Voltinha saloia pelo litoral, do Guincho a Azenhas do Mar
A zona saloia é uma área, mais ou menos cinzenta e de limites indefinidos, que se estende para fora dos antigos muros de Lisboa e engloba vários concelhos. Foi durante séculos a região que essencialmente abastecia de produtos agrícolas a capital, e tinha uma cultura própria, ainda bem característica no século XX – mostrada, por exemplo, no famoso filme de Chianca de Garcia “Aldeia da Roupa Branca”. Muito pressionada pela construção e agora com enormes bairros-dormitório, consegue ainda assim manter algumas áreas protegidas, além de outras onde a massificação urbana tem sido controlada, numa luta que parece destinada ao fracasso. Deste grupo de áreas “resistentes” faz parte a faixa litoral, que nos proporciona bons ares, belos passeios (apesar de geralmente ventosos), e pores-do-sol inesquecíveis.
Quando vamos de Lisboa, o tempo muda frequentemente assim que dobramos o Cabo Raso – às vezes para melhor, outras vezes nem tanto. Mas com ou sem sol, e com ou sem vento, a praia do Guincho é sempre um lugar apetecível, nem que seja para um passeio a pé ou para tomar uma bebida, com os olhos postos no mar e nas movimentações dos surfistas. O areal é extenso e parcialmente protegido por dunas. A norte, como paisagem de fundo, o Cabo da Roca e a beleza verde da serra de Sintra. E na época alta de veraneio, entre dois mergulhos na água bem fresca, faz parte da tradição comer uma bola de Berlim, a massa ligeiramente salgada a fazer contraponto ao açúcar grosso que a cobre.
Além da praia, onde há sempre lugar para a toalha (embora às vezes não haja nenhum para estacionar o carro…), vale a pena conhecer o Núcleo de Interpretação da Duna da Cresmina. Neste sistema dunar, com 66 hectares de área e características muito peculiares, foram criados um espaço expositivo/informativo e um percurso de passeio sobre passadiço de madeira. Estas infra-estruturas têm como finalidade ajudar a compreender e incentivar a preservação de uma área com um equilíbrio ecológico delicado e de grande importância na protecção dos efeitos nefastos do mar.
Seguindo para norte sempre junto à linha de água, abrigada entre a escarpa rochosa encontramos a praia do Abano. Ventosa e com ondulação forte, é uma das preferidas pelos kitesurfers. Nos dias mais soalheiros e tranquilos, é uma boa alternativa às suas vizinhas, por ser menos acessível: a estrada é de terra batida, e depois há que descer uma escadaria até à praia.
No topo da arriba sul ergue-se o Forte do Guincho, também conhecido como Forte das Velas. Foi construído em 1642, após a Restauração da independência de Portugal, fazendo parte da antiga linha de defesa da Barra do Tejo. Da sua posição dominante temos uma vista privilegiada sobre o mar e as praias vizinhas. Importante era também o facto de estar em comunicação visual com os outros fortes mais próximos, em particular o de S. Brás de Sanxete, situado no Cabo Raso, a sul, e o Forte da Roca, a norte, no cabo com o mesmo nome. Tal como outros pequenos fortes da mesma época, foi construído com pedras de vários tamanhos, ligadas por argamassa, e tem um formato rectangular. Danificado pelo terramoto de 1755, foi reforçado com um paredão em cantaria aquando da sua reconstrução, em finais do século XVIII. Desactivado em 1832, quando o exército miguelista saiu da região de Lisboa, não voltou a ser ocupado para fins militares. Já no século XX, funcionou como casa-abrigo para campistas durante algumas décadas, até ser classificado em 1977 como imóvel de interesse público. Está actualmente sob a responsabilidade da Câmara de Cascais e já teve projectos de concessão, mas continua abandonado. O seu paredão é um dos poisos preferidos dos pescadores à linha.
Voltamos à estrada principal, a N247, e continuamos na direcção do Cabo da Roca. Mesmo à entrada da aldeia da Azóia, vale a pena fazer um pequeno desvio até ao Moinho Dom Quixote, um restaurante-bar com esplanada e uma vista incrível sobre a costa. O moinho existe – não com o formato dos moinhos da La Mancha, contra os quais lutou o visionário da história de Cervantes, mas com o aspecto dos tradicionais moinhos de vento da região de Lisboa. Estava em ruínas mas foi recuperado nos anos 80 e rodeado de um jardim frondoso e cheio de recantos rústicos. Ao lado, a casa onde funciona o restaurante, também ela decorada num estilo muito próprio e repleta de pormenores exóticos. O lugar ideal para descansar e fazer uma refeição, ou simplesmente tomar uma bebida.
Tal como publicitado até à exaustão, o Cabo da Roca é o ponto mais ocidental do continente europeu, e a sua fama atrai muitos milhares de visitantes todos os anos. Mas preparem-se para o vento, que muitas vezes é extremamente forte neste lugar exposto aos elementos da natureza. A 140 metros de altura, o local está marcado com um cruzeiro, onde uma lápide reproduz as coordenadas em que se situa e a célebre frase que Camões escreveu sobre este cabo n’Os Lusíadas. A vista, escusado será dizer, é arrebatadora, com o oceano a estender-se à nossa frente até ao infinito. Há um trilho curto ao longo da falésia, protegido por um corrimão em troncos de madeira, e quem for destemido e ágil consegue descer pelas arribas até à praia do Louriçal, um recanto pedregoso rodeado de rochas a que o vento e a água deram formatos caprichosos.
Acima do miradouro destaca-se o farol, branco e vermelho. Construído na segunda metade do século XVIII por ordem do Marquês de Pombal, é actualmente o segundo farol mais antigo da nossa costa. No início, funcionava com candeeiros alimentados a azeite e só foi electrificado em 1897, quando passou a estar também dotado de uma sirene a vapor. O sistema óptico que ainda é usado hoje em dia data de 1947, com algumas modernizações efectuadas pontualmente, e o Farol da Roca continua a ser um dos pontos de referência mais importantes do litoral português e da Europa.
Voltando pela Estrada do Cabo da Roca, deparamos com uma indicação para a praia da Ursa. É mais um desvio obrigatório, este para ser feito a pé. Percorremos umas quantas centenas de metros em terreno aberto, até que avistamos o rochedo piramidal que é o ex libris da praia e faz as delícias de fotógrafos e instagrammers. Aqui chegados, há duas hipóteses: ou contentamo-nos em ver a praia e a paisagem cá do alto (e já não é pouco…), ou descemos por um dos trilhos íngremes de acesso ao areal. Não é tarefa fácil nem para todos, e há que ter ténis apropriados, para evitar algum acidente. A recompensa é uma praia selvagem, frequentemente sem ninguém, e ver de perto as grandes rochas que lhe dão o nome.
De regresso à N247, seguimos até Almoçageme. É uma aldeia típica da zona saloia, com casas baixas pintadas de branco, ornamentadas com a tradicional faixa amarela ou azul, agora misturadas com outras de traça mais recente – e é também a porta de entrada para uma das minhas praias preferidas, unanimemente considerada como uma das mais bonitas do nosso país: a praia da Adraga. Tanto pela sua beleza como pelo facto de ter uma boa estrada de acesso, parque de estacionamento e um restaurante junto à entrada, é uma das praias mais frequentadas da região de Sintra. O areal é amplo, mesmo na maré alta, e por trás ergue-se uma falésia abrupta. No lado sul, as fragas que a protegem fazem lembrar velas latinas surgindo umas por detrás das outras, e na maré baixa há passagem para a pequena enseada da praia do Cavalo. No lado norte, é semifechada por pequenos rochedos, por entre os quais chegamos a duas outras praias de areia e pedra, minúsculas e só visíveis na baixa-mar.
Esta é também uma zona de excelência para fazer caminhadas pelas arribas. Há um caminho de terra batida que sobe até ao miradouro da praia do Caneiro, com vistas soberbas sobre os rochedos espalhados até ao Cabo da Roca, e a partir dali vários trilhos que percorrem a falésia em toda a sua extensão. Um deles leva ao Fojo da Adraga, também chamado de Fojo dos Morcegos, um enorme algar aberto na falésia, por onde entra o mar.
Outro dos locais do litoral saloio mais frequentados em qualquer altura do ano é a Praia Grande. A sua dimensão faz jus ao nome, e é acompanhada em toda a extensão por uma avenida com bares e restaurantes. No extremo norte, anexa ao Hotel Arribas, há uma piscina de água salgada (uma das maiores da Europa), aberta ao público entre Abril/Maio e Outubro, e muito popular na época alta. Além da piscina principal, que tem 100 metros de comprimento e um formato ligeiramente arqueado – como o deck de uma embarcação – há uma piscina mais pequena para crianças.
A norte da piscina há outra praia, a do Rodízio, e continuando pelo trilho delimitado por uma balaustrada feita de troncos chegamos ao sítio arqueológico do Alto da Vigia. Pese embora hoje apenas se vejam algumas pedras e o local pareça não ter grande interesse, as escavações arqueológicas que têm vindo a ser feitas identificaram os vestígios mais antigos ali encontrados como pertencendo provavelmente a um templo romano dedicado ao sol, à lua e ao oceano. Mais tarde, no período islâmico, existiu neste lugar um ribat (edifício onde se aloja uma comunidade de sufis), e mais tarde ainda uma torre de vigia – certamente devido à sua localização privilegiada, com grande visibilidade sobre o mar e simultaneamente sobre a ribeira de Colares, cujas águas foram em tempos remotos bem mais abundantes e navegáveis.
E por falar em ribeira de Colares, rumamos ao sítio onde ela desagua: a Praia das Maçãs. É mais um dos lugares icónicos desta região e a praia mais acessível aos sintrenses – é famoso o eléctrico que a liga à vila durante parte do ano (normalmente de Abril a fins de Outubro), num percurso de 11 km que dura 45 minutos e tem tanto de útil como de turístico, descendo em curvas e contracurvas pela serra e seguindo depois por Galamares e Colares até ao terminal no centro da Praia das Maçãs. Procurada por surfistas, banhistas e apreciadores de peixe e marisco, a localidade é essencialmente virada para o turismo, com vários hotéis e alguns restaurantes afamados onde ao fim-de-semana nunca é fácil encontrar mesa para almoço sem fazer reserva prévia. Em crescimento e frequentada para banhos desde o século XIX, ainda sobrevivem na povoação algumas casas de traça antiga, umas mais simples, outras meio apalaçadas.
Quando se aproxima o final da tarde, é hora de ir até à aldeia das Azenhas do Mar, um dos postais ilustrados mais divulgados de Portugal – e ainda mais encantadora ao vivo do que nas fotografias. Empoleirada sobre uma falésia quase vertical, que parece ter sido talhada a golpes de machado, desta antiga aldeia piscatória restam algumas casinhas brancas, paredes-meias com casas de férias do século passado, também brancas, e todas elas já tão uniformizadas que é difícil destrinçar umas das outras. Cá em baixo, a praia é pequena e algo pedregosa, pouco convidativa, mas a piscina rústica roubada ao mar atrai as atenções e os banhistas quando o tempo está bom. Com o mar alterado, desaparece sob as ondas que sobem até ao paredão.
A povoação estende-se para sul, ao longo da estrada que vem da Praia das Maçãs e que é, ela própria, um miradouro de excepção. Entre os inúmeros spots para ver o pôr-do-sol na nossa costa, este é um dos melhores, com o laranja do céu a reflectir-se na água, dourando a atmosfera e as casas que espreitam do outro lado da praia. Haverá melhor maneira de terminar o dia?
(Este artigo foi publicado pela primeira vez no website Fantastic)
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