mistura subtil de perfumes.

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Alguns pátios são simples, austeros, com uns quantos vasos geometricamente dispostos e uma sombra fresca. Outros são verdadeiras catedrais vegetais, com centenas de flores suspensas e coreografadas com rigor. O festival tem um júri, que avalia vários critérios: beleza, conservação, harmonia, originalidade. Mas nós, os visitantes, não precisamos de avaliações técnicas – é suficiente o espanto, o deslumbramento quase infantil quando transpomos cada portão aberto.

A cidade vive o festival com intensidade. Há desfiles religiosos, actuações em praças pequenas, esplanadas cheias, amigos de longa data que se reencontram, aromas a comida que se escapam pelas portas dos restaurantes. Córdoba não se mostra só aos olhos: envolve todos os sentidos.

É aqui, neste convite em forma de um abrir de portas, que se percebe algo essencial sobre a alma cordovesa: um equilíbrio entre a contenção e o acolhimento, entre o silêncio e a celebração. Porque mais do que um evento turístico, o Festival dos Pátios é uma janela aberta sobre a intimidade de uma cidade que floresce de dentro para fora.

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A caminho do bairro de San Basilio

Nesta minha última visita a Córdoba fiquei no Hotel de los Faroles, a uma curta distância a pé dos pontos mais turísticos da cidade. É um boutique hotel situado numa rua discreta do centro histórico, com poucos quartos, que combina o antigo com o moderno. Ficar aqui foi, em mais do que um sentido, começar a visita aos pátios de Córdoba sem sequer sair do quarto. O edifício esconde no seu interior um pátio coberto típico da Andaluzia, elegante e sereno, onde uma galeria com arcos rodeia um espaço de lazer e refeição. As colunas estão revestidas de tijolo-burro e azulejos, há vasos alinhados nas paredes e à volta da sala, e até um pequeníssimo tablao com duas cadeiras e decoração a preceito. A banda sonora fica a cargo da água que escorre na fonte; ouvi-la é quanto basta para esquecer o calor que faz lá fora.

O bairro de San Basilio é o coração do Festival dos Pátios, e fica a uns meros 20 minutos a pé do hotel. Mas antes dos pátios – que à tarde só abrem depois da siesta – há muito para ver. Descendo a rua do hotel chegamos à Calle Capitulares, que tem mais ar de praça do que de rua. Do lado esquerdo, encaixado entre casas de habitação e negócios, chama imediatamente a atenção o portal barroco por onde se acede à Igreja de San Pablo, um dos templos mais antigos e importantes de Córdoba (pese embora pouco conhecido), construído sobre as ruínas de uma basílica visigótica mais tarde transformada em mesquita.

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Em frente, o Ayuntamento é um edifício modernista com pormenores arquitectónicos tradicionais, construído na segunda metade do século XX. Convive lado-a-lado com as ruínas do Templo Romano – que foram descobertas precisamente durante escavações realizadas nos anos 50, quando se iniciavam as obras para as novas instalações a Câmara Municipal. As robustas colunas coríntias do Templo Romano, erguidas como sentinelas sobre as fundações da antiga Corduba, influenciam a experiência do espaço. A relação próxima entre ambos os conjuntos como que simboliza um equilíbrio de poderes entre o antigo e o moderno, o visível e o invisível, a espiritualidade de outros tempos e o poder político-administrativo de hoje. É só mais um dos imensos e felizes contrastes de Córdoba.

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A poucos minutos a pé, a Plaza de la Corredera abre-se como um teatro ao ar livre. É a única praça de planta rectangular da Andaluzia com arcadas contínuas, e a sua estética faz lembrar, em versão andaluza, as grandes praças castelhanas. Rodeada de edifícios de três andares com varandas alinhadas, paredes ocres e janelas verdes, esta praça já foi arena de touradas, mercado central e até cenário de execuções públicas. Hoje, é um dos corações pulsantes da cidade – lugar de encontro e de descanso, onde cordoveses e visitantes se misturam nas esplanadas, entre copas, tapas e o burburinho típico de fim-de-semana ou final do dia. Detive-me por ali uns instantes observando a vida a acontecer: crianças em correrias, casais a partilhar uma cerveja, velhos amigos a discutir futebol e política como se fossem a mesma coisa. Um bom lembrete de que Córdoba vive para lá dos monumentos e do estrelato turístico.

Descendo em direcção ao rio Guadalquivir, passei pela Igreja de San Francisco e San Eulogio – imponente e cirscunspecta, com um portal barroco emoldurado por colunas salomónicas e um gradeamento de ferro forjado que delimita o espaço da antiga entrada conventual, num largo tranquilo onde as palmeiras e laranjeiras acrescentam uma nota de frescura ao cenário austero.

 

Judería: contrastes e sabores antigos

A Puerta del Compás é uma das entradas simbólicas no bairro da Judería, a alma antiga de Córdoba. Aqui, o ambiente muda. Este bairro, que foi o lar da comunidade judaica de Córdoba até ao século XV, conserva ainda hoje uma atmosfera muito particular. É feito de memórias, silêncios e passagens estreitas onde a luz entra em diagonais perfeitas. Ruas de pedra, apertadas e quase totalmente pedonais, com detalhes arquitectónicos que nos transportam no tempo, colunas mudéjares, arcos em ferradura, pequenos azulejos trabalhados. Mas é também o bairro onde os contrastes são maiores, pois é o mais visitado da cidade durante todo o ano: é aqui que se encontram a Mesquita-Catedral e outros lugares icónicos.

 

A atmosfera da Judería é quase cinematográfica. Os becos sinuosos desembocam em praças cheias de vida, lojas de recordações (a inundação de souvenirs feitos na Ásia também já aqui chegou) e de artesanato, guitarras flamencas penduradas nas paredes e, sobretudo, uma enorme oferta de restaurantes. Esta é, aliás, a zona de Córdoba com maior densidade e variedade gastronómica: há desde tabernas tradicionais a bistrots contemporâneos, passando por restaurantes de cozinha de fusão com influências árabes e mediterrânicas. A dificuldade será escolher. Ainda assim, e só a título de exemplo entre os que já experimentei (e de que gostei), posso sugerir a histórica Ordoñez Taberna y Vinoteca ou o La Esquinita de la Judería. Muitos destes espaços de restauração possuem eles próprios pequenos pátios interiores, com trepadeiras a subir pelas colunas e uma fonte no centro – uma extensão natural da estética cordovesa.

Quase escondida nas traseiras da Judería, a Calleja de las Flores é talvez o beco mais fotografado de Córdoba – e não sem motivo. Esta estreita viela de cal branca, adornada com fileiras de vasos azuis suspensos, floridos de gerânios, cravos e buganvílias, conduz o olhar e os passos até um pequeno largo com uma fonte ao centro. Mas a verdadeira sedução revela-se quando se olha para trás: através da moldura da rua e dos vasos coloridos, ergue-se, ao fundo, a torre da Mesquita-Catedral, como que pintada num cenário de postal ilustrado. É essa vista perfeita e inesperada, onde a natureza e a arquitectura se encontram, que torna a Calleja de las Flores tão popular.

Este pequeno troço de rua é hoje um ponto obrigatório no roteiro de quem visita Córdoba. A afluência é tanta que, por vezes, as filas para entrar na ruela quase rivalizam com as dos pátios. São habituais os grupos de turistas a aguardar vez para captarem o ângulo ideal para a foto, e é uma favorita das redes sociais – o “instagramável” enquadramento da viela com a torre ao fundo já se tornou um clássico visual da cidade. E mesmo fora da época alta, a Calleja de las Flores está sempre em flor.

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Apesar da sua fama actual, a Calleja de las Flores nem sempre foi um ponto turístico de destaque. Só durante a segunda metade do século XX, com o crescimento do turismo cultural e patrimonial em Córdoba, é que a rua começou a ser deliberadamente embelezada pelos próprios moradores, que penduravam vasos nas fachadas como gesto de orgulho e cuidado pelo espaço comum. A ideia pegou e o beco acabou por se tornar um exemplo vivo da tradição dos pátios cordoveses, mas em versão pública e ao ar livre.

 

San Basilio: mundos secretos entre paredes brancas

Durante o Festival dos Pátios, o bairro de San Basilio é o epicentro das celebrações. As ruas adjacentes de San Basilio e de Martín de Roa são as mais populares. O bairro fervilha de gente e as filas para entrar em cada pátio são extensas, por vezes quase se misturando. Ainda assim, não há confusão nem alarido. Todos esperam calmamente a sua vez, ninguém se empurra, ninguém tenta passar à frente. As visitas são rápidas, não porque os pátios não mereçam a demora, mas sobretudo porque há respeito por quem está lá fora à espera. No número 44 da Calle San Basilio – um pátio já de si premiadíssimo – está alojada a Asociación Amigos de los Patios Cordobeses, que festejou o seu cinquentenário no ano passado e é uma das promotoras do evento.

Como não tenho paciência para estar muito tempo em filas de espera, escolhi primeiro a mais pequena que havia no bairro àquela hora: a do n.º 2 da Calle Duartas. Tal como na maioria dos pátios, há uma sala de entrada, uma antecâmara onde cada proprietário faz uma espécie de introdução ao seu espaço. Pode ser uma mostra de fotos com a história da família, uma exibição de prémios conquistados, uma concepção minimalista com plantas ou uma prodigalidade kitsch de objectos variados. Aqui, como no próprio pátio, a imaginação não tem limites e os moradores têm a oportunidade de mostrar o seu orgulho no património herdado e numa cultura que valoriza o espaço cultivado com vagar e com afecto.

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Apesar de ser pequeno, o pátio da Calle Duartas é um dos mais luxuriantes, com as paredes completamente ocupadas por vasos de sardinheiras, geometricamente colocados à mesma distância uns dos outros. Do plano inferior brotam trepadeiras e outras plantas, floridas ou não, e nem sequer falta um robusto limoeiro. Os recantos são compostos com peças antigas de mobiliário, às vezes reabilitadas para um uso diferente, e peças decorativas de géneros variados. Uma mistura ecléctica que se enquadra bem no ambiente.

No n.º 22 da Calle San Basilio, o verde é o tema geral, tanto nos vasos como nas plantas. Menos exuberante do que o anterior, a cor das folhagens sobrepõe-se à das flores. No piso de seixos rolados, colocados lateralmente, estão estilizados vários brasões de armas. Esparramado numa cadeira de baloiço, um xaile tradicional bordado. Um tanque de tijoleira e azulejo, um poço com corda grossa como um punho e uma bela tampa de ferro forjado. Pormenores únicos que marcam a individualidade de cada espaço.

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Mas o festival não se resume a este bairro. Há seis percursos oficiais definidos pela organização – devidamente sinalizados nos mapas e por placas e QR codes – que permitem visitar os pátios distribuídos por outros bairros históricos da cidade. Além do suporte digital, são disponibilizados guias impressos com os percursos, horários e categorias dos pátios. Tudo bem organizado e intuitivo.

 

Nos jardins do Alcázar

A proximidade geográfica entre o bairro de San Basilio e o Alcázar de los Reyes Cristianos foi não só conveniente para continuar dentro do tema desta visita a Córdoba, mas também simbólica. A intimidade dos espaços domésticos floridos que caracteriza os pátios abriu-se para uma escala mais régia e monumental, onde o traço andaluz tem uma outra expressão. Há um contraste evidente – o que é recomendável numa visita que se quer variada – mas mantém-se a essência partilhada entre a água, a sombra e a arte de cultivar beleza.

O Alcázar é um complexo defensivo onde vestígios romanos e visigodos coexistem com os de origem árabe e posteriores modificações. Este palácio fortificado foi mandado construir, sobre anteriores estruturas romanas e muçulmanas, em 1328 pelo rei Afonso XI, cuja intenção foi a de criar um edifício que remetesse para a arte gótica europeia numa cidade que tinha estado sob o domínio muçulmano durante séculos. Teve múltiplas funções ao longo do tempo: residência real, sede do Santo Ofício (durante o período sombrio da Inquisição), prisão, quartel militar e, finalmente, museu. A designação “dos Reis Cristãos” remete para a sua importância na Reconquista, quando acolheu os Reis Católicos em diversos períodos durante a campanha contra Granada. Reza a história que foi neste palácio que Cristóvão Colombo teve uma das suas audiências antes da famosa viagem de 1492.

A visita ao Alcázar faz-se em crescendo: primeiro surgem as ruínas fruto de escavações arqueológicas; depois passamos pela Sala dos Mosaicos, que expõem preciosos painéis romanos encontrados no subsolo da Plaza de la Corredera em 1959; percorremos salas austeras, de uma sobriedade que faz sobressair o contraste com a segunda metade da visita: os jardins, a que acedemos pelo Pátio Mourisco.

É nos Jardins do Alcázar que o palácio revela toda a sua alma andaluza. Divididos em terraços e patamares simétricos, são um exemplo magistral de paisagismo mudéjar, onde se entrelaçam a ordem geométrica e a exuberância vegetal. Repuxos de água abastecem compridos tanques rectangulares, ladeados por canteiros floridos e fileiras de laranjeiras. Sebes recortadas e ciprestes definem parterres com roseiras, calêndulas, gerânios, papoilas, sálvias, hibiscos, loendros e várias outras variedades de flores e arbustos, num catálogo vivo da florística andaluza que conjuga espécies ornamentais tradicionais com plantas de origem exótica.

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Os bilhetes para visitar o Alcázar podem ser comprados online ou nas bilheteiras automáticas do exterior, e têm hora marcada. A primeira metade da manhã costuma ser menos concorrida, mas a luz dourada do entardecer dá aos jardins uma atmosfera mais suave. Reservar pelo menos uma hora e meia para a visita completa (ou mais, para o caso de surgir a vontade de relaxar num banco, à sombra, absorvendo o ambiente) é uma boa decisão para desfrutar plenamente deste lugar onde a história se entrelaça com a natureza.

 

As margens do Guadalquivir

Saindo do Alcázar, os passos levam-nos inevitavelmente para o rio Guadalquivir. É nas suas margens que Córdoba se revela noutra escala e sob outra luz. As ruelas sombrias deram lugar a uma tranquilidade ampla, feita de céu aberto e horizontes largos. A cidade parece afastar-se ligeiramente, como que a pedir para ser contemplada de fora, com as suas formas a destacarem-se contra o céu.

Atravessei a Ponte Romana com os olhos postos no rio, largo e lento. O Guadalquivir é o grande eixo líquido da Andaluzia, uma presença constante que moldou paisagens, culturas e economias ao longo dos tempos. O seu nome vem do árabe al-wādi al-kabīr, que significa “o grande rio”, e faz jus ao título: tem mais de 650 quilómetros de extensão. No seu caminho entre a Serra de Cazorla (Jaén) e o Atlântico, banha algumas das cidades mais emblemáticas do sul de Espanha, como Sevilha e Úbeda. Foi uma via vital para o comércio e a comunicação desde a época romana até à era dos Descobrimentos. Com os seus arcos sólidos e simetria milenar, a Ponte Romana de Córdoba liga mais do que margens – liga muitos séculos de vida da cidade.

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Do outro lado, a Torre de la Calahorra já foi bastião defensivo da Córdoba muçulmana, mas actualmente é um museu. A vista a partir daqui é uma das mais emblemáticas de toda a Andaluzia: entre o verde carregado da Sierra Morena ao fundo e o verde glauco do rio em primeiro plano, sobressaem o branco e os ocres dos edifícios, com a maciça silhueta da Mesquita-Catedral a impor-se sobre tudo o que a rodeia.

 

Nos domínios da espiritualidade: a Mesquita-Catedral

A primeira visão da Mesquita-Catedral de Córdoba cria sempre uma impressão duradoura, mesmo para quem já a viu muitas vezes. O seu muro exterior em pedra dourada, com portões gigantescos ornamentados em estilo islâmico e uma torre sineira que substituiu o antigo minarete, anuncia a fusão de tempos e culturas que se vivem lá dentro. Originalmente construída como mesquita no século VIII pelos Omíadas, sob o domínio do Emir Abd al-Rahman I, a estrutura foi sucessivamente ampliada até se tornar uma das maiores mesquitas do mundo islâmico ocidental. Após a Reconquista pelos Reis Católicos, no século XIII, foi consagrada como igreja, e mais tarde, no século XVI, foi erguida uma catedral cristã no centro do edifício muçulmano. O resultado é uma peça única de arquitectura, onde o gótico, o renascentista e o barroco coexistem com a elegância árabe primordial.

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Visitá-la é uma experiência sensorial. Não interessa o número de vezes que já lá entrei, o efeito é sempre avassalador. Nunca deixo de ficar impressionada pela floresta de colunas do salão de oração, com os seus mais de 800 pilares em mármore, granito e jaspe. O ritmo cadenciado das colunas e dos arcos de ferradura, pintados em bandas alternadas de vermelho e branco e o jogo de sombras e luzes filtradas causam um efeito hipnótico que me emudece. Aliás, o silêncio é quase geral – as palavras têm tendência a resguardar-se quando a emoção nos invade. Mesmo não sendo crente, sente-se no ar a vibração de um lugar sagrado para várias fés durante muitos séculos. A atmosfera é de recolhimento, não por imposição, mas porque o espaço a convida.

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Ao fundo, na parede sul, destaca-se o mihrab, ricamente decorado com mosaicos dourados e inscrições cúficas, num exemplo sublime do esplendor omíada e do requinte da arte andalusina. A sua cúpula em forma de concha e os detalhes florais esculpidos parecem suspensos no ar, lembrando que ali já se rezava muito antes das abóbadas cristãs serem erguidas. Diversamente do habitual nas mesquitas islâmicas, o mihrab da Mesquita-Catedral de Córdoba não está orientado directamente para Meca – aponta mais para sul, desviando-se significativamente da direcção canónica que, no caso de Córdoba, deveria ser aproximadamente sudeste. Há várias teorias que procuram justificar esta orientação invulgar. Uma das mais aceites é a de que os construtores da mesquita seguiram a tradição das antigas mesquitas da Síria, e em especial da Mesquita dos Omíadas em Damasco, que também apresenta uma orientação semelhante, reflectindo a continuidade simbólica e religiosa da dinastia Omíada no al-Andalus. Há ainda as hipóteses das condicionantes locais (o traçado da antiga cidade romana), simbólicas (relação com o sol, por exemplo), ou de cálculos astronómicos diferentes dos actuais. Seja qual for a explicação, o facto de a Mesquita-Catedral quebrar essa regra geométrica apenas reforça o seu carácter único — não só pela justaposição de estilos e épocas, mas também pela sua forma de reinterpretar tradições religiosas e arquitectónicas.

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Quando chegamos ao centro do espaço, há novas surpresas. Rompendo o minimalismo e a uniformidade horizontal da antiga mesquita, surge a grandiosa Capilla Mayor, uma ousada inserção renascentista-barroca que mais parece um delírio teatral, com os seus retábulos dourados, esculturas e frescos. A sua enorme cúpula eleva-se acima da estrutura do telhado islâmico e permite a entrada de luz natural, vinda do alto, incidindo directamente sobre o altar e os elementos decorativos mais importantes – o que dramatiza ainda mais o contraste com a sobriedade muçulmana que rodeia a capela. Ao lado, o cadeiral de madeira entalhada, com cenas bíblicas minuciosamente esculpidas, testemunha o fervor artístico da época dos Reis Católicos.

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Esta justaposição – vista como uma intrusão por uns, e como um prodígio arquitectónico por outros – acrescenta singularidade à Mesquita-Catedral de Córdoba: mais do que um monumento, é um palimpsesto espiritual e estético, onde o diálogo entre culturas se torna visível, tangível e, sobretudo, memorável.

Fora do edifício, no Pátio de los Naranjos, onde outrora os fiéis lavavam mãos e pés antes da oração, circulamos entre fileiras de laranjeiras, plantadas desde o final do século XVIII, alinhadas com palmeiras e ciprestes. Hoje em dia é um espaço de descanso e contemplação, com sombras e o rumor da água que brota das fontes e bebedouros, uma espécie de elo entre o mundo dos pátios domésticos e o universo monumental da cidade. A história de Córdoba é tecida de água, luz e pedra.

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Os bilhetes para visitar a Mesquita-Catedral de Córdoba também têm marcação da hora de entrada e podem ser comprados online, preferencialmente com antecedência se for em época alta ou se quiserem fazer a visita nocturna guiada. O monumento está aberto todos os dias, com horários que variam ligeiramente consoante a estação do ano, mas a entrada mais tranquila costuma ser logo pela manhã ou ao final da tarde. Os espíritos madrugadores podem aproveitar a entrada gratuita entre as 8h30 e as 9h30 de segunda a sábado (excepto em dias de celebração extraordinária), mais indicada para quem procura um momento de contemplação silenciosa.

 

Outros pátios: a rota Santiago-San Pedro

A experiência do festival tem todo um outro sabor se fugirmos das zonas mais concorridas e optarmos por visitar bairros mais tranquilos. O que faltar em animação irá ser amplamente compensado não só por pátios surpreendentes, como também por um ambiente mais leve e quase familiar.

A rota Santiago-San Pedro leva-nos por um lado menos turístico, mas profundamente autêntico, do centro histórico de Córdoba. Sem pressa e sem multidões, passei uma manhã a visitar vários dos pátios desta rota, todos belíssimos, todos com o seu quê de originalidade, todos com detalhes que ficam na memória. No n.º 3 da Calle La Palma, a fonte central e o tanque de pedra tosca, reino aquático de um peixinho laranja; o bricabraque da Calle Alfonso XII, 29; as cores quentes e a escultura de pedra clara, enquadrada num fundo de verdes, do pátio do 43 da Calle Barrionuevo; a hera, os arcos e a mistura de materiais no n.º 9 da Calle Tinte; as hortênsias e os cobres do Patio Badanas 13.

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Na Plaza de las Tazas, a porta 11 dá acesso a um pátio com tamanho de jardim, cheio de recantos para descansar. Sentados a uma mesa grande o suficiente para juntar a família em almoços conviviais, o proprietário idoso conversava com um amigo. No tanque com ar de piscina, nadava uma ninhada de patos. Sentia-se a atmosfera de casa habitada, a autenticidade de um lugar que não existe para ser mostrado, mas sim para ser vivido.

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Mas foi no nº 8 da Calle Aceite que encontrei o meu pátio preferido, aquele em que me sentiria em casa. Dividido em vários espaços, encantou-me logo desde a pequena fonte na entrada, com flores multicoloridas a boiar. Chão decorado com seixos pretos e brancos, paredes de tijolo, colunas de pedra e vasos grandes de terracota cheios de fetos. Nichos de azulejos pintados com imagens religiosas; recantos com toldos e cortinados, protectores da intimidade e do calor; palmeiras, bananeiras e limoeiros; cactos, flores de muitas espécies, estatuetas, fontes de pedra e móveis de ferro forjado. E no centro, ponto fulcral de toda esta exuberância, um generoso tanque alimentado por pequenos repuxos de água, uma jóia azul-turquesa que reflectia o brilho do sol e realçava as cores dos vasos floridos dispostos à sua volta. Um pátio onde me apeteceu ficar.

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Embora o Festival dos Pátios de Córdoba decorra apenas em Maio, é possível visitar alguns destes espaços ao longo de todo o ano, incluídos no programa Patios Visitables promovido pelo município. O acesso pode ser gratuito ou mediante bilhete, com visitas autoguiadas ou acompanhadas por anfitriões locais, e os horários e disponibilidade variam consoante a época do ano. Visitar os pátios fora da época do Festival tem a vantagem de permitir uma experiência mais íntima e personalizada, com mais tempo para conversar com os moradores ou simplesmente apreciar os pormenores de cada espaço.

 

Uma cidade para voltar uma e outra vez

Córdoba é daquelas cidades que ficam. Nos cheiros, nas cores, na alternância de ritmos, na forma como nos ensina a olhar para os pormenores. Oferece-se aos poucos, seleccionando criteriosamente o que vai revelar e quando, guardando o melhor para quem sabe esperar. E a beleza dos seus pátios não está apenas nas flores — está na dedicação com que são cuidados, na generosidade com que são partilhados e na memória viva que cada recanto transporta.

Por isso, Córdoba não é um lugar para ver de passagem. É uma cidade que cria a vontade de voltar: em pessoa, com a memória ou com o desejo. Volta-se para rever o que já se conhece, quiçá a uma nova luz, para redescobrir o que já foi esquecido, para experimentar novos sabores, para coleccionar mais surpresas. Cada regresso, por mais breve que seja, revela sempre algo novo. Porque Córdoba nunca se esgota.

 

* Informações actualizadas sobre o Festival dos Pátios de Córdoba aqui e aqui.