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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Qua | 28.08.24

Puglia, Matera e Costa Amalfitana: duas semanas pelo sul de Itália

 

Este ano voltei à Itália. Andava com a pulga atrás da orelha para conhecer uma região que está agora a ser muito promovida em termos turísticos, e achei por bem visitá-la antes que fique (mais) apinhada de gente e impossível de visitar sem ser na época baixa: a Puglia (ou Apúlia, em português, mas prefiro o termo italiano para não se confundir com a nossa).

Sul Itália 01.jpegBari

Fui em Junho, e mesmo assim já havia muita gente nas zonas balneares e nas localidades mais famosas. Esteve sempre calor, com céu nublado e uma chuva ocasional e breve nos primeiros dias. Calculo que em Julho e Agosto as temperaturas sejam tórridas, por isso são meses que não aconselho – até mesmo porque a afluência turística será ainda maior, e a experiência portanto menos agradável.

Sul Itália 02.jpegPositano

A Puglia é a região que ocupa o “calcanhar” da Itália. Banhada a leste pelo Mar Adriático e a sul pelo Mar Jónico, estende-se desde Foggia e o Parque Nacional de Gargano até Taranto, e por todo o “salto da bota”. Tem zonas montanhosas que alternam com grandes planícies, e é predominantemente agrícola, com muita produção de trigo, azeite e vinho, além do sempiterno tomate. Por isso, e por ter 865 km de zona costeira, a gastronomia tradicional é puramente mediterrânica, com particular incidência no peixe, marisco e legumes. E na pasta, claro. Sou uma fã assumida da culinária italiana, e as massas são as principais responsáveis por esta minha tendência. Em Itália, mesmo o mais simples prato de pasta é sublime. O facto de estar a comê-lo lá mesmo é um factor que pesa, obviamente, mas não é o único.

Sul Itália 03.jpg"Orecchiette" de Bari

A cultura da Puglia é rica e diversa. Foi fortemente influenciada pelas civilizações que ocuparam a região ao longo dos séculos, incluindo a grega, romana, bizantina, normanda e árabe. Toda esta mistura de influências está reflectida na arquitectura, nas tradições e no dialecto local, que varia consideravelmente de zona para zona. Como de resto em toda a Itália, os pugliese têm um forte sentido de comunidade e família, e são genericamente muito religiosos. Até agora, foi a região italiana que achei ter mais pontos em comum com o nosso país, e senti-me muito “em casa” – mesmo nos aspectos menos positivos…

Sul Itália 04.jpegGravina in Puglia

 

O plano

 

Planear esta viagem não foi fácil. Olha-se para o mapa e parece que é tudo perto e que duas semanas vão chegar e sobrar, mas depois chega-se à conclusão de que há tanto para ver que não vai ser possível ir a todo o lado e é preciso fazer escolhas. Penosas, algumas delas, mas as horas de um dia não esticam. E como não gosto de andar a correr e de um modo geral prefiro sempre ficar mais do que uma noite no mesmo sítio, tive de “ignorar” muitos lugares. Ainda assim, faço sempre um programa um bocadinho mais extenso do que aquilo que provavelmente vou conseguir ver. Se der, dá; se não der, paciência, fica para a próxima. Fico com motivos para voltar, mesmo que não saiba se algum dia o farei.

Sul Itália 05.jpg

Uma das prioridades da viagem era fazer alguma praia, por isso optámos maioritariamente por alojamentos em localidades perto ao mar. Nesse aspecto, o plano acabou por sair algo furado, sobretudo porque nos primeiros dias o tempo não esteve convidativo para a praia, e noutros o vento tornou menos apetecível ficar muito tempo na areia. Mas ainda deu para apanhar bastante sol e molhar o pé (e não só) na água.

Sul Itália 06.JPGPraia Frascone

Na minha wishlist da Puglia tinha algumas localidades obrigatórias: Alberobello, Ostuni e Lecce. Visitar Matera, já numa outra região mas suficientemente perto (tão perto que há quem a inclua na Puglia, apesar de na verdade se encontrar na região da Basilicata), era outra paragem obrigatória no roteiro. Finalmente, porque era um desvio curto no caminho de regresso, decidimos dedicar um ou dois dias à Costa Amalfitana, que ainda não conhecíamos.

Sul Itália 07.JPGAlberobello

Sul Itália 08.jpegOstuni

Sul Itália 09.JPGLecce

 

Os meios de transporte

 

Por questões de orçamento (eram os voos mais baratos nas datas que queríamos), optámos por ir via Roma, pese embora Nápoles ser muito mais perto. E como o roteiro era ambicioso e não dava para estar dependente de transportes públicos, decidimos alugar carro para toda a duração da viagem. A excepção foi o dia inteiro que passámos na Costa Amalfitana, em que só andámos de autocarro e barco. Ainda fiquei indecisa entre usar os transportes ou levar o carro, mas depois de fazer a dezena de quilómetros pela estrada da costa entre Salerno e Cetara (onde ficava o alojamento) e deixar o carro estacionado num parque coberto que “só” custava 25€ por dia, tive a sensação de que seria melhor esquecer o carro e optar por outros meios para visitar Amalfi e Positano. Decisão ajuizada, como perceberão mais à frente.

 

Os alojamentos

 

Apesar de ser Junho e a minha preferência ser não marcar tudo antecipadamente, decidimos ir já com todos os alojamentos reservados. Reservar com antecedência tem a vantagem de se poder seleccionar com calma e ter mais por onde escolher. Mesmo assim, entre a data das primeiras pesquisas e aquela em que fiz as reservas, muitas das minhas escolhas prévias esgotaram, até porque desta vez queria só alojamentos locais. É a opção que tenho vindo a privilegiar nas minhas viagens de há uns anos para cá, sobretudo porque me parece ser mais sustentável de um modo geral. Quase todos tinham pequeno-almoço incluído, embora o que serviram fosse quase sempre básico – o que é algo surpreendente numa região com tão boa comida. Mas a verdade é que não é fácil encontrar pequenos-almoços tão bons como aqueles a que estou habituada nos alojamentos em Portugal.

Cetara                                                                             Matera

 

O roteiro

 

Tentei que fosse variado, misto de paisagem, cultura e praia, e incluir bastantes localidades pequenas e com motivos de interesse. A vertente cultura acabou por pesar mais, porque qualquer terrinha em Itália tem um monte de igrejas, monumentos e outros lugares históricos que merecem ser visitados. A Puglia é de facto uma região com muita diversidade, e cada lugar tem características especiais que o tornam diferente dos outros. Alguns sítios revelaram-se uma surpresa, outros ficaram um pouco abaixo das expectativas, mas valeu bem a pena visitar cada um deles.

Sul Itália 14.JPGGravina in Puglia

 

Este foi o roteiro completo:

Dia 1: Voo Lisboa-Roma; viagem de carro até Peschici (alojamento 1 noite)

Dia 2: Vieste; Monte Sant’Angelo; Trani; Torre a Mare (alojamento 3 noites)

Dia 3: Ostuni; Monopoli; Polignano a Mare

Dia 4: Bari

Dia 5: Alberobello; Locorotondo; Martina Franca; Porto Cesareo (alojamento 5 noites)

Dia 6: Praia Torre Chianca; Punta Prosciutto-Praia Lido degli Angeli

Dia 7: Lecce

Dia 8: Gallipoli; Praia del Frascone

Dia 9: Otranto; Lago Alimini (praias)

Dia 10: Taranto; Matera (alojamento 2 noites)

Dia 11: Matera

Dia 12: Gravina in Puglia; Castelmezzano; Vietri sul Mare; Cetara (alojamento 2 noites)

Dia 13: Amalfi; Positano (de autocarro e barco)

Dia 14: Sant’Agata de’ Goti; Sermoneta (alojamento 1 noite)

Dia 15: Sermoneta; voo Roma-Lisboa

 

O que mais me surpreendeu

 

Matera superou tudo aquilo de que estava à espera – que, de resto, não era nada de particularmente concreto. Já conhecia uma parte da história da cidade, que afinal era só a ponta do icebergue, pois Matera tem imenso para descobrir (como certamente já perceberam, se tiverem lido o primeiro e segundo posts que escrevi sobre a minha visita).

 

Otranto e Ostuni foram duas boas surpresas, cada uma dentro do seu género, assim como as sumptuosas igrejas barrocas de Lecce. E Bari revelou-se uma cidade multifacetada e atraente, tanto no seu centro histórico como na parte mais moderna.

Otranto

 

Ostuni

 

Lecce

 

Castelmezzano não estava no plano inicial, e é a prova de que é sempre bom deixar espaço para o imprevisto. Foi uma sugestão quase em cima da hora, quando o Rui Batista do blogue BornFreee percebeu que estávamos em Matera e me enviou uma mensagem a perguntar se estava previsto passarmos por Castelmezzano. Seguir o seu conselho foi uma das melhores decisões desta viagem.

Sul Itália 24.jpeg

 

O Santuário de San Michele em Monte Sant’Angelo tem a sua capela principal numa gruta escavada no subsolo, à qual se acede por uma escadaria medieval. Estava a decorrer uma missa na altura da nossa visita e a atmosfera era deveras especial, com a iluminação fraca e as paredes e o tecto de rocha a acentuarem o ambiente de recolhimento e oração.

 

 

O melhor da viagem

 

As várias pequenas localidades que visitámos, algumas quase completamente fora do radar turístico, como Sermoneta e Sant’Agata de’ Goti, nenhuma delas na região de Puglia e talvez por isso ambas muito tranquilas.

Sermoneta

 

Sant'Agata de' Goti

 

Mais movimentadas mas nem por isso menos encantadoras, Locorotondo, Martina Franca e Monopoli. As duas primeiras ficam no encantador Vale de Itria, onde há algumas outras vilazinhas que gostaria de ter tido tempo para conhecer. Casas brancas, ruas floridas e pormenores deliciosos por todo o lado. Quanto a Monopoli, é um porto muito antigo, com um centro histórico cheio de vida e de belos detalhes.

Locorotondo

 

Martina Franca

 

Sul Itália 34.jpeg

Vale d'Itria

 

Como é óbvio, Matera está incluída neste grupo. É uma cidade com uma energia incrível e diferente de tudo o que já vi até agora.

Sul Itália 37.jpeg

 

A comida nunca é o motor das minhas viagens, e contento-me com facilidade. Mas nesta viagem acabou por ser um motivo de satisfação, porque no sul de Itália come-se realmente bem. A cozinha tradicional é excelente e até mesmo os pratos mais simples e a comida de rua são bem confeccionados e saborosos.

                    Tiramisù                                                    Capunti com camarão e curgete

 

Porto Cesareo é uma localidade de veraneio no mar Jónico com várias boas praias nas redondezas. Foi o local onde pernoitámos mais tempo, e um dos maiores prazeres foi poder passear à noite, depois do jantar, pela marginal junto à água e no caminho pedonal ao longo da praia, encaixada numa baía. Temperatura do ar amena, as luzes a reflectirem-se no mar sem ondas, e sem confusão de gente. Um luxo que nem sempre é possível.

 

 

O assim-assim da viagem

 

Os pequenos-almoços nos alojamentos eram pouco variados e muito à base de produtos processados. Estranhamente, e com excepção de Matera, onde nos serviram o pão tradicional da região (delicioso, apesar de cascudo!), o pão era sempre “de pacote”, a fruta tinha pouca variedade, e só num dos alojamentos nos serviam ovos, além dos habituais queijo e fiambre.

 

Nas duas localidades em que não tivemos pequeno-almoço incluído no alojamento, os cafés onde comemos também estavam bastantes furos abaixo dos nossos em termos de variedade de comida e bebida.

 

A maioria das praias não são espectaculares, e algumas são mesmo uma desilusão completa. Sobretudo as da Costa Amalfitana, que são quase completamente privadas, com vedações que nem sequer deixam ver o areal. Sobram alguns metros de largura acessíveis a todos, que ficam completamente cheios de gente nas horas normais, e de lixo quando essas mesmas pessoas se vão embora. Além de que a areia tem cores entre o castanho e o cinzento, pouco convidativas – parece que está sempre enlameada.

Positano                                                             Vietri sul Mare

 

Cetara

 

Na Puglia há algumas boas praias de areia branca, pese embora as melhores também tenham grandes áreas concessionadas. Mas a maioria são pequenas praias com bastante rocha, e portanto pouco confortáveis, ou meio selvagens e de difícil acesso. A paisagem bonita de algumas delas e a temperatura morna das águas são, em parte, compensadoras.

     Gallipoli                                                              Praia Torre Chianca

 

 

O menos bom da viagem

 

O estrado das estradas, na maioria dos trajectos, conseguiu ser pior do que o das nossas. Muitos buracos e bermas inexistentes ou em mau estado; obras com corte de via e falta de sinalização alternativa, que me obrigaram a dar grandes voltas; vias rápidas com limites de 50 km/hora (sem se perceber porquê), onde como é óbvio ninguém anda a essa velocidade.

 

Como se isso não bastasse, as estradas estão cheias de condutores italianos, que conseguem ser ainda mais chicos-espertos do que os portugueses. Os condutores de veículos comerciais são os piores. Eu percebo que estão a trabalhar e querem despachar-se, e apanhar estrangeiros que não conhecem a região é sempre uma maçada. Mas também não precisavam de ser tão tresloucados nas ultrapassagens e nos cruzamentos. Tive de conduzir com mil olhos e sempre em estado de alerta, o que se torna muito cansativo.

 

A estrada da Costa Amalfitana é um pesadelo: muito estreita, sinuosa, e cheia de milhares de veículos, só as motas é que conseguem safar-se no meio do caos quase permanente. Há muitos autocarros e camionetas, que quando se cruzam em sítios com pouco espaço e pouca visibilidade criam situações complicadas – mais ainda porque por vezes há carros estacionados onde não deveriam estar. Como há muito trânsito e vai tudo em fila indiana, recuar é quase sempre impossível, e o resultado são longos minutos de ginástica condutora e encaixes milimétricos, para que o engarrafamento se resolva sem material danificado. Uma boa decisão que tomámos nesta viagem foi optar por autocarro e barco para visitar Amalfi e Positano, mais ainda porque os estacionamentos são caros, quase inexistentes, longe dos centros e, como é óbvio, estão sempre cheios. Ir de autocarro tem como bónus, além do descanso e de poder usufruir de belas vistas sobre o mar, assistir ao espectáculo que são os condutores destes veículos: eles gesticulam, eles falam alto, eles buzinam, tudo num registo descontraído, desembaraçado e competente, pois conseguem cumprir os horários com atrasos ínfimos. Quanto às ligações de barco, permitem ver o melhor da paisagem e são a única maneira de nos apercebermos da verdadeira beleza desta costa.

 

Taranto desiludiu-nos um bocado. O centro histórico, que é uma ilha, tem partes ainda muito mal preservadas, sujas, com casas abandonadas e um aspecto geral de degradação, sobretudo na metade norte. O lado sul, nas redondezas do castelo, já está mais recuperado. É uma cidade portuária grande, com uma bela localização, junto às águas do Jónico e do mar Piccolo, que é uma espécie de mar interior bipartido; mas não é particularmente atractiva.

Sul Itália 54.JPG

 

Os locais que estão sobrevalorizados

 

Alberobello, a vila tornada famosa pelos seus bairros de “trulli” (construções tradicionais seculares), é uma colmeia turística. É verdade que é atractiva e interessante do ponto de vista histórico-cultural, mas a maior parte das suas casas típicas estão hoje em dia vocacionadas para o turismo, seja como alojamento local ou lojinha onde se vende artesanato (muitas vezes não genuíno). Vale a pena a visita, mas não me deslumbrou.

 

Polignano a Mare é outra das localidades mais fotografadas da Puglia, sobretudo por causa de Lama Monachile, uma pequena praia encaixada entre falésias. Vista da ponte estrategicamente localizada sobre a ravina, a praia é encantadora, e para quem passa de barco este pedaço da costa é igualmente belo, com as casas empoleiradas sobre as rochas. Mas, tirando isso, Polignano é só mais uma localidade como tantas outras, com um centro histórico medianamente engraçado e muito turismo.

Sul Itália 57.JPG

 

A Costa Amalfitana vale a pena pela paisagem, e pouco mais. As praias são fracas, como já disse mais acima, mas as localidades têm alguma graça, sobretudo pela cor. Para quem gostar de muito movimento e confusão, é uma zona ideal. Esplanadas e restaurantes cheios, lojas porta sim, porta sim, preços hiper inflacionados, filas para os transportes, para entrar na Catedral de Amalfi, nas ruas estreitas de Positano… Enfim, gente por todos os lados.

Amalfi

 

Positano

 

 

Onde gostaria de ter ficado mais tempo

 

Matera merece vários dias de visita, para usufruir ainda mais do seu ambiente especial. Ideal seria estar lá no início de Julho, na altura das festas dedicadas à Madonna della Bruna, a santa padroeira da cidade. A cultura materana é única, e creio mesmo que vale a pena conhecê-la melhor.

 

Gostei de Pescichi, que nesta viagem foi apenas uma “escala técnica”. Toda a região de Foggia e arredores parece-me ser mais tranquila do que as localidades mais a sul, e igualmente merecedora de ser descoberta.

 

Como também já aqui disse, Castelmezzano foi uma bela surpresa. Embutida numa vertente rochosa das Dolomiti Lucane, na região da Basilicate, mais parece coisa de filme. Está incluída na lista oficial dos “Borghi Più Belli d’Italia” (aldeias mais belas de Itália), e é uma terrinha encantadora, sossegada, envolta em paisagens de montanha e com muitos recantos e caminhos para explorar.

A Itália nunca desilude!

 

 

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Ter | 20.08.24

Matera, singular e mágica - parte 2

(continuação do post anterior)

 

Os Sassi de Matera são dois, separados pela Civita, o centro histórico medieval: a norte fica o Sasso Barisano, afundado entre a orla mais elevada do planalto; e a sudeste o Sasso Caveoso, pendurado sobre o rio Gravina e de frente para o planalto Murgia Timone.

Matera 26.JPGMatera 27.jpeg

 

As casas trogloditas

 

Na encosta leste do Sasso Caveoso, a Associazione Culturale Gruppo Teatro Matera reabilitou algumas construções do Vico Solitario, entre elas uma casa-gruta aberta ao público como espaço etnográfico. Remonta ao século XVIII e é uma habitação parcialmente escavada e parcialmente construída. Visitá-la pode parecer apenas mais uma experiência inócua, mas não para mim.

 

A gruta tem uma forma simples, rectangular e com tecto abobadado. Só existe uma divisão, com um pequeno nicho contíguo para a cozinha. A ventilação faz-se apenas pela porta de entrada e por uma janela minúscula no espaço da cozinha. Tudo se concentra em poucos metros quadrados: a cama do casal, alta, para servir de lugar de arrumação por baixo, com o seu colchão cheio de lã e folhas de milho; a mesa de refeições, onde todos comiam do mesmo prato de barro; a arca dos cereais, com uma divisão interna para separar o grão para consumo humano da forragem para os animais; a cómoda onde se guardava a roupa, cujo gavetão inferior poderia também servir de cama para uma criança; o baú do enxoval e a arca onde guardavam a comida; o tear onde faziam os tecidos; o calhandro para os dejectos (a habitação não tinha esgotos). Os utensílios eram pendurados nas paredes ou colocados em pequenos nichos. Um braseiro aquecia a casa no Inverno e tinham uma pequena cisterna com tampa para armazenar a água da chuva, transportada do exterior por um rudimentar sistema de canalização. Os habitantes dos Sassi não tinham acesso a nascentes ou lençóis aquíferos, pois as grutas estão escavadas sobre uma camada maciça de calcarenito.

Matera 28.JPG

Além da família, sempre numerosa – cada casal tinha uma média de seis filhos, mesmo sendo a mortalidade infantil na ordem dos 50% – a casa abrigava também os animais: uma mula ou cavalo, porcos, aves de capoeira. Todos os objectos desta casa-gruta estão exactamente nos mesmos lugares em que se encontravam nos anos 50, quando a casa era habitada. Apesar de ainda ter contactado, em tempos idos, com casas rurais no nosso país em que as condições de vida eram bastante más (pelos meus padrões citadinos, obviamente), não consigo imaginar como seria viver nestas habitações sobrelotadas e insalubres.

 

Na verdade, nesta parte esquecida e isolada da Basilicata, e nestas condições, viviam 60 mil pessoas até meados do século passado. A sociedade italiana do pós-guerra só virou as atenções para a região depois de 1945, ano em que Carlo Levi, opositor do regime durante os anos do fascismo de Mussolini, publicou as memórias do tempo em que tinha sido desterrado para a Basilicata por razões políticas, no livro “Cristo parou em Eboli”. Descreveu os Sassi de Matera como sendo a ideia que um estudante faz do Inferno de Dante, com cavernas escuras, húmidas e sujas, onde as pessoas coabitavam com animais e as doenças se espalhavam de forma galopante.

Matera 33.jpeg

Em 1950, o primeiro-ministro italiano Alcide De Gasperi visitou Matera e ficou chocado com as circunstâncias precárias em que viviam os habitantes dos Sassi. A cidade foi apelidada de “vergonha nacional” e o governo italiano lançou um programa de realojamento dos moradores em casas novas, num esforço para “modernizar” a cidade. Entre 1953 e 1968, 16 mil pessoas foram transferidas para estes bairros modernos – cuja concepção, no entanto, não foi das mais felizes e levou ao isolamento de uma população que se caracterizava pela convivência e entreajuda, como se pertencessem todos a uma mesma família. Os Sassi foram esvaziados, e houve até quem sugerisse que esta parte da cidade fosse isolada com muros, para que ninguém mais se lembrasse dela. Sem vida, passaram a servir de refúgio para ladrões e traficantes. Houve, no entanto, alguns movimentos de locais que não se conformaram com a degradação do lugar em que tinham vivido, e aos poucos foram surgindo iniciativas para insuflar um novo alento aos Sassi, sobretudo a partir dos anos 80. O impulso final foi dado pela aceitação da candidatura a Património Mundial da UNESCO, em 1993.

 

A fé de Matera

 

Ao lado da casa-gruta do Vico Solitario foram recuperadas outras construções. Na neviera era armazenado o gelo para refrescar e conservar os alimentos, servir como reserva de água potável ou ser usado no tratamento de doenças. A igreja rupestre de Sant’Agostino al Casalnuovo, que remonta aos séculos XIII/XVII, pertenceu ao vizinho Mosteiro de Santa Lúcia mas foi disponibilizada para fins não religiosos e arrendada, sendo usada primeiro como habitação e depois como armazém e até como pedreira de calcário. Tal como a neviera, agora é essencialmente um espaço expositivo.

Matera 34.JPG

Uma caverna natural inserida no mesmo complexo museológico funciona como auditório. Segundo o painel informativo, este era o local de socialização dos habitantes do bairro, abrigado das chuvas e das temperaturas extremas, onde os homens conviviam no final do dia de trabalho. Sítio ideal para também nós descansarmos um bocado, em frente ao ecrã de televisão que passava um documentário. Foi ao vê-lo que descobri a razão de ser das decorações festivas que tínhamos visto na véspera (estávamos em Junho) e de um quadro, pendurado no nosso quarto no Nonna Rosario, com o desenho de um carro alegórico. E que descobri também a existência de um dos acontecimentos mais impressionantes do calendário religioso italiano.

Matera 37.jpeg

A santa padroeira de Matera é a Madonna della Bruna, cuja festa se celebra anualmente a 2 de Julho há mais de seis séculos (2024 foi o ano da 635ª edição). Este é um dos eventos culturais mais significativos da cidade, e porventura o mais singular, aquele em que a fé dos materanos se mostra de forma mais vívida, emotiva, até mesmo assustadora. O carácter único das celebrações e a popularidade de Matera transformaram esta festa num acontecimento que é hoje em dia alvo de reportagens em directo durante mais de 20 horas, desde a procissão dos pastores, que se realiza às quatro e meia da manhã, até ao fogo-de-artifício que encerra as festividades.

 

As várias procissões que decorrem ao longo do dia têm finalidades diferentes, mas são acompanhadas por milhares de fiéis de todas as idades. Na que se realiza ao início da tarde, a imagem da Madonna é transportada numa carruagem, separada da que representa o seu filho, habitualmente colocado no seu braço esquerdo. Mãe e criança são reunidas mais tarde e regressam à Catedral ao cair da noite, naquela que é a procissão mais comovente e inspiradora da festa – ou pelo menos é assim que a retratam os vários testemunhos gravados em vídeo nos anos mais recentes. Neste cortejo, as duas figuras seguem num carro alegórico triunfal, puxado por mulas, antecedido por um grupo de “guardas” a cavalo e rodeado por seguranças, que formam um cordão para proteger todo o cortejo. Antes de voltar ao seu lugar dentro da Catedral, o carro que transporta a Madonna dá três voltas à Piazza del Duomo, um ritual para invocar a protecção da cidade.

 

O carro alegórico é diferente todos os anos, concebido segundo um tema escolhido nas escrituras, com esqueleto de madeira e decorado com figuras e outros elementos modelados em cartão e papier machê. Depois de aliviado da sua carga preciosa – a figura da Madonna – percorre a Via delle Beccherie (a única rua dos Sassi onde é possível a passagem de carros) até à Piazza Vittorio Veneto, feericamente iluminada para a ocasião. E é quando entra nesta praça que começa a loucura. Centenas de pessoas atiram-se (literalmente!) ao carro, empurrando-se, atropelando-se, trepando umas por cima das outras, braços em riste para arrancarem um pedaço das figuras ornamentais. Em poucos minutos, o trabalho de meses é destruído, e os felizardos que conseguiram para si (ou também para os amigos, pois muitos deles organizam-se em grupos) um bocadinho de uma figura sentem-se abençoados e vão guardá-lo para sempre como amuleto de boa sorte. Dizem os estudiosos que este acto aparentemente bárbaro simboliza o triunfo do bem sobre o mal e a renovação da vida. Mariagrazia afirma que o acontecimento não é tão selvático quando parece, mas mesmo assim prefere manter-se longe. Há dois anos, o filho teve a sorte de conseguir um desses cobiçados pedacinhos. A fé materana é transversal a todas as gerações, e a tradição secular mantém-se de boa saúde.

 

O número de lugares de culto em Matera é impressionante, e rivaliza com o de cidades italianas bem maiores e mais conhecidas. O edifício religioso mais significativo, como não podia deixar de ser, é a Catedral de Maria Santissima della Bruna e Sant'Eustachio. Data de 1270 e foi construída, em estilo românico apuliano, no ponto mais alto da cidade, marcando a divisão entre os dois Sassi de Matera. As alterações de que foi alvo nos séculos XVI e XVIII deram-lhe um aspecto exterior híbrido e um interior barroco, com tectos falsos em madeira pintada com cenas litúrgicas, retábulos e capelas com mármores coloridos, e muitos elementos em talha dourada. Ainda assim, a luz que entra pelas janelas do clerestório e pelo vitral singelo, a par da abundância de branco, dão ao espaço alguma leveza, que contrabalança o excesso de elementos ornamentais.

Matera 38.jpegMatera 39.JPG

Também do século XIII, mas muito menos modificada, a igreja de San Giovanni Battista é outro belo exemplo da arte românica. Tem um portal magnífico, decorado com motivos florais e cabeças humanas com cabelos encaracolados. O interior é espartano, pedra à vista com arcos ogivais e abóbadas nervuradas, decoração parcimoniosa, a altura central a sobrepor-se à largura. Os olhos são encaminhados para o alto e há um convite implícito à meditação, na altura da visita reforçado pelo terço rezado a várias vozes femininas.

Matera 44.jpeg

Entre as muitas igrejas de exterior barroco que há em Matera, chamou-me especial atenção a de San Francesco d’Assisi, com uma fachada que consegue ser ao mesmo tempo elaboradíssima e delicada. Está decorada com volutas vegetais e cordões, e tem a particularidade de ostentar, nos extremos laterais superiores, duas estátuas: uma de São Francisco de Assis e outra de Santo António (que para os italianos é de Pádua, mas para mim é sempre de Lisboa).

Matera 49.jpeg

No Sasso Caveoso, a igreja de San Pietro data do período medieval, mas o seu aspecto foi radicalmente alterado em obras de restauro posteriores, principalmente no século XVIII. Ainda assim, o interior mantém vários trabalhos artísticos quinhentistas, como o políptico de madeira do altar-mor e – com especial importância também para nós, portugueses – os seis painéis de pedra que se encontram na capela dedicada a Santo António, que representam cenas da vida deste santo e se presume terem sido criados por Altobello Persio, escultor renascentista que também executou um monumental presépio que se encontra na Catedral. Aliás, percebi nesta minha recente viagem que Santo António é um dos santos mais venerados no sul de Itália, onde há dezenas de igrejas que lhe são dedicadas, várias delas com grandes programas de festividades no dia 13 de Junho.

 

A rota das igrejas rupestres

 

No século VIII, os monges beneditinos estabeleceram-se na região em que Matera se insere, trazendo consigo a iconografia latina do cristianismo monástico. Seguiram-se-lhes eremitas e anacoretas em fuga da guerra no Oriente, nos séculos IX e X, adeptos de culturas religiosas de inspiração bizantina. As grutas da Murgia Materana eram o local perfeito para a reclusão e o sossego por que todas estas almas religiosas ansiavam, e muitas delas foram adaptadas a local de culto: são mais de 150 as igrejas rupestres que subsistiram até aos nossos dias, ou de que ainda existem vestígios. Algumas ainda ostentam parte dos frescos ou baixos-relevos com que foram decoradas.

 

No Sasso Caveoso salta à vista, acima da mole híbrida de casas e grutas, um esporão rochoso com uma grande cruz no topo. É o Monterrone, e o seu interior esconde não uma mas duas igrejas comunicantes: as de Santa Maria de Idris e San Giovanni in Monterrone. Muito perto, Santa Lucia delle Malve foi o primeiro e mais importante assentamento monástico feminino da Ordem Beneditina, construído no século VIII. Estão aqui algumas das mais belas pinturas murais das igrejas rupestres de Matera. No Sasso Barisano, a maior de todas estas igrejas passaria despercebida não fosse o seu campanário exterior, um acrescento do séc. XVIII que também deu à fachada um aspecto suavemente barroco. É a igreja de San Pietro Barisano, nome que substituiu o anterior – bem mais interessante, por sinal: San Pietro de Veteribus. A sua origem remonta aos séculos XII-XIII.

Matera 54.jpeg

Santa Maria de Idris e San Giovanni in Monterrone

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San Pietro Barisano

 

Para lá da sua história atribulada – conversão em habitações ou armazéns, mero abandono, vandalização, roubo – o que mais impressiona nestas igrejas são os seus frescos, hoje recuperados. Alguns ainda estão bastante completos, outros são apenas fragmentos, mas dão-nos uma ideia de quão coloridos seriam estes interiores na sua época áurea. Representam, é claro, cenas bíblicas e santos, e revelam nítidas influências bizantinas misturadas com uma sensibilidade latina mais significativa. Na verdade, muitos destes frescos foram pintados por monges anónimos, autodidactas que passaram para as paredes, de forma expressiva, a sua própria interpretação da iconografia cristã.

 

Não é permitido fotografar o interior destas igrejas, por isso as imagens abaixo foram retiradas dos folhetos explicativos publicados pela Oltre L’Arte, a cooperativa que gere este (e outro) património (https://www.oltrelartematera.it/en/rupestrian-churches/).

Santa Maria de Idris e San Giovanni in Monterrone
Santa Lucia delle Malve

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San Pietro Barisano

 

Bem no centro da Piazza Vittorio Veneto há uma abertura que revela um acesso ao plano inferior da praça, posto a descoberto em fins nos anos 80 e 90, quando a área foi submetida a obras de remodelação. As escadas levam-nos a uma outra igreja rupestre, que se presume remontar aos séculos VIII-IX: é a igreja hipogeia do Santo Spirito, sobre a qual está construída a bem mais visível, apesar de pequena, igreja de Mater Domini, que a substituiu e votou ao esquecimento. Pese embora o abandono a que esteve sujeita, ainda subsistem vestígios de alguns frescos. Hoje em dia é um espaço aberto, com a nobre função de dar acesso ao Sasso Barisano.

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Deixei Matera com vontade de voltar. A Itália tem um qualquer sortilégio com esse efeito sobre mim. Em cada viagem, há sempre algum sítio que fica especialmente marcado na minha memória e me faz querer regressar. Matera consegue aliar uma história e uma cultura fora do comum a uma simplicidade genuína, ainda não afectada pelo pretensiosismo de alguns lugares repentinamente lançados para a ribalta do turismo. É uma cidade que tem desafiado os séculos, um exemplo de resistência, transformação e orgulho. Mais do que um sítio a visitar, é um lugar para sentir. Uma experiência que perdura muito tempo após o fim da viagem.

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Ter | 13.08.24

Matera, singular e mágica - parte 1

 

Vista de longe, do miradouro de Murgia Timone, Matera parece uma cidade bombardeada. Uma mancha cinza e creme onde se notam paredes em ruínas, janelas que parecem buracos negros, fachadas assomando entre rochas, telhados inexistentes substituídos por pedras empilhadas ao acaso ou terra de onde despontam arbustos incipientes. Paisagem cubista com formas interligadas, extravasando em todas as direcções sem ordem evidente, sucessões de degraus que parecem não ter princípio nem fim e evocam as impossibilidades da gravura “Relativity” de Escher.

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A tranquilidade aparente dá a ideia de um lugar abandonado. E no entanto, o engano não poderia ser maior: estamos perante uma das povoações mais antigas do mundo constantemente habitada desde há 10 mil anos. Porquê? O que é que tem de tão especial? Há que visitá-la para perceber.

 

Do desconhecimento ao estrelato

 

Entrando em Matera pelo planalto, no lado norte, a cidade não difere de qualquer outra: prédios baixos pintados em cores insuspeitas, com lojas e oficinas nos pisos inferiores; aqui um mercado, uma igreja moderna mais à frente, um silo industrial ao longe, espreitando por cima dos telhados. Muitos carros, algumas árvores espaçadas ao longo das ruas. É o Piano, a parte moderna da cidade, onde vive a maioria dos seus 60 mil habitantes.

 

Numa viagem de carro pelo sul de Itália, o aspecto prático sobrepõe-se frequentemente ao romântico, e a verdade é que nos centros históricos é impossível estacionar. Por outro lado, andar a pé faz bem, até mesmo para digerir as maravilhosas refeições de pasta a que sucumbimos de boa vontade quando andamos por terras italianas. Decidimos, por tudo isso, alojar-nos numa das ruas principais do planalto, a uma mera caminhada de 10 minutos da cidade antiga, e onde até parecia estar à nossa espera um lugar milagrosamente vago no pequeno estacionamento do outro lado da estrada. Um início auspicioso!

 

Apesar de ter os seus Sassi e o Parque das Igrejas Rupestres inscritos no Património Mundial da UNESCO desde 1993, Matera permaneceu longe da ribalta turística até muito recentemente. “Até há poucos anos, quando ia a Milão e dizia a alguém que vinha de Matera, olhavam para mim com ar de dúvida e perguntavam: onde é que isso fica?” – palavras de Mariagrazia, a dona do B&B Nonna Rosario, o alojamento onde ficámos. O clique da mudança deu-se em 2019, quando Matera foi Capital Europeia da Cultura, reforçado pelas filmagens da sequência de abertura do filme “007-Sem Tempo para Morrer”, que mostrou a cidade ao mundo quando estreou nos cinemas, em 2021. Em meia dúzia de anos, Matera tornou-se uma estrela do turismo tanto nacional como internacional, e o corrupio de visitantes é contínuo.

 

Uma cidade, várias faces

 

As sombras do final de tarde já se alongavam quando saímos ao encontro do centro histórico, pese embora a temperatura do ar se mantivesse nos 20 e bastantes graus. Íamos em busca dos Sassi, anfiteatros escavados numa das vertentes do Torrente Gravina, que corre, em esses de quem bebeu demais, pela região da Basilicata. São eles o motivo principal do fluxo de visitantes da cidade, mas ainda assim permanecem uma face oculta, resquícios de vergonha antiga, escondidos que estão para quem vem da parte moderna. As construções que ocupam a Civita, o centro histórico medieval que se espalha pela orla do planalto, são um biombo formado por igrejas, palazzi e edifícios vários que impedem a visão imediata dos Sassi. Fervilhando de gente – habitantes locais à conversa, miúdos montados em patins ou bicicletas com rodinhas, casais de namorados, e uma boa dose de estrangeiros – a Piazza Vittorio Veneto é o centro nevrálgico da Matera antiga, uma espécie de foyer de um teatro onde nunca entrámos, e de que não sabemos bem o que esperar.

Quando passei os modestos arcos de acesso ao terraço-miradouro Luigi Guerricchio e consegui um disputado lugar na varanda de ferro forjado, entrei noutra dimensão. O anfiteatro de pedra do Sasso Barisano abria-se à minha frente e aos meus pés, tão amplo quanto compacto: uma amálgama de edifícios e rocha, de volumes desordenados, um puzzle concebido por um louco e que o meu cérebro teve dificuldade em processar. No cenário aloirado pelo sol da “golden hour”, qual estrela no cimo do pinheiro natalício, a catedral brilhava contra o céu sarapintado de aves irrequietas, com a torre sineira a destacar-se para assinalar a importância do edifício. Metade do Sasso já estava à sombra, dando ao quadro um aspecto ainda mais dramático. O meu coração falhou uma batida. Terá sido nessa altura que me enamorei de Matera?

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Se não foi, decerto não terá tardado muito. Aventurámo-nos pelas vielas e escadinhas íngremes, na ânsia de sentir o efeito de penetrar naquele labirinto. Os Sassi são enganadores. Olhamos para o mapa e parece que determinado ponto está ali mesmo ao lado. Orientamo-nos naquela direcção, mas as ruelas são tão imbricadas que às tantas damos por nós a andar em sentido contrário, para a seguir descobrirmos que o lugar que procuramos está dois níveis acima (ou abaixo!). Não são raras as vezes em que temos de voltar pelo mesmo caminho, para depois entrar numa outra viela, subir ou descer mais uma porção de degraus – e temos sorte se não formos dar a um beco. Meio perdida no cenário, senti-me criança a viver uma aventura livresca, quase à espera de ver o Professor Dumbledore surgir ao virar de uma esquina.

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Entre tentativa e erro, lá conseguimos dar com o restaurante onde tínhamos decidido ir jantar. Chama-se “Il Terrazzino”, e o nome não engana: uma escadaria estreita, ao ar livre, deixa-nos num terraço abrigado sob uma arcada tripla, de onde temos uma vista soberba sobre a vertente norte do Sasso Barisano. Mesas quadradas, cobertas com simples toalhas brancas, e cadeiras robustas de madeira escura, num ambiente quase espartano que realça o panorama exterior. Aqui qualquer comida saberia bem, que os olhos degustam tanto quanto o palato. E no entanto, há mais. Um atendimento sorridente e caloroso, comida tradicional deliciosa – como a parmigiana di melanzane (à base de beringela) ou as orecchiette al tegamino (uma massa típica da Puglia) – e ainda a oportunidade de conhecer uma antiga adega no subsolo do restaurante. A adega data de 1600 e foi escavada na rocha, seguindo a arquitectura típica dos Sassi. Nas suas várias salas está organizada uma exposição etnográfica, com objectos originais e fotografias que mostram como era a vida dos camponeses de Matera até meados do séc. XX.

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Quando saímos do restaurante, já sob o pano azul-escuro da noite, a cidade apresentava uma outra face, plena de contrastes. O negrume engolia certas partes dos Sassi, enquanto outras tinham ganhado uma vida diferente sob os focos de luz. A escuridão disfarçava as zonas ainda em ruínas, esbatia imperfeições e escondia guindastes, as luzes uniformizavam a pedra, às vezes criando pontos de cor. A Matera nocturna parece mais moderna, mas não menos misteriosa.

De regresso ao alojamento, nova passagem na Piazza Vittorio Veneto, onde o movimento decuplicara no espaço de apenas duas horas. A cidade inteira parecia ter saído à rua. O ambiente era de festa e até estavam montados grandes arcos de iluminação em vários pontos da praça, mas as suas lâmpadas mantinham-se apagadas. Só mais tarde viria a perceber porquê.

 

O pão de Matera

 

Na manhã seguinte, Mariagrazia serviu-nos o pequeno-almoço numa sala-cozinha luminosa, a divisão central do seu B&B. De um saco de papel retirou um pão estranho, com uma crosta escura e um ar tosco. Cortado em fatias, o miolo revelou-se amarelo, a fazer lembrar o nosso pão de milho, mas ao prová-lo percebi que era muito diferente, com uma textura e um ligeiro pico azedo a evocarem o pão alentejano. Sem o saber na altura, estava a comer um pão tradicional centenário, típico dos Sassi de Matera, actualmente classificado como IGP (Indicação Geográfica Protegida) e produzido segundo critérios rígidos que evitam a sua desvirtuação.

 

A base do verdadeiro pão de Matera é idêntica à de tantos outros pães: farinha, fermento, água e sal. Mas esta identidade é apenas genérica, pois tanto os ingredientes como o processo de produção têm particularidades que, somadas, resultam num produto muito especial. O ingrediente mais importante, a farinha, obtém-se a partir da sêmola de grãos de uma variedade de trigo tradicional muito difundida na região lucana, conhecida como “Senatore Cappelli”.Este tipo de trigo conserva no seu património genético características que não se encontram noutras variedades, e que conferem ao pão de Matera aroma e sabor únicos, além de ter um glúten mais facilmente digerido. A fermentação é longa e tem um segredo: é usada massa-mãe que envolveu a maceração de uvas e figos fermentados em água de nascente local. Finalmente, a cozedura tem obrigatoriamente de ser feita em forno de lenha alimentado com essências típicas da região.

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Dizem os locais que o formato do pão de Matera – comprido, alto e arqueado, quase um cone – se assemelha ao das elevações abruptas da Murgia, a região geográfica em que a cidade se insere. Antes de a massa ir para o forno, leva três cortes rituais, em representação da Santíssima Trindade. O pão foi durante séculos a base da alimentação dos habitantes dos Sassi, e esta era uma forma de agradecerem a Deus o alimento que lhes permitia sobreviverem. A massa era cozida em fornos comunitários, e para evitar confusões cada pão era marcado com um carimbo de madeira ou terracota que tinha gravadas as iniciais da família a que pertencia. Os carimbos são hoje acervo de museu, mas o pão tradicional continua a ser o preferido pelos materanos.

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A magia da pedra

 

No extremo oriental da Basilicata, região do sul de Itália, o sulco geológico a que dão o nome de Gravina di Matera define o território da Murgia Materana, um planalto calcário caracterizado por fendas profundas, ravinas, rochas e cavernas, coberto de vegetação mediterrânica. Os achados arqueológicos mostram que esta região é habitada desde o Paleolítico, quando as suas grutas e saliências rochosas de formação natural serviam de abrigo aos humanos, nessa altura caçadores-recolectores. Com a agricultura e o sedentarismo, por alturas do Neolítico, surgiram os primeiros assentamentos, que aproveitaram as cavernas escavadas nas encostas das ravinas, num exemplo perfeito de adaptação humana ao meio natural, tirando o máximo partido da geomorfologia e do espaço locais.

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Estas habitações trogloditas nunca deixaram de ser usadas e o seu número foi aumentando ao longo dos séculos. Na Antiguidade tardia e início da Idade Média já eram a forma de povoamento mais difundida em Matera, constituindo um labirinto de grutas que se estende para lá do imaginável: o que está à vista é apenas 30 por cento do total, que ascende a um número entre 1500 e 3000, dependendo do critério usado para contabilizar as estruturas. Muitas delas foram adaptadas e modificadas ao longo do tempo, com construções de alvenaria prolongando a frente das grutas – nos Sassi, as casas foram construídas para satisfazer as necessidades das famílias. Estas habitações subterrâneas espalham-se em grupos, de forma irregular, acompanhando as camadas de rocha calcária macia. Com o passar do tempo, a forma pré-histórica de viver numa gruta cristalizou-se no modelo de habitação característica de Matera.

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No entanto, embora os agricultores, pastores e comerciantes menos endinheirados vivessem nas casas trogloditas, a população pertencente às classes mais abastadas (clero, nobres e negociantes bem-sucedidos) construiu para si, na parte mais alta da cidade, palacetes e mosteiros mais consentâneos com a sua posição social, ao gosto de cada época. Esta é a razão pela qual existe uma diferença acentuada entre a morfologia dos edifícios da Civita e dos Sassi.

 

Ainda assim, quando no dia seguinte parámos no miradouro da Piazzetta Pascoli (a “varanda” de Matera), de onde temos uma vista abrangente sobre o Sasso Caveoso, não pude deixar de admirar a forma como ali tudo parece fundir-se naturalmente. As construções mais elaboradas transfiguram-se mais abaixo em casas que se projectam das grutas, esculpidas na colina, desdobrando-se até se confundirem com a paisagem. Casas e ravina misturadas, feitas de uma mesma rocha, unidas pelas mesmas tonalidades cruas e acinzentadas. Caos e harmonia em coabitação pacífica.

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Em dia quente e sem ponta de vento, subir e descer ruas íngremes e escadinhas sinuosas não é um passatempo recomendável. Mas Matera parece irradiar uma energia especial que torna tudo mais leve. Durante as várias horas em que percorremos os Sassi, os meus joelhos não se queixaram das centenas de degraus que subi, os pés resistiram sem mossa aos milhares de passos que dei, o calor não me incomodou, o humor esteve sempre em alta. Coincidência ou sortilégio? Na dúvida, apetece-me mais optar pela segunda hipótese.

 

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