São Petersburgo e Moscovo, metades diferentes da mesma laranja
Foi apenas há três anos que estive de férias na Rússia, mas parece que foi há muito mais – sucedeu tanta coisa entretanto que ao invés de encolher, como é costume, o tempo esticou para o dobro. Não houve nenhum apocalipse, mas dou por mim com a sensação de viver num (mau) filme de ficção científica, entre avanços tecnológicos brutais e alterações climáticas com consequências impiedosas, entre regressões sociais e agressões políticas, e com a sensação cada vez maior de que em vez de evoluir, o ser humano está em franco retrocesso.
São Petersburgo era um daqueles destinos que estava há muito tempo na minha lista de desejos, e quando uma amiga me desafiou a ir com ela numa viagem de uma semana às duas maiores cidades russas, nem hesitei. Não sou grande adepta de viagens organizadas por agência (esta era), sobretudo porque o habitual é cingirem-se a levar-nos aos sítios aonde toda a gente vai e ocuparem-nos os dias inteiros com visitas pré-programadas. Mas neste caso o roteiro até nos deixava alguns períodos livres e o programa era interessante q.b.
Catedral de Nossa Senhora de Cazã, São Petersburgo
A ordem da visita às cidades era à nossa escolha, por isso optámos por começar por São Petersburgo. A desvantagem foi termos de fazer escala em Moscovo antes de seguirmos para a cidade imperial, por azar em dia de greve do pessoal de handling do aeroporto de Sheremetievo. Como consequência, as nossas malas não foram despachadas no voo para São Petersburgo em que seguimos, e depois demorámos mais de duas horas no aeroporto de Pulkovo para fazermos a reclamação – porque havia umas boas dezenas de pessoas com o mesmo problema que nós. Com tanta demora, o senhor do transfer para o hotel praticamente deitava fumo pelas orelhas quando finalmente saímos ao seu encontro; mas o ambiente no carro desanuviou quando, logo após deixarmos as imediações do aeroporto, teve de parar para deixar passar… uma pata que atravessava, em passada decidida e seguida pelos seus vários filhotes em obediente fila indiana, a estrada tipo via rápida que percorríamos. Depois de doze horas de viagem e da preocupação com as malas, esta visão tão inesperada quanto incomum e ternurenta foi um anticlímax bem vindo. Viajar são surpresas atrás de surpresas.
Três ou quatro dias em metrópoles tão grandes e cheias de história como São Petersburgo e Moscovo são claramente insuficientes, mas ainda assim serviram para que eu aprendesse mais alguma coisa sobre a Rússia, e principalmente que há grandes, enormes diferenças entre as duas maiores cidades do país. E que, por extrapolação, grandes diferenças existirão também em relação a outras cidades e regiões. Para mim, tentar entender a complexidade de um país tão vasto e variado (onde coabitam perto 200 grupos étnicos diferentes) é tarefa inglória e destinada ao fracasso, e não é por aqui que quero ir. Sou uma mera observadora.
A arquitectura destas cidades é o primeiro e mais visível indício da dicotomia que as marca. São Petersburgo é imperial, Moscovo é soviética. Onde São Petersburgo é água, Moscovo é betão (o rio é um mero acessório sem importância). São Petersburgo espraia-se ao longo dos recortes do rio Neva e do golfo da Finlândia, com edifícios de poucos pisos e recorte clássico, ou mais altos e simples nos bairros periféricos recentes; Moscovo é um círculo que mimetiza o sol, com o Kremlin como núcleo e as vias principais os seus raios, propagando-se em todas as direcções (a comparação com um polvo e os seus tentáculos também me parece adequada), e com edifícios que se projectam em altura, ambicionando conquistar os céus.
O Rio Neva em São Petersburgo
Moscovo vista da Colina dos Pardais
São Petersburgo nasceu no século XVIII da vontade de Pedro I, o Grande, primeiro imperador da Rússia. Conquistado em 1703 o forte sueco de Nyenskans, nas margens do Neva, durante a Guerra do Norte, decidiu ali fundar uma grande cidade, que servisse sobretudo de porto marítimo utilizável durante todo o ano. Construída sobre terrenos pantanosos à custa da vida de camponeses arrebanhados de toda a Rússia e de prisioneiros de guerra, Pedro projectou São Petersburgo à imagem das grandes capitais europeias da época, e essa é uma das razões pelas quais a arquitectura da cidade é tão homogénea.
Praça do Palácio, São Petersburgo
Esta aproximação à imagem da Europa faz parte da dualidade histórica constante da Rússia, que pisca um olho ao ocidente e outro à Ásia, enquanto baralha e dá as cartas ao seu jeito. Não admira por isso que Putin tenha invocado este imperador para justificar a invasão da Ucrânia, argumentando que Pedro I entrou em guerra com a Suécia não para conquistar, mas sim para recuperar território que pertencia à Rússia por direito – e que a guerra na Ucrânia tem os mesmos fins.
Em 1712, Pedro I elevou São Petersburgo a capital do império, estatuto que manteve até 1918 (com apenas dois breves intervalos, em que o posto foi ocupado por Moscovo). Duzentos anos de protagonismo enriqueceram a cidade, e esta riqueza ostentada – e ainda presente depois de tantos anos de modelo soviético – foi um dos aspectos que mais me surpreendeu durante toda a minha visita. Para onde quer que me virasse, via cúpulas e torres douradas. O Hermitage, de que só vi uma parte e em passo meio corrido, é um deslumbramento, tanto na decoração das suas salas como no valor das obras de arte que exibe. A fantástica agulha da torre sineira da Catedral de Pedro e Paulo, que faz dela o segundo edifício mais alto da cidade, brilha como um farol, sob o sol de Verão. No interior, onde estão expostos os túmulos de quase todos os governantes da casa Romanov, o ouro é tanto que ofusca. E a iconóstase desta catedral é deslumbrante: em vez de uma parede plana com ícones e pinturas, como é habitual na maioria das igrejas ortodoxas, aqui ela eleva-se ao centro para formar uma torre, estando primorosamente trabalhada e completamente recoberta a ouro.
Catedral de Santo Isaac, São Petersburgo
Loggias de Raffaello, Hermitage, São Petersburgo
Hall do Pavilhão do Pequeno Hermitage, São Petersburgo
Torre da Catedral de Pedro e Paulo, São Petersburgo
Iconóstase da Catedral de Pedro e Paulo, São Petersburgo
O romantismo melancólico da cidade é sublinhado pela água: do Neva, tão largo que parece mais mar do que rio, e dos seus vários canais e tributários, que totalizam 300 km de vias fluviais. Onde há rios há pontes, e são mais de 300, todas diferentes. Em São Petersburgo nunca estamos muito tempo longe da água, o que dá à cidade um ambiente leve e arejado.
Ponte Bank, São Petersburgo
Castelo Mikhailovsky, São Petersburgo
A viagem para Moscovo foi em comboio nocturno. No nosso compartimento ia também um casal espanhol, mas a hora avançada da partida, quando já estávamos todos cheios de sono, não nos deu vontade de grandes conversas. Apesar de algum conforto (até tivemos direito a chinelos e artigos de higiene), a falta de escuridão total, o ressonar do nosso companheiro valenciano e uma azia provocada pela digestão difícil de um jantar tardio fizeram com que eu não conseguisse dormir bem. O Verão é o período das noites brancas, com apenas duas ou três horas de escuridão. A má disposição empurrou-me para o corredor, onde fui brindada por uma paisagem quase contínua de floresta e pelo nascer-do-sol mais fascinante a que já assisti, com uma cortina de névoa a desprender-se do solo, pairando entre as árvores que passavam em corrida desenfreada do outro lado da janela. Foi um dos episódios mais marcantes de toda a viagem, pelo deslumbramento que senti. Estive mais de uma hora naquele corredor e só voltei ao compartimento, com alguma relutância, porque outros viajantes começavam a despertar e a movimentar-se pelo comboio, quebrando a minha paz.
Ao contrário de São Petersburgo, Moscovo tem uma história bem mais antiga, documentada desde o século XII, crescendo progressivamente em torno do seu Kremlin a partir do século XIV. Talvez porque o grande incêndio de 1812 – que se suspeita ter sido ateado pelos próprios russos, depois de terem evacuado a cidade na altura da invasão pelas tropas de Bonaparte – destruiu três quartos dos seus edifícios, ou talvez porque foi escolhida para capital da União Soviética logo após a revolução bolchevique, Moscovo não mostra nada que a ligue ao seu passado remoto. É prática, pragmática e megalómana a todos os níveis, cheia de monumentos e empreendimentos gigantescos (ao bom estilo soviético), e os edifícios só não parecem tão grandes porque geralmente estão separados uns dos outros por avenidas larguíssimas, ou porque dentro do nosso ângulo de visão há sempre outros ainda maiores.
A Praça Vermelha de Moscovo no séc. XVIII
O Kremlin de Moscovo
São Petersburgo foi concebida para mostrar a grandeza de Pedro I e, mais tarde, de Catarina II. Moscovo foi recriada para ostentar a grandeza do poder soviético e, agora, de Putin. Estaline mandou construir os altíssimos edifícios conhecidos como as Sete Irmãs (ou também, mais popularmente, como “os caprichos de Estaline”), os mais emblemáticos e fotografados arranha-céus da cidade. Vistos de longe – e conseguem ser avistados de bem longe… – parecem todos iguais, mas na realidade existem diferenças entre eles tanto em altura como na própria configuração. Embora nitidamente inspirados nos arranha-céus norte-americanos, são eles os melhores exemplares do estilo a que se convencionou chamar classicismo soviético ou monumental.
Edifício Kotelnicheskaya, Moscovo
Universidade Estatal de Moscovo
Estaline teve os seus caprichos, mas Putin não parece querer ficar atrás. Na linha do horizonte de Moscovo destaca-se hoje nitidamente o bairro que tem o nome oficial de Centro Internacional de Negócios de Moscovo ou, na sua forma mais curta, a City de Moscovo. Para este projecto, que começou a ser concebido nos anos 90, foi destinada a área de uma antiga pedreira junto a uma das curvas do rio Moscovo. É aqui que se encontram actualmente alguns dos maiores arranha-céus da Rússia, todos de cariz futurista e onde se incluem, com alturas superiores a 300 metros, sete dos dez maiores da Europa – isto por enquanto, uma vez que as possibilidades de construção futura ainda não estão esgotadas.
A City de Moscovo vista do Parque Pobedy
Outro edifício moscovita que ilustra a tendência da Rússia actual (e a volubilidade da sua História) é a Catedral de Cristo Salvador. É tecnicamente a catedral mais importante de Moscovo, e também um exemplo de fénix renascida das cinzas. Mandada erguer por Alexandre I depois da retirada das tropas napoleónicas, foi igualmente uma obra megalómana (103 metros de altura e capacidade para 10 mil pessoas) e só ficou concluída em 1883. Associada ao czarismo e em consonância com o desprezo pela religião advogado pelo regime soviético, foi destruída em 1931 para dar lugar a um futuro palácio monumental, que nunca chegou a ser construído, por falta de fundos. O espaço acabou por ser ocupado por uma piscina pública. Depois da desagregação da União Soviética, o governo autorizou o Patriarcado de Moscovo a reconstruir a catedral, que foi reinaugurada no ano 2000 e é praticamente igual à primeira. Com a liberdade religiosa decretada entretanto, a percentagem da população que se assume como cristã ortodoxa subiu de 31% para 72%, e a propagandeada (aparente) convergência de ideias político-espirituais entre o Patriarca Kirill e Vladimir Putin não parece ser mera coincidência.
Catedral de Cristo Salvador, Moscovo
Viagem organizada por agência significa guias, e guias significam, além de muita informação sobre os locais que visitamos e (com um bocadinho de sorte e diplomacia) alguma informação também sobre outros assuntos mais sensíveis – sendo que, num país como a Rússia, sensível é tudo o que disser respeito à política e à sociedade. E até neste aspecto notei a diferença entre as duas cidades. A guia de São Petersburgo falou-nos de artes e letras, de História e arquitectura, de questões sociais. Mostrou-nos a figurinha do cão parecido com Putin que está numa vitrina do Hermitage, explicou que a maior parte das pessoas (mesmo os jovens) não têm grande interesse em falar outra língua que não o russo, e revelou que na generalidade os papéis sociais dos homens e mulheres ainda são vistos de forma tradicionalista, as mulheres sendo consideradas como responsáveis pelo bem-estar da família e pelo trabalho doméstico – apesar de quase todas terem os seus empregos. Quanto às guias de Moscovo, realçaram a importância da cidade, a resistência e bravura dos seus residentes, a magnificência do metropolitano ou a monumentalidade dos edifícios, e o facto de grande parte das mulheres russas admirarem Putin por este ter implementado medidas que apoiam a natalidade e – supostamente – o género feminino.
Correndo o risco de ser simplista neste paralelismo, São Petersburgo e Moscovo parecem-me simbolizar duas das correntes de pensamento político que grassam actualmente na Rússia: uma de aproximação aos valores europeus, pelos quais são definidas as regras de harmonização social e actuação política; outra de que a Rússia é superior na sua essência, e portanto tem o direito de ser ela a ditar as regras pelas quais a Europa deveria reger-se. A rejeição europeia é, em termos práticos, a adoptada pela actual linha política russa, e não parece provável que Putin se desvie dela enquanto continuar no poder. No entanto, com a capacidade de torcer a verdade que tem mostrado, quem sabe se um dia…? Num país de tantos contrastes, tudo é possível.
Já seguem o Viajar Porque Sim no Instagram? É só clicar aqui ←
Outros posts sobre a Rússia:
Alguns conselhos para quem vai viajar para a Rússia