Cotswolds, a Inglaterra genuína - parte 2
De Moreton-in-Marsh a Bourton-on-the-Water
De cada viagem que faço extraio algumas lições, e estas foram as primeiras que aprendi nas Cotswolds: as estradas inglesas não são para pedestres; o countryside da Inglaterra genuína tem muito mais carros do que é possível imaginar; e não acredites que todos os caminhos sugeridos pelo Google Maps são os mais indicados para percorrer a pé. Fica o aviso para quem ingenuamente (tal como eu!) julgar que as estradas do Reino Unido são como as nossas, com bermas ou passeios por onde um peão pode andar livremente. Não são!
Caminhar, caminhar…
Manhã radiosa de sol, pequeno-almoço tomado no Grouch Coffee – café com preocupações ambientais e bowl saudável para umas, meia de leite e fatia deliciosa de bolo para a gulosa de serviço (ou seja, eu) – saímos de Moreton-in-Marsh para o que pensámos ser uma caminhada fácil de poucos quilómetros até Stow-on-the-Wold. A animação começou a esmorecer quando percebemos, pouco depois da saída da vila, que as bermas da estrada estavam cobertas de vegetação que nos dava até aos joelhos, e murchou definitivamente quando as ditas cujas passaram a ser inexistentes e tínhamos de nos enfiar entre mato e árvores de cada vez que passava um carro ou camião – na prática, a cada 20 segundos ou menos. Quatro quilómetros depois de termos saído de Moreton-in-Marsh, chegámos à conclusão de que a nossa integridade física valia bem o esforço de uma caminhada mais longa, e decidimos seguir pelo primeiro desvio que encontrámos, em direcção a Broadwell.
Apesar de ser uma estrada secundária, e daquelas onde não conseguem passar dois carros na maior parte da sua extensão, este troço até Broadwell faz parte do Monarch’s Way (de que já falei no post anterior sobre as Cotswolds). Também com bermas quase inexistentes, teve a vantagem de ser curto e praticamente não ter trânsito, e pudemos continuar o passeio com mais tranquilidade de espírito.
Antes de chegar ao centro da aldeia, o percurso pedestre assinalado fez-nos passar pela igreja de St. Paul, onde aproveitámos para descansar das emoções matinais. Muito simples, apenas um corpo e uma torre, e construído com a pedra ocre e cinzenta da região, este templo religioso data do século XII e supõe-se que terá sido erguido sobre uma antiga igreja saxónica. À volta, projectando-se da erva verde e fofa que é um dos encantos das Cotswolds, sarcófagos, lápides e cruzes manchadas pelos líquenes e pelo tempo marcam a última morada de pessoas há muito desaparecidas. Aqui, pelo menos até ao século XIX e tal como em várias outras igrejas que visitei durante esta viagem, os mortos não eram segregados para chão que lhes fosse exclusivo. Gravados na pedra, os epitáfios carcomidos continuam a honrar a sua memória, à vista de quem passa e em saudável convivência com os vivos.
Saímos de Broadwell por mais uma estrada secundária (secundaríssima, pois raros foram os carros que vimos passar), esta já com bermas decentes e a acompanhar campos povoados por bolas de lã com quatro patas, vulgo ovelhas. Subimos durante uns dez minutos, cruzando-nos com alguns casais em sentido contrário, decerto em busca de almoço depois da caminhada matinal. Até que entrámos na parte mais bonita deste percurso: um trilho de terra batida no meio das árvores, por vezes tão frondosas que formavam um túnel por cima de nós. Com o tempo a aquecer, depois de duas horas a caminhar e tendo apenas feito uma breve paragem, a frescura e a sombra foram bem-vindas. É muito por causa de lugares como este que gosto tanto de fazer caminhadas, é nestes ambientes que me sinto verdadeiramente em liberdade, tranquila, em paz comigo mesma.
Stow-on-the-Wold
Depois do sossego da parte final do percurso, a agitação de Stow-on-the-Wold foi quase um choque. Desaguámos mesmo no coração da vila, a Market Square, na segunda quinta-feira do mês, que é precisamente o dia do Farmer’s Market, quando os pequenos produtores locais vendem ao público de tudo um pouco, desde queijo a vinhos e sidras, passando por pão e bolos, carne, fruta e legumes. Com raízes que remontam ao período saxão, a localização estratégica de Stow-on-the-Wold no cruzamento de várias rotas comerciais importantes contribuiu para o seu desenvolvimento como centro mercantil. Na Idade Média a vila tornou-se próspera graças ao comércio dos lanifícios, uma das principais indústrias das Cotswolds durante séculos. A Market Square era nessa época palco de movimentadas feiras de gado e lã – chegavam a ser vendidos 20 mil animais num único dia! Testemunho desses tempos são as “tures” que desembocam na praça: vielas tão estreitas que quase passam despercebidas e que, diz-se, serviriam para contar o gado, pois a sua largura não permitia a passagem a mais do que um animal de cada vez.
No centro da Market Square fica o edifício da Câmara Municipal, a que dão o nome de St. Edward’s Hall. À primeira vista confunde-se com uma igreja, muito por causa do pináculo, da grande janela com vitrais, vagamente gótica, e da estátua embutida na fachada. O seu ar vetusto também é enganador, pois ainda nem sequer tem 150 anos. É um belo exemplo da arquitectura vitoriana e foi concebido originalmente como biblioteca pública e espaço para exposições de artefactos da Guerra Civil Inglesa. O que remete para outro marco histórico importante da vila: a Batalha de Stow, travada em 1646 durante a 1ª Guerra Civil, considerada a última grande batalha do conflito que opôs Carlos I e os realistas, seus apoiantes, aos parlamentaristas. Carlos I defendia o direito divino dos reis, ou seja, considerava que detinha poder absoluto. A sua tentativa de governar sem convocar o Parlamento durante 11 anos criou grande descontentamento no reino, a que se somaram tensões religiosas e económicas. A guerra estalou em 1642, e a derrota em Stow-on-the-Wold simbolizou o colapso final da causa realista, levando a que o rei se entregasse mais tarde aos escoceses. Depois de nova tentativa falhada de recuperar o poder, Carlos I foi executado em 1649. A monarquia foi abolida e a Inglaterra passou a ser uma Commonwealth, com Cromwell como Lorde Protector. Só foi restaurada em 1660, após a morte deste estadista.
O dia soalheiro parecia ter atraído para fora de casa os quase dois mil habitantes da vila, acrescidos de outros tantos turistas. O corrupio de pessoas extravasava a Market Square e espalhava-se pelas ruas adjacentes quando descemos a Digbeth Street em busca daquela que se assume como a estalagem mais antiga da Grã-Bretanha, a Porch House, que é também um pub. Tem uma história interessante que remonta ao século X, pois crê-se que terá sido um hospício construído em terras pertencentes à Abadia de Evesham. Fica numa praceta simpática, onde uma árvore de porte avantajado lança sombra sobre bancos de jardim desirmanados, mas ainda assim convidativos. Não fossem as letras garrafais com o seu nome e os painéis auto-publicitários, a Porch House não chamaria a atenção entre os edifícios que a rodeiam. Só um olhar atento se apercebe de certos pormenores mais rústicos e “medievais”, da patine dada pela antiguidade e propositadamente não disfarçada – desleixo não será, mas sim estratégia de marketing. Afinal, há que fazer jus à alegação de edifício milenar…
A Inglaterra rural é fortemente religiosa, o que está bem patente no grande número de igrejas que encontramos por todo o lado, no cuidado com que estão preservadas, e nos vestígios de afluência que se notam mesmo quando fora das horas de culto. Meio camuflada por algumas árvores e pela linha cerrada de casas no flanco oeste da Market Square, a igreja de St. Edward é disso um bom exemplo. Está consagrada a Edward the Confessor, um dos santos mais venerados em terras britânicas. Rei de Inglaterra no século XI, durante o período anglo-saxónico, ficou conhecido como figura pacífica e espiritual, e pela sua devoção religiosa, humildade e generosidade. A Abadia de Westminster foi uma das suas maiores realizações, e ali foi enterrado. Canonizado em 1161, tornou-se santo padroeiro do reino (até ser substituído por São Jorge no século XV). Não é por isso de estranhar que a igreja de Stow-on-the-Wold, que remonta ao século XI (embora a maior parte do edifício actual date dos séculos XIII a XV) lhe tenha sido dedicada.
Exemplar do gótico perpendicular inglês – característico dos séculos XIV a XVI e reconhecível pela ênfase na verticalidade, na simetria e na elegância estrutural – a igreja de St. Edward foi também construída com a pedra calcária dourada típica das Cotswolds. A torre tem um aspecto quase militar, com contrafortes robustos, e o resto do edifício parece insignificante por comparação. No interior reina a simplicidade. Tecto com traves de madeira escura, paredes de um branco uniforme só quebrado pelos vitrais que ornam todas as janelas, incluindo as do clerestório. Bandeiras numa das paredes, ausência de ícones religiosos, alguns símbolos (sobretudo cruzes) aqui e ali. Pormenor curioso, que também vi depois em várias outras igrejas da região: os coxins bordados em ponto gobelim para os fiéis se ajoelharem, em cores variadas, de aspecto impecável e ordeiramente pendurados nos bancos de madeira.
O relvado circundante está igualmente salpicado de urnas tumulares e lápides. Uma delas evoca a já referida batalha de Stow, à qual a igreja de St. Edward também tem ligação: foi utilizada como prisão temporária para os soldados realistas capturados, uma vez que era o único edifício na vila que se podia fechar à chave.
O pórtico norte da igreja foi construído há cerca de 300 anos e na altura foram plantados dois jovens teixos para melhorar a sua entrada. Actualmente, estas árvores fazem parte das arquitraves da porta, criando um efeito orgânico muito peculiar. Parece saída da ilustração de um conto fantástico e diz-se que terá servido de inspiração a J. R. R. Tolkien para as “Portas de Durin”, o portão oeste de Moria que é referido n’O Senhor dos Anéis. O escritor, que viveu grande parte da sua vida em Oxford, a cerca de 50 km de distância, não precisou de viajar muito para encontrar cenários perfeitos para as suas obras.
Da igreja saímos novamente para a praça principal, onde não foi difícil escolher onde almoçar, apesar da variedade da oferta. O pico da confusão já tinha passado e conseguimos lugar no pátio ajardinado do Lucy’s Tearoom, um B&B situado paredes-meias com o jardim da igreja e que serve refeições leves até às 4 da tarde. Tal como algumas outras casas da Market Place, tem uma “bay window” (janela envidraçada saliente) ao lado da porta de entrada e duas trapeiras no telhado. O ambiente é informal mas cuidado, a comida é variada, dentro do que se espera num sítio deste género – sopas, sanduíches variadas, pizzas, ovos, e tudo o que faz parte de um lanche inglês, com opções vegan e sem glúten – e admitem cães. É mesmo a Inglaterra no seu melhor.
As Slaughters
Upper Slaughter e Lower Slaughter são duas aldeias situadas entre as vilas de Stow-on-the-Wold e Bourton-on-the-Water. Ao contrário do que a tradução parece indicar, neste caso a palavra “slaughter” não tem ligação com o significado moderno de “matança” ou “abate”. Na verdade, deriva do inglês antigo “slothre”, que significa algo como “lugar pantanoso” ou “terra húmida”, e refere-se à condição geográfica local: ambas as localidades são atravessadas pelo Eye, um rio pouco extenso, estreito e tranquilo, sedutor protagonista de belos recantos neste trecho da região.
Pés de novo ao caminho, de Stow-on-the-Wold até Lower Swell – mais uma espécie de aldeia com casas tradicionais rodeadas de jardins floridos – o percurso fez-se entre estrada com berma e caminho pedonal paralelo, protegido por árvores que nos afastam do bulício automóvel e onde até surge um banco ocasional para quem precisa de descansar. Depois, sob um sol que nos convenceu a largar agasalhos, seguimos por estradinha alcatroada, daquelas em que mal cabe um carro mas onde não passa vivalma. De ambos os lados, campos de pasto e cultivo delineados por arbustos ou muros de pedra meio cobertos por trepadeiras. E pequenos rebanhos com borreguitos barulhentos, que nos “obrigavam” a parar para os admirarmos.
Em Upper Slaughter, uma curva do rio ofereceu-nos um banco de madeira e uma abençoada oportunidade para repousar. É um daqueles bancos típicos que se encontram em inúmeros jardins ingleses – semelhantes a um que tem tido morada nas minhas varandas desde há muitos anos, e que comprei por gostar tanto deles. Como acontece com frequência em Inglaterra, tem uma placa de latão com dedicatória gravada. Uma dedicatória simples, com poucas palavras, nas quais não é difícil adivinhar uma história de amor: “Em memória de Peter e Elaine Glaister e do cão Óscar, que passaram muitas horas felizes neste banco xxx Sente-se e também irá apreciá-lo...”. Foi, de facto, uma meia hora feliz que passámos sentadas naquele banco, na tranquilidade daquele lugar. Assim como já passei vários momentos felizes no meu, que está igualmente manchado pela idade. Talvez seja uma qualidade intrínseca destes bancos, a de terem sido concebidos para dar felicidade às pessoas que neles se vão sentando ao longo dos tempos.
Uns metros mais à frente começa o Warden’s Way, o trilho pedonal que liga Upper Slaughter a Bourton-on-the-Water. Até Lower Slaughter é um quilómetro de beleza verde contínua, abrindo e fechando cancelas, ora junto ao rio Eye e em caminho sombrio, ora em prado aberto pintalgado de flores bravias e árvores tingidas de rosa.
Entrámos em Lower Slaughter por um dos cenários mais bonitos da localidade, junto ao Moinho Velho. Construído no século XIX, ainda mantém a sua roda de água original e uma enorme chaminé, que se ergue acima de todos os edifícios circundantes. Utilizado comercialmente pela última vez em 1958 agora funciona como museu, casa de chá e loja de produtos artesanais. É uma das principais atracções desta que é uma das mais famosas aldeias das Cotswolds.
Em Lower Slaughter, o rio Eye é um belo pretexto para pontes minúsculas e longas filas de casas alinhadas junto à água, todas elas de traça antiga e primorosamente conservadas. Não há ruínas nem atentados arquitectónicos, a bem da harmonia e da preservação do encanto histórico, o que faz desta região uma das mais valorizadas do interior da Inglaterra, em termos imobiliários. Numa das suas curvas, o Eye encontra-se com mais um dos ícones da localidade: a Copse Hill Road, votada já por várias vezes a estrada mais romântica de Inglaterra. Consigo perceber porquê, embora na verdade, durante esta viagem, tenha passado por outras igualmente românticas.
Rio e estrada seguem lado-a-lado durante umas dezenas de metros até divergirem, e entre os dois segue também o seu caminho o Warden’s Way. Este “public footpath” (como indicam as setas que vamos encontrar muitas vezes nos dias seguintes) leva-nos novamente por cenários arborizados, daqueles que nunca me cansam, e depois por campo aberto com direito a passagem junto a um centro equestre. Paisagens cliché, sim, mas do bom.
Fim de tarde em Bourton-on-the-Water
O Warden’s Way termina na A429, que um semáforo (bem-vindo, de tão raro…) permite atravessar sem sobressaltos para entrar em Bourton-on-the-Water. A imagem de marca desta vila – e daí o nome – é o rio Windrush, que atravessa a vila e é cruzado por cinco pequenas pontes, construídas entre 1654 e 1911 com a pedra típica da região. Em tempos idos, o Windrush era bastante mais largo e profundo, e corria para sul da aldeia. Foi canalizado em inícios do século XVI para passar pelo centro da localidade, a fim de fornecer energia hídrica a três moinhos. Hoje é local de lazer e diversão, uma espécie de praia nos dias mais quentes, recinto de brincadeira para os mais pequenos, lugar de piqueniques familiares nas margens, de passeios e de descanso.
Sendo uma das localidades mais famosas das Cotswolds, Bourton-on-the-Water não se envergonha do seu estatuto de chamariz turístico. Pelo contrário, aproveita-o para oferecer aos visitantes atracções condizentes com a sua popularidade. É o caso do Model Village, uma réplica da vila em miniatura, construída em 1937, que permite aos visitantes explorarem a vila a uma escala reduzida, estando fielmente reproduzidos os edifícios históricos e o traçado das ruas; ou do Birdland Park & Gardens, que alberga mais de 500 aves, aproveitando o rio Windrush para recriar alguns habitats naturais; ou ainda do Cotswold Motoring and Toy Museum, que propõe uma viagem nostálgica pelo passado automóvel e cultural da região, com exposições de carros clássicos, motociclos e memorabilia de outras décadas – instalado à beira do rio numa casa de traça tradicional e anunciado, de forma bem imaginativa, por um carro-topiária.
À hora a que chegámos a Bourton-on-the-Water já era tarde para aproveitarmos estas distracções, que são suficientes para ocupar um dia inteiro. O que acabou por ser uma vantagem, pois deu-nos a oportunidade de nos demorarmos no parque junto ao rio, descansando as pernas depois de tantas horas de caminhada, num dos fins de tarde mais relaxantes desta viagem. Já descrevi o cenário no início do post anterior, e não vou maçar-vos com repetições. “Aprazível” é um daqueles adjectivos que diz tudo e ao mesmo tempo não diz nada, mas não encontro nenhum melhor para definir o ambiente.
O autocarro que nos levou de regresso a Moreton-in-Marsh confirmou a pontualidade pela qual os britânicos também são famosos, saindo exactamente às 7 da tarde. Uns escassos 25 minutos foram suficientes para voltar ao sítio de onde tínhamos saído mais de nove horas antes, também com passagem por Stow-on-the-Wold. É verdade que de manhã podíamos ter trocado a caminhada pela comodidade das quatro rodas com motorista. Mas, parafraseando o chavão publicitário, não seria a mesma coisa.
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