Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Qua | 22.02.23

Ruínas (e o meu fascínio por lugares abandonados)

 

Mudas, contam uma história, às vezes misteriosa, outras polémica, nem sempre fácil de descobrir e frequentemente alimentada por boatos. Inertes, pedem criatividade para imaginar como seriam quando nelas havia vida. Já tiveram um propósito, talvez até mais do que um, do qual foram esvaziadas. Com sorte, servem agora algum outro, e com mais sorte ainda talvez um dia voltem à vida. São ruínas, não aquelas seculares e monumentais que se tornaram ímanes turísticos, nem as desenterradas por escavações arqueológicas, mas sim as que resultaram do simples abandono de um local, levando à sua degradação.

 

Se a memória não me falha, as primeiras ruínas deste género que fui propositadamente ver foram as da antiga Mina de São Domingos. Nessa altura, na era pré-Internet, ainda eram um local quase desconhecido e pouco visitado, e fiquei impressionada com a beleza alienígena do lugar – que continua a ser, ainda hoje, um dos meus sítios preferidos em Portugal. Junto à aldeia, agora mais famosa por ter uma das melhores praias fluviais da Europa, há algumas ruínas de edifícios usados em apoio exploração mineira do depósito pirítico de São Domingos (desenvolvida até 1966 pela empresa britânica Mason & Barry), nomeadamente das antigas oficinas ferroviárias. Há também uma enorme cratera cheia de água carregada de minérios, exposta entre camadas de rocha colorida. Mas o local de que mais gosto encontra-se poucos quilómetros mais a sul, na Achada do Gamo. O percurso até lá faz-se entre árvores, de um lado, e terra árida do outro, por vezes matizada de cores invulgares, resultantes da interacção dos resíduos minerais ainda presentes no solo. A meio do caminho, na margem oposta de um curso de água, vê-se o que resta do centro de britagem e queima da Moitinha. Depois surgem ao longe duas torres com aspecto pós-apocalíptico, e de repente somos como que teletransportados para um qualquer planeta sem vida: terra nua, num cinzento que vai do quase branco até ao negro-carvão; edifícios meio desfeitos, formas de um puzzle geométrico recortado contra um céu imaculado, paredes esboroadas, com cabos de metal oxidado que se projectam das suas entranhas como tentáculos de um animal intergaláctico moribundo, pedras manchadas pela ferrugem. E um silêncio quase total, apenas cortado pelo som da brisa que passa ou por um qualquer piar longínquo. Em todas as vezes que lá regressei, mesmo sem o factor surpresa, a emoção foi sempre a mesma: senti-me simultaneamente fascinada e comovida.

Mina de São Domingos.JPG

Se tivesse conhecido este lugar quando a mina se encontrava em funcionamento, será que teria sentido o mesmo? Tenho sérias dúvidas. Máquinas em movimento, fumos, barulho, pessoas a trabalhar em condições que talvez não fossem as melhores… nada disso contribuiria para o que é agora a beleza do lugar. E aquilo que mais me comove é precisamente a fragilidade do que terá sido em tempos um grande empreendimento – fragilidade tóxica, é certo, cujos efeitos ainda perduram mesmo depois de tantas décadas de inactividade; mas também uma prova de que, se deixadas ao abandono, mesmo as maiores obras acabam por desaparecer, desgastadas pelo ar, pela água, pela terra. Tal como nós, seres humanos. Estes lugares arruinados são o espelho da nossa própria fragilidade e irrelevância.

 

Outro local que contribuiu para despertar o meu interesse por ruínas e pela sua história é o Bairro do Quelho, em Salzedas. Desta vez foi uma descoberta por puro acaso, também há já bastantes anos quando, depois de uma visita ao Mosteiro, entrei por uma ruazinha do bairro que está ao lado. Os edifícios que ficam na periferia estão recuperados e habitados, mas no coração do Bairro do Quelho existe uma zona meio arruinada, com ruelas labirínticas entre casas estreitas de pedra e madeira, com dois ou três pisos em altura, algumas unidas por alpendres suspensos, com a base feita troncos robustos. Há paredes forradas com escamas de ardósia, redes de arame que por trás de varandins toscos, janelas sem vidros e portas descaídas. É como se entrássemos no cenário de um filme passado em época medieval, um portal para o passado, mas um passado em que não há gente nem animais, apenas restos decadentes do que terá sido um bairro onde as pessoas viviam em estreita comunhão.

O passado do Bairro do Quelho, percebi-o entretanto, está envolto em mistério e polémica. Existe a teoria romântica de que terá sido uma judiaria, baseada em inscrições supostamente de simbologia judaica; outros defendem que é simplesmente um bairro de origens medievais, nascido em torno do Mosteiro, como tantos outros. O mistério adensa-lhe o encanto, e será certamente aproveitado para publicidade turística quando um dia for totalmente recuperado – se o for (sendo que a alternativa, a destruição para construir qualquer coisa sem graça, é bem menos desejável).

 

Em anos mais recentes, quando me interessei pela história dos avieiros e pela sua cultura, descobri a aldeia do Patacão. Os avieiros do Tejo, descendentes dos pescadores de Vieira de Leiria que procuravam neste rio o seu sustento durante os meses invernios, sempre viveram em aldeias minúsculas, muito isolados das vizinhas comunidades rurais. Nos anos 80 ainda existiam várias dezenas destas aldeias avieiras nas margens do Tejo, mas actualmente restam muito poucas. Algumas desapareceram totalmente, outras foram absorvidas pelos núcleos populacionais adjacentes, e outras estão em ruínas. O Patacão faz (infelizmente) parte deste último grupo. Com acesso a partir da vila de Alpiarça, não é fácil dar com o que resta dos dois núcleos de antigas casas de avieiros. Erguidas sobre pilares para sobreviverem às inundações, como é habitual nestas comunidades, o primeiro grupo alinha-se ao longo de um valado, junto à estrada de acesso a uma praia fluvial selvagem, e passa completamente despercebido a quem não souber da sua existência. São sete casas, meio escondidas pela vegetação que já quase as cobre completamente, descoloridas e esventradas, em que a madeira se mistura com a telha, o tijolo e a chapa de zinco – uma casca frágil sem nada no seu interior. Poucas centenas de metros mais à frente, do lado direito da estrada de terra batida que leva à praia, um grupo de árvores abafa mais duas ou três casas, também arruinadas.

23 Patacão.jpg

Apesar de durante anos terem sido feitas campanhas de limpeza para evitar que ficasse totalmente em ruínas, esta aldeia avieira acabou por cair no esquecimento. Rodeadas por terrenos cultivados, no sossego da planície ribatejana, com apenas uma linha de choupos perfilados ao longe a denunciar a existência do Tejo, de cada vez que lá passo as casas estão menos visíveis, mais engolidas pela vegetação, e mais degradadas. A natureza vai fazendo o seu trabalho, dissimulando-as na paisagem, e não tardarão muito a ficar completamente invisíveis. É mais um pedacinho da nossa cultura que desaparece.

 

Outra aldeia, também completamente desabitada e em ruínas mas que – espero eu! – não parece ir ter o mesmo fim, é Drave. A esta aldeia onde já não vive ninguém em permanência desde o ano 2000, situada no fundo de um vale entre três serras e invisível a partir das estradas que serpenteiam em redor, só se chega a pé. Chamam-lhe “aldeia mágica”, e é verdade que tem o poder de enfeitiçar quem se decide a conhecê-la, apesar do seu acesso difícil. Talvez seja este poder que faz com que a sua capela e várias casas ainda se mantenham de pé, ou talvez (mais provavelmente) isso se deva ao facto de Drave estar desde 1995 sob a protecção do Corpo Nacional de Escutas, sendo desde 2003 a Base Nacional dos Caminheiros, (que passou a ser designada por Drave Scout Centre a partir de 2016). Estes escuteiros implementaram um projecto de recuperação de algumas casas e realizam regularmente actividades na aldeia.

Drave 3.JPG

Não há electricidade, água canalizada ou gás, não há carros nem motas, e a probabilidade de encontros com outras pessoas é reduzida. Este é sem dúvida o maior atractivo de Drave, que se tornou uma espécie de Meca para quem gosta de caminhar na natureza – outra das razões para esta aldeia, apesar de desabitada, não estar abandonada. O ambiente é de tranquilidade total e sabe bem passear por entre as suas casas de pedra escura, umas ainda quase intactas, outras já a caminho da ruína completa, espreitar para dentro da capelinha, branca e bem cuidada, piquenicar junto ao ribeiro – onde nem falta uma pequena cascata – ou apenas vegetar no prado verde que ocupa uma das encostas (e parece coisa de filme).

 

Preservar a memória das aldeias que ficam desabitadas é sempre um desafio, mas qualquer que seja a solução encontrada, será sempre melhor do que o seu desaparecimento completo. Na Galiza, em As Pontes de García Rodríguez, uma exploração mineira de lignito causou o esvaziamento de várias aldeias limítrofes, agravado pela instalação em Vilavella de uma enorme central térmica – por sinal, a maior de Espanha, onde se destaca a gigantesca chaminé com 356 metros de altura, o que faz dela a construção mais alta do país e a chaminé com maior volume no mundo. Ao lado desta aparatosa central térmica, qual David junto a Golias, aninham-se três casas desabitadas e semi-recuperadas, parcialmente invadidas pela vegetação, um pequeno espigueiro, um cruzeiro e uma igreja.

Vilavella (7)

Esta incongruência arquitectónica tem uma razão de ser. Com o encerramento da exploração de lignito em 2007, foi decidido que a mina e a escombreira seriam inundadas e transformadas num lago artificial, agora parcialmente utilizado como praia fluvial. No âmbito deste processo de revitalização da área, foram também reabilitadas algumas construções rústicas que ainda subsistiam junto à depuradora, supostamente destinadas a um futuro núcleo museológico das peças arqueológicas da mina. No entanto, nesta altura o único edifício ainda visivelmente utilizado é a igreja, que é de origem medieval, e mantém-se a incógnita do que acontecerá aos edifícios sobreviventes da aldeia.

 

Por vezes, a solução mais ou menos temporária encontrada para alguns destes lugares degradados, ou mesmo abandonados, é usar a sua decrepitude como atracção turística. Num mundo em que é constante a busca da novidade, do que é diferente ou até mesmo excêntrico, estes ambientes “estranhos”, se devidamente publicitados, suscitam a curiosidade e transformam-se em fonte de rendimento.

 

Alguns são usados como espaço de diversão, como é o caso dos ruin bars de Budapeste, uma ideia já replicada em muitas outras cidades. O Szimpla Kert, o mais famosos destes bares do Distrito VII de Pest, ocupa o edifício de uma antiga fábrica e, no seu interior, o estado decadente das paredes grafitadas condiz com a acumulação de objectos kitsch ou reutilizados que servem de decoração, à mistura com plantas, mesas e bancos desirmanados, num labirinto psicadélico colorido que à noite se enche de música, projecções, muito barulho e gente em constante movimento.

63 Budapeste.jpg

Também apelativos, por motivos e para fins diferentes, são os cenários cinematográficos abandonados. Um dos exemplos mais antigos, e ponto de paragem obrigatório para quem visita o deserto tunisino mais interior, quase junto à fronteira com a Argélia, é o cenário do primeiro filme da saga Guerra das Estrelas. Fica nas dunas de Mos Espa, entre Nefta e o Chott Chtihatt Sghat, e tive a sorte de o visitar quando ainda não tinha sido invadido pelos vendedores ambulantes habituais em todos os pontos turísticos mais famosos. Foi durante uma louca e muito divertida excursão num 4x4 possante, cujo condutor galgava dunas a toda a velocidade, com paragens repentinas nas descidas abruptas, em que o veículo ficava quase na vertical e nós em risco de aterrar no pára-brisas, se não estivéssemos presos pelos cintos. Como anticlímax, no lugar onde está instalado o cenário não havia mais ninguém além de nós, e não se ouvia um único som a não ser o dos nossos passos sobre a areia. Vistos de longe, os pequenos edifícios – largamente inspirados na arquitectura tradicional dos ksars da região de Tatouine – confundem-se com o ambiente, e só as portas pintadas de azul-acinzentado se destacam ligeiramente nos brancos e ocres da paisagem. Isso e as formas estranhas de algumas “esculturas” vanguardistas que permanecem no local, agora transformado em mais uma das curiosidades que alimentam a indústria turística da Tunísia.

Mos Espa 3.jpeg

Menos visitado e muito menos famoso, até porque o filme para o qual foi construído nunca chegou a ser rodado, é o cenário de uma aldeia viking na Islândia. Fica na região sudeste, entre o mar e a Vestrahorn (uma das duas montanhas mais fotografadas do país), e foi criado em 2010 para um filme islandês. Está situado numa propriedade privada, que também é alojamento local, e é preciso pagar bilhete para o visitar – o que prova que um dos trunfos de uma indústria turística bem conseguida é saber aproveitar até mesmo o que não tem qualquer valor histórico. Ao longe, o sítio em si não parece muito prometedor: uma longa paliçada cinzenta que mal se vê, perdida na planície aos pés da magnífica montanha que é a Vestrahorn, cujos picos rochosos abruptos atingem mais de 450 metros de altura. Mas quando passamos para o lado de lá da cerca de madeira, a opinião muda. As casas estão bem recriadas – várias são inteiramente feitas de toros de madeira, outras têm portas e ombreiras com motivos esculpidos, e os telhados foram recobertos de erva. A paliçada tem estacas irregulares e aguçadas, há escadas e caminhos de madeira rudimentares e treliças feitas com finos ramos de árvore, e nem sequer falta uma masmorra, fechada com um forte gradeamento de metal. Com uma ou outra excepção, as casas que estão abertas não têm nada no interior, ou só têm restos de madeira, e pilares e escoras para suportar as paredes e os telhados. Dá para perceber que o cenário só se destinava mesmo a ser usado para filmar exteriores.

370 Diário Islândia - Aldeia Viking.JPG

Por estranho que pareça, o local acaba por ser fascinante, assim como que uma espécie de parque de aventuras para adultos, entre o primitivo e o arruinado. Subi e desci, espreitei pelas aberturas e pelas janelas, entrei por um lado e saí por outro, fotografei até à exaustão, e quando dei por mim já se tinha passado quase uma hora. E gostei.

 

Não é incomum encontrar grandes edifícios cuja ruína até me faz doer a alma. Um dos que me intrigou durante bastantes anos fica perto de Sortelha, pouco antes de começarmos a subir por entre os impressionantes rochedos graníticos da serra: o antigo Hotel da Serra da Pena, mais conhecido por Termas de Radium. Construído quando ainda se pensava que os efeitos do rádio eram benéficos para a saúde e que as águas que possuíssem este elemento eram, consequentemente, boas para tratar toda uma panóplia de males físicos, este hotel requintado podia hospedar até 150 pessoas e possuía instalações termais equipadas com tudo o que era imprescindível para os tratamentos recomendados na época, que incluíam a ingestão de água – obviamente radioactiva – na quantidade de um litro por dia. Esta água era também engarrafada e vendida para o exterior. Após a constatação de que, afinal, as águas radioactivas da Serra da Pena não eram a panaceia apregoada, mas antes o inverso, a estância termal do hotel foi encerrada em 1945. O hotel continuou a ser explorado, passando por vários donos, mas os seus dias estavam contados. Vendido o recheio e deixada a propriedade ao abandono, o seu proprietário actual adquiriu-a em leilão e é português. Existem vagos planos de recuperação do local, mas nunca saíram da gaveta.

Termas de Radium 12.jpeg

Enquanto isso, o edifício continua a resistir como pode às inclemências do tempo, sem perder a sua imponência. Algumas das suas paredes, construídas com grandes paralelepípedos de granito, mantêm-se pé, e no alto, em destaque, ainda há colunas rematadas por pináculos e frisos recortados a evocar ameias. Todo o complexo é um jogo de volumes diferentes, cada parte do edifício com o seu próprio formato e características, mas o efeito final continua harmonioso, mesmo faltando-lhe já muitos dos seus elementos essenciais. Afastado da estrada principal e tendo como cenário de fundo os penedos graníticos da serra e alguns pinheiros, o lugar é silencioso e transmite paz, apesar do seu passado sombrio e do seu aspecto de lugar tenebroso, quando visto de longe. É mais um daqueles lugares que nos relembra que tudo neste mundo é transitório e não podemos dar nada por garantido, nem sequer aquilo que hoje se considera uma verdade inquestionável. O tempo e o (suposto) progresso encarregam-se de mudar a nossa perspectiva sobre o que nos rodeia e a forma como vivemos, e são implacáveis para o que (e quem) cai em desgraça.

 

Bem mais visível e popular, apesar das sucessivas (e infrutíferas) tentativas de o interditar ao público, o edifício arruinado que em tempos foi o Hotel Monte Palace, na ilha açoriana de São Miguel, tem uma história prosaica. Projecto megalómano de luxo numa época em que o turismo nos Açores ainda era algo incipiente, teve uma fase inicial acidentada e uma vida curta: apenas esteve aberto durante cerca de 18 meses, nos anos de 1989 e 1990. O motivo do encerramento foi, obviamente, a falta de rentabilidade financeira. O seu trunfo era (e continua a ser) a localização. Situado na Vista do Rei, o miradouro panorâmico sobre a Lagoa das Sete Cidades, e elevado vários metros em relação à estrada, é uma espécie de ninho de águia com uma visão de 360° sobre toda a parte oeste da ilha. O tempo não tem sido generoso para com ele, nem as pessoas. Sem vigilância há muitos anos, não é preciso grande engenho para conseguir entrar no recinto murado que o rodeia, e os visitantes são frequentes – mais, certamente, do que os que teve na sua diminuta existência como hotel. Os 88 quartos que oferecia, a par de salas de conferência, restaurantes, bar, salão de jogos e discoteca, nunca atraíram tanta gente quanto atraem agora as suas ruínas. Paredes verdes de musgo, grafitadas, lixo, entulho e água das chuvas, a estrutura vai resistindo (a qualidade da construção parece justificar pelo menos parte dos milhões de escudos investidos), e permite aos “salteadores” mais afoitos vistas fabulosas sobre algumas das belezas de São Miguel – com a vantagem de não ter à frente as dezenas de cabeças dos turistas que habitualmente enchem o miradouro oficial da Vista do Rei. Fosse a entrada no edifício cobrada, mesmo que a preços módicos, se calhar os seus donos já teriam um mealheiro jeitoso para ajudar a sua reconstrução…

Monte Palace 1.jpg

Destino diferente tiveram as roças de São Tomé. Pedra basilar sobre a qual assentou durante vários séculos a economia da ilha, primeiro com a cultura da cana-de-açúcar e depois com as de cacau e café, as grandes roças santomenses eram uma espécie de cidades em miniatura, e praticamente auto-sustentáveis. Além da componente habitacional e dos edifícios administrativos ou dedicados às várias etapas da produção, incluíam estruturas destinadas aos cuidados de saúde, à educação e ao culto religioso, bem como oficinas, pequenas fábricas e outras comodidades de usufruto comunitário. Nacionalizadas em 1975, após a independência, passaram a ser administradas pelo Estado, mas a sua organização e os modos de produção pouco se alteraram. Uma “reforma agrária” nos anos 90 e a ausência de modernização e manutenção levaram a um progressivo desinteresse pela produção agrícola, e a que muitas das estruturas existentes fossem esvaziadas das suas funções e deixadas à sua sorte.

Agostinho Neto 2.JPG

Arruinadas, mas não desabitadas, as roças de São Tomé continuam a abrigar muitas centenas de pessoas, e cada uma delas constitui ainda um núcleo coeso e semi-fechado dentro do território, com estrutura social e organizativa própria. Algumas foram parcialmente reabilitadas, para fins produtivos ou turísticos, mas na sua maior parte impressionam sobretudo pelos grandes edifícios arruinados que são seu ex libris, como sucede nas roças Agostinho Neto e Água Izé, duas das maiores, mais antigas e (em tempos) mais desenvolvidas do país. Em ambos os casos, as construções visualmente dominantes são os hospitais, ruínas do que foram nos tempos áureos da exploração do cacau, agora com a pintura a descascar, os vidros partidos ou ausentes, invadidas por plantas, porções do telhado desaparecidas ou a cair. Algumas partes parecem habitadas, outras são recreio de miúdos ou de cabras e porcos, num lugar onde intimidade parece ser palavra desconhecida. À volta, espalham-se habitações de todas as espécies, por vezes não passando de um amontoado caótico de madeira e chapa ondulada, outras um aproveitamento das antigas estruturas das sanzalas e dos edifícios de alvenaria que em tempos abrigaram proprietários, capatazes e trabalhadores qualificados, quase todas em mau estado de conservação. A pobreza gritante dos edifícios mimetiza a das pessoas que ali vivem, no país que é o segundo mais pequeno de África e onde o PIB per capita actualmente não chega aos 1700 euros. E contrasta com a intensidade da vida que fervilha dentro dos seus limites. Antes motor de desenvolvimento económico, marco histórico importante e símbolo cultural e social, hoje como ontem, as roças continuam a ser o retrato do que é a vida em São Tomé.

 

O tempo, esse conceito abstracto que criámos para compartimentar a nossa existência, anda de braço dado com a deterioração até mesmo daquilo que não tem vida tal como a concebemos. A natureza tende a reclamar o que é seu por direito, e tudo o que não é cuidado acaba por definhar ou ser engolido por ela. Cada ruína, cada lugar abandonado, mesmo que tenha pouca importância arquitectónica, conta uma história, ensina-nos sempre alguma coisa – e alerta-nos para a nossa própria transitoriedade.

 

(Este artigo foi publicado pela primeira vez no blogue Delito de Opinião)

 

Já seguem o Viajar Porque Sim no Instagram? É só clicar aqui ←

 

Guardar no Pinterest

Ruínas (e o meu fascínio por lugares abandonados)

Ter | 07.02.23

Diário de uma viagem à Islândia XI

Na paisagem irreal de Landmannalaugar

 

Quando comecei a preparar esta viagem e fiz a lista dos lugares que queria obrigatoriamente visitar, Landmannalaugar foi dos primeiros que incluí. E decidimos reservar a maior parte um dia inteiro para fazer uma caminhada por esta região tão especial.

486 Landmannalaugar.JPG

 

Dia 11

 

Com a viagem quase no fim, e assim em jeito de despedida em grande, preparámo-nos para passar o dia em Landmannalaugar. A logística incluía, obviamente, comida e água para várias horas, e agasalhos para todas as eventualidades – mesmo no Verão, o clima na Islândia é muito imprevisível e varia consoante a zona e ao longo do dia. Flúðir, onde tínhamos ficado alojados nessa noite, fica a cerca de 120 km de distância, que se converteram em quase duas horas de viagem pois uma parte do trajecto é feita em estradão sem asfalto.

487 Landmannalaugar.JPG

O nome Landmannalaugar – pronuncia-se [ˈlantˌmanːaˌlœiːɣar̥] – significa “piscinas do povo” e deve-se ao facto ser uma área com nascentes de água quente que, tal como em muitos outros locais da Islândia, funcionam há séculos como lugares públicos para banho. Esta área, protegida desde 1979, faz parte da Reserva Natural de Fjallabak e é uma das mais procuradas para quem gosta de caminhar. Aliás, é aqui que começa o Laugavegur, um trilho de 55 quilómetros que liga Landmannalaugar a Thórsmörk (uma região que queríamos ter visitado na véspera, mas tivemos de desistir da ideia). O Laugavegur demora 3-4 dias a ser percorrido e foi considerado (pela National Geographic) um dos melhores trilhos pedestres do mundo. Ao longo deste trilho existem abrigos para pernoitar, mas esgotam com muita facilidade e há que reservá-los com bastante antecedência. É também possível fazer o percurso em grupo organizado, com um guia – uma opção mais segura para quem tiver pouca experiência em caminhadas de montanha.

 

Quem vai de carro pode optar entre dois parques de estacionamento. O mais próximo do início dos trilhos fica na área onde se encontra o Centro de Informação Turística, mas para lá chegar é necessário atravessar a vau um pequeno rio com algum caudal, suficiente para que a água quase chegue ao capô de um Dacia Duster. Felizmente, antes do rio há uma outra zona onde é permitido estacionar, ao lado da estrada, a apenas a umas poucas centenas de metros de distância, e foi aqui que deixámos o nosso carro. Depois seguimos pela planície, cruzando pequenas pontes de madeira e observando os condutores mais intrépidos (ou mais habituados) que se lançavam sem hesitação para as águas do rio. Ali ao lado, indiferentes à movimentação de carros e pessoas, vários carneiros e ovelhas pastavam tranquilamente, aproveitando a abundância de erva e a liberdade (em Setembro os donos recolhem-nas, para que passem o Inverno abrigadas, e só voltam a deixá-las à solta em Maio, após o nascimento das crias).

489 Landmannalaugar.JPG

488 Landmannalaugar.JPG

492 Landmannalaugar.JPG

O trilho mais simples para quem só tem algumas horas disponíveis é o percurso circular Laugahraun-Graenagil. São cerca de 5,5 km com um desnível de 200 metros, que se percorrem com calma em duas horas e meia. O início fica entre o Centro de Informação Turística e a piscina natural de água quente: um simples carreiro de terra batida por muitos pares de botas, subindo por entre entre rochas negras com borrões de musgo verde, que se projectam como espinhos na crista da elevação.

Chegámos a uma espécie de planalto ondulante, repleto de lava petrificada, e foi como se de repente tivéssemos entrado numa pintura – talvez num quadro de Thomas Moran ou numa gravura de Hokusai. À volta de nós, um mar de montanhas ondulando umas por trás das outras, com bossas arredondadas e suaves, uma ou outra mais bicuda aqui e ali, coloridas em dégradés de verdes, em cinzas declinados até ao quase negro, em tons quentes entre o vermelho-ferrugem, o rosa-velho e o amarelo-esbranquiçado, passando por todos os ocres e castanhos que possamos imaginar. Havia manchas de neve reluzente aninhadas entre os declives, e as nuvens claras que cobriam o céu por completo lançavam um brilho difuso sobre toda a paisagem. Mais uma vez, senti-me invadida por uma sensação de irrealidade, o meu cérebro a recusar-se a processar o que via como sendo algo verdadeiro, maravilhada e ao mesmo tempo incrédula. E ainda hoje, quando olho para as fotografias que tirei (e que não têm nenhum tipo de edição), tenho dificuldade aceitar que reproduzem aquilo que realmente vi.

495 Landmannalaugar.JPG

Este cenário dramático deve-se à presença de riólitos, uma rocha que é o equivalente vulcânico do granito, com uma composição onde predominam o quartzo e a sílica, responsáveis pela variedade de cores. A presença de outros minerais, como o ferro e o enxofre, adiciona ainda mais colorido ao ambiente. Resultando de milhares de anos de actividade vulcânica, Landmannalaugar é uma área geologicamente rara e inquestionavelmente bela – um daqueles lugares em que não podemos duvidar de que a natureza sabe o que faz, nem deixar de sentir preocupação pelo futuro da Terra.

500 Landmannalaugar.JPG

Continuámos pelo trilho que atravessa o campo de lava de Laugahraun, formado após uma erupção que ocorreu em 1477, e depois começámos a descer. Nesta parte do percurso as rochas têm um aspecto mais suave, com a pedra meio desgastada pela acção dos elementos. Aos pés de um manto de neve ainda não derretido, passámos por um pequeno lago de água meio transparente, meio azul-turquesa pelo efeito óptico da neve submergida. Chegámos por fim ao vale, uma enorme área completamente plana, rodeada pelas montanhas multicoloridas – um gigantesco anfiteatro natural criado sabe-se lá por que deuses bem-humorados. As pernas agradeceram o terreno plano, e o fôlego também.

501 Landmannalaugar.jpg

502 Landmannalaugar.JPG

503 Landmannalaugar.JPG

Do outro lado do vale esperava-nos nova subida, esta mais intensa. À esquerda, o Laugahraun; à direita, uma encosta abrupta, composta sobretudo por gravilha, feita de riscas coloridas que faziam lembrar uma manta tradicional: a Brennisteinsalda, uma montanha a que chamam “onda de enxofre” e cujo cume é acessível por um outro trilho pedestre. Mais à frente, fumarolas escapavam-se das encostas e do solo à nossa volta, com o já habitual cheiro activo destas manifestações vulcânicas. Aqui o percurso está delimitado por cordas presas em estacas, um aviso nítido de que não será boa ideia sair do caminho marcado.

504 Landmannalaugar.JPG

507 Landmannalaugar.jpg

Voltámos a entrar no campo de lava, que neste trecho é mais agreste: rocha com bicos e recortes agressivos ou obsidiana negra vidrada, com o trilho a tornar-se mais estreito, irregular, e mais lento de percorrer. Em caminhos deste tipo, um mero desequilíbrio pode dar origem a uma queda com consequências sérias.

508 Landmannalaugar.JPG

511 Landmannalaugar.JPG

Ao fim de uns bons 20 ou 25 minutos, nova mudança de cenário: chegámos ao desfiladeiro Graenagil, dominado pelo cinzento-esverdeado da montanha Blahnúkúr. Aqui o trilho começa a descer suavemente, contornando a orla sinuosa do Laugahraun até chegar ao nível do pequeno rio que corre no fundo do desfiladeiro. É uma zona mais fácil de percorrer do que a anterior, e gostei bastante deste trecho do percurso. Como já tínhamos esgotado uma parte das nossas reservas de líquidos, decidimos encher uma garrafa com água do rio, que parecia fresca e convidativa para beber. Só que… fresca estava, sem dúvida, mas sabia demasiadamente a enxofre. Não ficámos fãs, e acabámos por deitar fora o resto.

512 Landmannalaugar.JPG

515 Landmannalaugar.JPG

O desfiladeiro termina na vasta planície onde se encontram o Centro de Informação e o acampamento, e por esta altura estávamos praticamente no fim do percurso. Eram quatro da tarde e o céu continuava cinzento. O sol não tinha sequer espreitado entre as nuvens durante todo o dia, mas não estava demasiado frio (à volta de 12°C, o que até tinha ajudado a não aquecer demasiado durante a caminhada).

 

Quem gosta de acampar e quiser passar mais tempo na região tem a possibilidade de instalar uma tenda ou estacionar uma autocaravana na área de campismo que fica junto ao edifício do Centro de Informação Turística. Outro edifício proporciona alojamento em dormitórios (que necessitam de reserva prévia, sempre com muita antecedência), instalações sanitárias com duches e uma cozinha comunitária. Não há bomba de gasolina, e a única “loja” é um grande autocarro verde, que vende bebidas e alimentos fáceis de transportar numa caminhada, além de produtos básicos, como protector solar ou repelente de insectos.

E há sempre a hipótese de aproveitar a piscina natural de água quente que fica antes da entrada do Laugahraun. Com temperaturas entre 36 e 40°C, é praticamente como estar na banheira da nossa casa – apenas com a “simples” particularidade de ter de a partilhar com umas quantas dezenas de pessoas.

520 Landmannalaugar.JPG

Para quem não tiver veículo 4x4 (obrigatório para transitar nas estradas F), há vários operadores turísticos (por exemplo a Reykjavík Excursions) que disponibilizam um autocarro diário entre Reiquiavique e Landmannalaugar, saindo da capital de manhã bem cedo (são mais de quatro horas de viagem para cada lado) e regressando a meio da tarde. E, claro, há sempre a hipótese de ir em excursão organizada – se bem que, na minha opinião, este passeio seja idealmente para fazer ao ritmo de cada um, e com tempo suficiente para apreciar o que vemos.

 

Landmannalaugar é um dos vários lugares na Islândia em que me senti ainda mais minúscula e insignificante do que o habitual, perante a natureza em bruto, intocada, que felizmente ainda subsiste no nosso planeta. E poder visitá-los é um privilégio, pelo qual me sinto sempre grata.

521 Landmannalaugar.JPG

O dia seguinte seria o do regresso a casa, com voo marcado para o início da tarde, por isso tínhamos decidido passar a noite já mais perto de Keflavík. Ainda iríamos ter tempo para um curto passeio durante a manhã, mas no percurso de 170 km até Þorlákshöfn, a localidade onde fica o alojamento que tínhamos reservado, começou a instalar-se uma certa nostalgia. Valeu-me a paisagem para distracção – pois, contrariamente ao que possa parecer, viajar nas estradas islandesas é tudo menos monótono, e há sempre alguma surpresa à nossa espera.

522 Landmannalaugar.jpg

←Dia 10 da viagem: O sul e o Círculo Dourado

Dia 12 da viagem: Entre dois continentes

 

O roteiro e várias informações práticas sobre a Islândia estão aqui: Coleccionar paisagens surreais na Islândia

 

Já seguem o Viajar Porque Sim no Instagram? É só clicar aqui ←

 

Guardar no Pinterest

Diário de uma viagem à Islândia - Na paisagem irreal de Landmannalaugar