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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Sex | 28.07.23

De autocarro na Patagónia

 

A culpa é do Fernão de Magalhães. Em 1520, durante a sua viagem para oeste tentando chegar às Molucas, quando contactou pela primeira vez com os nativos da região mais meridional das Américas decidiu chamar-lhes Patagónes – pelo menos, foi esta a versão divulgada por Antonio Pigafetta, o geógrafo e cronista que seguia na expedição e sobre ela deu à estampa, em 1525, o Relazione del Primo Viaggio Intorno Al Mondo. O porquê de tão estranho nome permanece um mistério, já tentado decifrar por muitos mas sem que nenhuma das teorias tenha realmente vingado como definitiva. Ainda assim, a designação pegou e o seu conceito foi ampliado, passando a denominar toda uma enorme região da América do Sul: a Patagónia.

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Nome estranho e fascinante para uma região que, pela sua lonjura, desperta a imaginação, e que eu há muito tempo desejava conhecer. São as terras agrestes do “fim do mundo”, os mares gelados pela proximidade do Pólo Sul, os picos montanhosos que só os muito aventureiros se atrevem a conquistar, os animais que só ali podemos ver no seu habitat natural. Uma viagem que eu sabia que me iria deixar memórias vívidas e duradouras de lugares para os quais “perfeito” é o único adjectivo que espelha a realidade.

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A Patagónia é uma área imensa com mais de um milhão de quilómetros quadrados (cerca de 11 vezes o tamanho de Portugal) que se estende desde o arquipélago da Terra do Fogo, no extremo sul do continente americano, até Puerto Montt e o lago Todos Los Santos, no Chile, e os rios Colorado e Barrancas, na Argentina. É atravessada longitudinalmente pela Cordilheira dos Andes, que também serve de fronteira natural entre os dois países excepto na extremidade meridional, pois o Chile reclamou para si toda a área banhada pelo Estreito de Magalhães e uma parte da Ilha Grande da Terra do Fogo, além de outras ilhas mais a sul.

 

Planear uma viagem independente num território tão extenso e distante, sem nunca ter posto os pés na Argentina ou no Chile e com limitações de tempo (e de orçamento) não é tarefa fácil. Foram muitas horas de pesquisa, e foi preciso ponderar bem os meus objectivos, para seleccionar a área que iria conseguir visitar durante três semanas – o período de férias que pude reservar para esta espécie de aventura.

 

Porque sei que este é um destino desejado por muita gente, ficam aqui várias informações e conselhos que podem ser úteis a quem estiver a pensar em ir até ao sul da Patagónia e à Terra do Fogo. Como “bónus”, fica também o roteiro da viagem que fiz, esperando que vos sirva de inspiração para se lançarem na vossa própria aventura pelas “terras do fim do mundo”.

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Planeamento

 

Os objectivos estavam definidos: ver montanhas, glaciares e pinguins, e caminhar tanto quanto possível. A época do ano também não foi difícil de escolher: Novembro, na Primavera austral, por ainda não ser época alta mas as temperaturas já serem suficientemente simpáticas. A parte mais complicada foi seleccionar a área e os locais que queria mesmo visitar, e como me deslocar entre eles.

 

Ushuaia e a Terra do Fogo eram pontos obrigatórios, assim como o Parque das Torres del Paine e o glaciar Perito Moreno. Juntei El Chaltén à lista, por ficar na base do Fitz Roy e não muito longe de el Calafate (porta de acesso ao Perito Moreno), e porque é zona de excelência para caminhadas. E finalmente incluí Punta Arenas, no Estreito de Magalhães, por ser um ponto intermédio na ligação entre Ushuaia e as outras localidades mais a norte.

Sei que parece pouco para três semanas, mas não é. As distâncias entre estas localidades são enormes e perde-se muito tempo nas deslocações entre elas. Além disso, como já sabem, gosto de viajar com calma, para absorver o mais possível daquilo que vejo. Há que contar ainda com o facto de as caminhadas em terreno montanhoso serem extremamente cansativas, e é preciso reservar tempo para descansar.

 

Alugar carro para a quase totalidade da viagem foi uma primeira hipótese, que pus rapidamente de lado ao perceber que não iria conseguir fazer um percurso circular e seria sempre necessário voltar a fazer muitos quilómetros para devolver o carro no mesmo lugar em que o alugasse. Iria perder muito tempo e tornar-se-ia extremamente desgastante. Além disso, nos últimos anos tenho tentado evitar usar o carro sempre que possível, não só no meu dia-a-dia como também nas minhas viagens. Dou primazia aos transportes públicos, excepto quando isso é inviável por alguma razão. Assim, a única alternativa que restava era usar o autocarro para me deslocar entre os vários lugares que queria visitar.

Outra decisão a tomar: onde começar e terminar a viagem? O percurso implicava saltar entre dois países, a Argentina e o Chile, e podia começar por qualquer um deles, mas optei por escolher voar para e de Buenos Aires. Tinha curiosidade em conhecer a cidade, e reservo Santiago do Chile como ponto de ligação para outra grande viagem que está nos meus planos (ainda sem data). E embora a maior parte das pessoas faça a viagem de norte para sul, eu decidi começar o percurso na Patagónia pelo ponto mais longínquo possível, Ushuaia, para depois ir subindo.

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Decidida a espinha dorsal da viagem, o primeiro passo concreto foi marcar os voos de ida e volta para Buenos Aires e o hotel nesta cidade, onde fiquei nos dois primeiros dias e também no dia antes de voltar a Portugal. Depois, e não menos importante, o voo de Buenos Aires para Ushuaia, e o de regresso a Buenos Aires saindo de El Calafate.

 

Com os dias que sobravam, organizei o roteiro – que teria de ser flexível, pois não encontrei muita informação sobre as ligações de autocarro entre as várias localidades (muito do que aparece na net está desactualizado, sobretudo porque os dois anos de pandemia levaram a algumas alterações na oferta turística). Teria de obter informações mais concretas quando chegasse a cada cidade, e organizar as estadias em função das ligações disponíveis para a cidade seguinte. Pela mesma razão, e também porque gosto da liberdade de poder ficar mais ou menos tempo em cada lugar, só marquei antecipadamente o alojamento em Ushuaia. Todos os outros foram marcados de véspera, ou quando já tinha comprado o bilhete de autocarro.

 

Uma das desvantagens de não ter carro para andar por estas paragens é que os parques naturais ficam muito longe dos locais onde há alojamento. Ushuaia fica a 13 km do Parque Nacional Tierra del Fuego, e da entrada deste parque até à Baía Lapataia são mais 11 km. O Torres del Paine dista 100 km de Puerto Natales, e o Perito Moreno está a quase 80 km de El Calafate. O único sítio onde conseguimos fazer tudo a pé, porque há muitos trilhos de caminhada que começam dentro dos limites da localidade, é El Chaltén. Por isso, é também necessário arranjar transporte para cobrir aquelas distâncias – dependendo dos casos, pode ser autocarro ou minibus, ou um tour, mas será sempre necessário comprar o bilhete ou reservar antecipadamente junto de um operador turístico.

 

Aliás, os próprios autocarros que fazem a ligação entre as cidades principais são todos operados por empresas particulares. Por vezes há mais do que uma por onde escolher, mas nem sempre, e os preços são praticamente idênticos, seja qual for o operador que se escolha. São autocarros muito confortáveis e seguros, e nas viagens mais longas oferecem snacks e bebidas.

 

Dinheiro

 

A moeda na Argentina é o peso argentino (ARS) e no Chile é o peso chileno (CLP). A única coisa que os sistemas monetários destes dois países têm em comum é o nome, e é importante ter isto em mente. Por norma não viajo com muito dinheiro, e fora da zona euro uso o cartão Revolut ou, mais raramente, o cartão de crédito. Em ambos os países, o pagamento com cartões electrónicos está vulgarizado, com uma ou outra excepção (lojinha pequena de comércio local ou quiosques de artesanato, por exemplo). Há muitos sítios que aceitam dólares, mas euros é raro.

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Também há ATMs suficientes, mas cobram taxas e o valor que se pode levantar é por vezes muito baixo. No Chile, o valor das taxas é perfeitamente suportável e proporcional aos levantamentos. Mas na Argentina é perfeitamente disparatado: é fixo e varia de banco para banco, mas é sempre altíssimo. Como por vezes o máximo que se consegue levantar é um valor baixo, as taxas chegam a ser 25% do valor que se levanta. Uma exorbitância.

 

Aliás, a Argentina tem um mercado paralelo de câmbio, ao qual todos os estrangeiros recorrem, e gostava de ter percebido isso mais cedo na minha viagem porque teria poupado bastante dinheiro – o valor do euro “blue” (é o nome que lhe dão) neste mercado paralelo é quase o dobro do valor do câmbio oficial. E onde é que se pode cambiar moeda, sem ser nos bancos e nas lojas oficiais? Pois em alguns hotéis ou nas cuevas, que são negócios locais abertos ao público (sítios onde se paga a água e a luz, por exemplo) e existem em todo o lado – basta perguntar. Não é legal, mas é um negócio tão habitual e feito às claras, que não traz qualquer problema. Em El Calafate, uma casa de câmbio oficial não tinha sequer pesos argentinos para vender, mas a funcionária indicou amavelmente um restaurante ali perto, cujo escritório me trocou euros por pesos sem qualquer problema – e o fluxo de “clientes” parecia ser constante. Outra opção é cambiar nos postos da Western Union, mas as filas costumam ser quilométricas.

 

Tanto no mercado oficial como no paralelo, a flutuação do câmbio é constante, e por vezes bastante pronunciada, por isso o melhor é ir trocando dinheiro à medida das necessidades. No ano passado a Argentina teve uma inflação de 94% e continua a subir, com a barreira dos 100% a ser ultrapassada em Março deste ano, por isso não esperem encontrar um país barato.

 

Comunicações

 

Uma das primeiras coisas que fiz em Buenos Aires foi comprar um cartão SIM Movistar para chamadas e dados (há outros operadores). O sistema é um bocado estranho porque é preciso comprar o cartão num kiosco (umas lojinhas de conveniência que vendem de tudo um pouco), ir depois fazer o registo numa loja do operador de comunicações (há sites que dizem que se podem comprar os cartões directamente nos operadores, mas na loja da Movistar da Avemida Corrientes não foi possível), e voltar novamente ao kiosco para o carregar. As comunicações são baratíssimas: carreguei com 1500 ARS, tive direito a um bónus, e quando deixei o país ainda tinha mais de 1000 ARS de saldo. Usei-o também no Chile, inclusive para fazer um telefonema, e funcionou sem problemas. Obviamente, há lugares remotos em que não se consegue apanhar rede, mas de uma maneira geral a cobertura é bastante boa.

 

O clima

 

Variável, como é óbvio, pelas latitudes a que estamos e pela instabilidade própria da Primavera. Mais para o frio do que para o quente, mas com dias de sol memoráveis – como o dia em que fiz o passeio no Canal Beagle, em Ushuaia, ou aquele em que fui ao Parque das Torres del Paine. Chuva houve pouca, uns chuviscos em Ushuaia e em Punta Arenas ao final da uma tarde, mais uma chuvita durante um bocadinho no Perito Moreno, e chuva mais a sério à chegada a El Chaltén, que também não durou muito. Algum vento em Punta Arenas e bastante em El Chaltén.

É indispensável um bom anoraque com capuz, de preferência impermeável, e dá jeito ter uma capa de chuva à mão. O segredo para não passar frio nem correr o risco de sufocar de calor é o conhecido método da “cebola” – camadas de roupa, que vamos tirando à medida que o dia aquece. Por outro lado, faz muita falta um protector solar, e com factor elevado. Convém que as botas ou os ténis de caminhada também sejam impermeáveis. Levei luvas e gorro, mas dei-lhes pouco uso. Um chapéu à prova de água é útil tanto para a chuva como para o sol.

 

O melhor

 

Foi uma viagem tão cheia de momentos inesquecíveis que é difícil escolher. Tive sorte com o tempo, por isso o passeio de barco no Canal Beagle até à Isla Martillo, com o objectivo de ver pinguins, foi absolutamente delicioso. Pela mesma razão – um dia lindo de sol! – a caminhada até ao Mirador Cuernos, no Parque Torres del Paine, com as montanhas em destaque por trás do Lago Nordenskjold, é algo que nunca vou esquecer. Idem para a Laguna Capri e o Fitz Roy, a montanha que é visível de todo o lado em El Chaltén e é absolutamente hipnotizante. O Perito Moreno é ainda mais fascinante ao vivo do que nas fotos. Em El Calafate, a surpresa da Laguna Nimez e do bonito jardim da Intendencia Parque Nacional Los Glaciares. Os pinguins-de-magalhães na Isla Magdalena e o Parque del Estrecho, nos arredores de Punta Arenas.

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Depois houve a simpatia da Ada e do Hernán em Ushuaia, e do Arturo em Punta Arenas, donos dos alojamentos em que fiquei naquelas cidades; e do pessoal da Pizzeria Dieguito, também em Ushuaia, onde as empanadas são de comer e chorar por mais. Em El Chaltén, um dos empregados do La Esquina tinha estado algum tempo a trabalhar no Brasil, e por isso fazia questão de falar comigo em português – a somar ao facto de a comida que servem ser excelente.

 

O pior

 

A longuíssima viagem de autocarro (um minibus e um autocarro, mais precisamente) entre Ushuaia e Punta Arenas: mais de 11 horas no total, com demora obrigatória ao cruzar a fronteira da Argentina para o Chile e depois à espera do ferry que faz a travessia do Estreito de Magalhães. Com excepção das viagens para os parques, todos os percursos de autocarro são monótonos – a paisagem é árida e desinteressante, não há nada para ver. A alternativa é dormir, até porque normalmente só há um autocarro por dia, e é preciso acordar cedíssimo para estar no terminal rodoviário a horas.

No Parque Nacional Torres del Paine, o preço absurdo (mais de 25€/pessoa para cada lado) do catamarã que atravessa o Lago Pehoé. Liga Pudeto a Paine Grande, num percurso com a duração de 30 minutos. No mesmo parque, a greve dos funcionários, que interditou alguns percursos e reduziu as hipóteses de caminhada em algumas zonas do parque. Aliás, no Chile havia greves gerais prolongadas em vários sectores da administração pública, com a consequente impossibilidade de visitar certos museus e afins.

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Puerto Natales é, no geral, uma localidade sem grande graça, onde apenas gostei da escultura “Amores de Viento”, na avenida marginal, e da saborosa comida do restaurante El Bote – sobretudo a paila marina, uma sopa tradicional com peixe e marisco que é de comer e chorar por mais.

 

Bagagem

 

Não convém levar muita bagagem. Eu limitei-me a uma mala de cabina e uma mochila normal (onde levava o portátil, a câmara fotográfica, e respectiva parafernália). Ainda assim, nos voos internos foi necessário pagar suplemento para a mala de cabina (o bilhete básico só inclui uma maleta pequena). Quanto aos terminais rodoviários, ficam geralmente à entrada das cidades, e a distância até ao alojamento pode não ser curta. Além disso, esta viagem implica muitas mudanças de transporte, e quanto menos peso for necessário carregar, melhor. Os alojamentos são aquecidos, por isso é fácil enxugar algumas peças de roupa durante a noite. Os alojamentos mais baratos podem nem sempre ter produtos de higiene, ou ter apenas sabonete, portanto há que ter isso em conta.

 

O roteiro, onde fiquei, onde comi

 

Dia 1 – Voo Lisboa-Buenos Aires (companhia: Iberia, com escala em Madrid)

Dias 2 e 3 – Buenos Aires

Dia 4 – Voo para Ushuaia (companhia: JetSmart, 3h30)

Dia 5 – Ushuaia

Dia 6 – Ushuaia - passeio de barco no Canal Beagle até à Isla Martillo (operador: Rumbo Sur, 6h)

Dia 7 – Ushuaia - Parque Nacional Tierra del Fuego (operador: Transporte Gonzalo)

Alojamento em Ushuaia: B&B Los Calafates (recomendo)

Refeições: Pizzeria Dieguito; Doña Lupita; Café Dalí; Panadería Eureka

Dia 8 – Autocarro para Punta Arenas (operadores: Montiel-Transportes Fueguinos + Bus-Sur, mudança em Rio Grande, 11h)

Dia 9 – Punta Arenas - passeio de barco à Isla Magdalena (operador: Solo Expediciones, 5h30)

Dia 10 – Punta Arenas - excursão em minibus ao Parque del Estrecho/Fuerte Bulnes (operador: Turismo Selknam, 5h30)

Alojamento em Punta Arenas: Hostal Fernão de Magalhães (recomendo)

Refeições: Sotito’s; La Luna; Kioscaffee

Dia 11 – Autocarro para Puerto Natales (operador: Bus-Sur, 3h30)

Dia 12 – Puerto Natales - Parque Nacional Torres del Paine (operador: Base Torres, 2h para cada lado, total 15h)

Dia 13 – Puerto Natales

Alojamento em Puerto Natales: Hostel Sendero

Refeições: El Bote

Dia 14 – Autocarro para El Calafate (operador: Marga-Taqsa, 5h45)

Dia 15 – El Calafate - Perito Moreno (operador: Cal-Tur, 2h45 para cada lado, total 8 h, com passeio de 1h no Lago Argentino, na embarcação South Spirit)

Alojamento em El Calafate: Hotel del Glaciar – Libertador (recomendo)

Refeições: La Tablita; Oveja Negra

Dia 16 – Autocarro para El Chaltén (operador: Cal-Tur, 3h)

Dia 17 – El Chaltén (3 trilhos: Mirador del Torre; Mirador Los Cóndores; Mirador las Águilas)

Dia 18 – El Chaltén (1 trilho: Sendero Fitz Roy até à Laguna Capri e ao Mirador Fitz Roy)

Alojamento em El Chaltén: El Kamaruco

Refeições: Kaulem; La Esquina; La Roti Foodstore

Dia 19 – Autocarro para El Calafate (operador: Chaltén Travel, 3h)

Alojamento em El Chaltén: Hospedaje Flores del Sur

Refeições: Libro Bar

Dia 20 – Voo para Buenos Aires (companhia: JetSmart, 1h45)

Dia 21 – Voo Buenos Aires-Lisboa (companhia: Iberia, com escala em Madrid)

 

***

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Sendo verdade que, hoje em dia, mesmo os destinos mais longínquos estão mais acessíveis, e que a tecnologia permite quase unificar todos os países e povos do mundo, criando pontes que nos aproximam e nos tornam cada vez mais parecidos uns com os outros, independentemente das distâncias que nos separam, não deixa de ser verdade que um filme, um livro, uma fotografia, uma reportagem, por melhores que sejam, não conseguem substituir a experiência de sentir um lugar ao vivo. Estar num lugar até aí desconhecido, descobrindo-o eu própria, é sempre emocionante

 

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Outros posts sobre a Patagónia:

Patagónia, terra de contrastes - parte 1

Patagónia, terra de contrastes - parte 2

 

 

Qui | 06.07.23

Diário de uma viagem à Islândia XII

Entre dois continentes

 

O último dia de uma viagem tem sempre, para mim, um sabor agridoce. Por um lado, há aquela vontade de despachar um final já anunciado, colapsar as horas passadas na burocracia de um aeroporto, as filas, a espera, a vontade de que o avião acelere para chegar mais depressa a casa – a casa que é sinónimo de descanso, casulo e território conhecido. Por outro lado, há a tristeza de um período feliz que termina, dias de liberdade longe da rotina e dos horários de trabalho, longe das obrigações e das notícias que nos transtornam, do esforço diário de resolver os problemas e as chaticezinhas que se vão atravessando na minha vida, a vida de uma pessoa vulgar.

 

É por isso que quando tenho algumas horas disponíveis antes do voo de regresso, tento que elas sejam ocupadas com algo de memorável, para que este último dia seja menos estéril e dele fique com uma recordação feliz, não apenas a de um aeroporto e uma viagem de avião. Não é preciso que seja algo de extraordinário; basta-me um passeio num lugar agradável, ver algo de novo, ou revisitar um sítio de que gosto particularmente. E foi também esta a razão pela qual guardámos para a última manhã na Islândia a visita a um local especial – não por ser particularmente bonito, mas por ser uma curiosidade geográfica.

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Dia 12

 

Para a nossa última noite na Islândia tínhamos decidido ficar a uma curta distância do aeroporto. Até à hora do voo só tínhamos disponível a manhã, e queríamos aproveitar o mais possível até ao último minuto. Alojámo-nos em Þorlákshöfn, a uns meros 80 km de Keflavík, na Jonna Guesthouse. A casa fica num bairro tranquilo e o dono, que conhecemos ao pequeno-almoço, é um pescador, além de gerir o alojamento. Simpático e bem-humorado, fez-nos companhia enquanto arranjávamos a nossa comida, colocada à disposição dos hóspedes no balcão da cozinha e num grande frigorífico envidraçado. O quarto tinha espaço suficiente, incluindo mesa e cadeiras para comermos, e a cama era confortável. Gostei sobretudo da informalidade do ambiente.

 

Þorlákshöfn é uma localidade piscatória, e o único porto natural viável na costa sul da Islândia entre Grindavík e Höfn. Pode acolher navios e ferries, e durante muitos anos teve ligação marítima regular com as ilhas Westman, que ficam cerca de 70 km a sudeste. Na maior destas ilhas, Heimaey, ergue-se o vulcão Eldfell, que entrou em erupção em 1973. A totalidade da população teve de ser evacuada para Þorlákshöfn, e muitas dessas pessoas acabaram por ficar definitivamente instaladas na localidade – que, no entanto, tem apenas cerca de 1500 habitantes.

 

Em contraste com a atmosfera quase soalheira de quando tínhamos tomado o pequeno-almoço, deixámos o alojamento sob um céu a ficar pesado e sem nesga de sol, um bocado a condizer com o meu espírito. A vontade de continuar na Islândia era muita, mas o bilhete de regresso estava comprado e não havia volta a dar. Para esticar o passeio, demos uma volta pela localidade, que não difere grandemente da maioria das outras pequenas cidades islandesas. Construções muito espalhadas numa área completamente plana, parece uma espécie de cidade-Lego. As casas têm ar de paralelepípedos de brinquedo, baixas e simples, na sua maioria revestidas a chapa ondulada de cores neutras, uma ou outra em madeira. Quase todas têm jardim à volta, delimitado por arbustos e sebes, muitas delas também com árvores. Há meia dúzia de prédios com dois ou três pisos, e vários edifícios compridos que serão certamente fábricas ou armazéns. Isolada no meio de nada, ergue-se a Þorlákskirkja, a igreja local. Cinzenta como a atmosfera, feita em pedra e betão, e com telhado escuro de metal corrugado, as suas linhas modernas não iludem: foi construída em 1979 e consagrada, no rito protestante, em 1985.

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A Dorsal Mesoatlântica, cordilheira submarina que se estende pelo oceano Atlântico até ao Árctico, não se encontra totalmente submersa, emergindo em alguns pontos na forma de ilhas. Um dos seus locais mais elevados é o Pico, na nossa ilha açoriana com o mesmo nome; outro é o Hvannadalshnúkur, no glaciar Vatnajökull – precisamente na Islândia. A sua formação deve-se à divergência entre placas tectónicas, que estará na origem do afastamento entre os continentes, a um ritmo que se calcula ser de 2 cm por ano. No hemisfério norte, o limite em que as placas tectónicas norte-americana e eurasiática divergem passa pela península de Reykjanes, onde se situam o vulcão Fagradalsfjall (cujas duas erupções recentes ainda estão na memória) e o aeroporto de Keflavík.

 

É exactamente por isso que foi construída nesta península, sobre o vão que mostra nitidamente a deriva continental, a Miðlína – que significa “linha central” e é mais conhecida como Ponte Entre Continentes.

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De acesso exclusivamente pedonal, foi inaugurada em Julho de 2002, e tem uma função simbólica e ao mesmo tempo educativa, chamando a atenção para o facto de as placas tectónicas norte-americana e eurasiática estarem continuamente a afastar-se uma da outra, um dos fenómenos geológicos mais importantes do nosso planeta, pese embora tão lento que muita gente certamente o desconhece. Com 18 metros de comprimento, a ponte está suspensa a 6 metros de altura sobre um desfiladeiro de areia cinzenta, delimitado por formações rochosas mais elevadas. Construída em metal, com protecções laterais elevadas para evitar quedas e um piso gradeado para deixar ver o chão mais abaixo, cada uma das suas extremidades está apoiada num continente diferente – geologicamente falando.

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Uma placa assinala o centro da ponte, local onde simbolicamente podemos sentir-nos estar com um pé na Eurásia e outro na América. Junto a cada entrada, um painel dá as boas vindas à respectiva placa tectónica, descrevendo o fenómeno e prestando informações sobre cada uma. Um explica que a placa euro-asiática é a maior do planeta, que nela se encontram algumas das formações rochosas mais antigas da crosta terrestre, e que é pressionada a sudeste pelas placas indiana e australiana, as quais derivam para norte. Esta colisão dá origem aos Himalaias. O painel do lado norte-americano refere que enquanto a separação entre África e América do Sul começou há 135 milhões de anos, a da Eurásia e América do Norte só teve início há 65 milhões de anos.

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O primeiro nome dado a esta estrutura foi Ponte de Leif, o Sortudo. A intenção foi homenagear Leif Erikson, que viveu entre finais do século X e princípios do Século XI e terá sido – segundo rezam as sagas islandesas – o primeiro europeu a pisar solo americano, cerca de 500 anos antes de Colombo ter reclamado para si a descoberta do continente. Leif era norueguês (na altura, a ilha que é hoje a Islândia pertencia à Noruega) e terá chegado a terras americanas por volta do ano 1000, liderando uma expedição que acabou por estabelecer uma base de inverno na região a que chamaram Vinlândia e se presume ser a actual ilha da Terra Nova.

 

Apesar de estar num local afastado de tudo, a ponte é bastante popular – e não escapa à praga dos cadeados que assola as pontes metálicas que encontramos por essa Europa fora.

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O resto da manhã foi ocupado com tarefas comezinhas: atestar o depósito do carro, comprar alguma coisa para comer antes do voo, e devolver o Dacia Duster que tinha sido nosso companheiro de aventuras durante aquelas quase duas semanas. Os voos de regresso (com escala em Frankfurt, à falta de ligação directa a Lisboa) foram normais e sem história, mas cheguei a Portugal já com saudades da Islândia.

 

Escrevo este último post quase três anos volvidos sobre a viagem, por isso posso dizer com toda a certeza que esta road trip pela Islândia foi uma das viagens mais marcantes que fiz até hoje. Vários factores contribuíram para isso, e um dos mais importantes terá sido sem dúvida o facto de ter sido em 2020, o primeiro ano da pandemia, quando a vaga inicial deu tréguas e alguns países começaram a abrir as suas fronteiras. O privilégio de viajar sem restrições – sem uso obrigatório de máscara, nem quaisquer regras impostas de distanciamento social – depois de um período tão complicado e assustador, e o facto de o país ter na altura um turismo apenas residual (por comparação com o que costuma ter em época alta), pesaram muito na impressão geral com que fiquei da viagem. Um mês de Julho algo frio mas praticamente sem chuva, com dias intermináveis e um céu “nocturno” absolutamente surreal, contribuiu para o meu encantamento.

 

Outro factor não menos importante foi a simplicidade e simpatia dos islandeses. Apesar de reservados e não sendo habitual desfazerem-se em sorrisos, são corteses q.b., eficientes e amigáveis para os visitantes. Sem mostrarem ostentações desnecessárias, nota-se que há na generalidade um grande nível cultural e de desenvolvimento, fruto do tipo de educação que dão às crianças e de terem ensino gratuito praticamente até à Faculdade. Na Islândia prezam-se as tradições, a língua e a cultura, e a taxa de leitura no país é elevada. Aliás, é bem famoso o seu hábito de oferecerem livros no Natal, costume que até tem direito a um nome específico: jólabókaflóð (basicamente, “inundação de livros no Natal”).

 

Tudo isto, somado a alguns pormenores de ordem pessoal e à beleza fora de série do país, fizeram com que este destino, habitualmente qualificado “de sonho”, tenha não só cumprido esta expectativa, como até a tenha ultrapassado. É claro que nem tudo foram coisas boas, até porque não existem países sem defeitos. Mas na Islândia o excepcional superou o menos bom.

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De há uns anos para cá, sinto cada vez mais a necessidade de que as minhas viagens tenham uma componente forte de ligação à natureza. Continuo a apreciar a vida das cidades e a sua vertente cultural, mas tenho uma atracção maior pelos ambientes mais rurais e, sobretudo, por aqueles em que o Homem nada (ou pouco) interferiu. É neles que me sinto realmente em liberdade e onde consigo carregar melhor as minhas energias. Os dias que passei na Islândia foram, neste aspecto, compensadores muito além do que tinha imaginado – e por isso, para mim, esta viagem tocou a perfeição.

 

←Dia 11 da viagem: Na paisagem irreal de Landmannalaugar

 

O roteiro e várias informações práticas sobre a Islândia estão aqui: Coleccionar paisagens surreais na Islândia

 

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