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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Qua | 21.09.22

Arte, museus e boas surpresas

 

Quando eu era miúda, de vez em quando a minha mãe gostava de pegar em mim e na minha irmã ao domingo e levar-nos a visitar um museu de Lisboa, ou um palácio ou monumento. Vivíamos nos arredores da cidade e ela nunca tirou a carta de condução, por isso a saída implicava uma viagem mais ou menos longa em transportes públicos, mas nada que a desencorajasse. O meu pai, que conduzia mas se apartava voluntariamente destas excursões – não sei se por razões de trabalho, de falta de vontade, ou porque as suas preferências se inclinavam mais para areia e mar – tinha no escritório os dois magníficos volumes de “As Maravilhas Artísticas do Mundo” do Ferreira de Castro (que nós só tínhamos o direito de abrir sob estrita supervisão parental), mas reservava as visitas a museus para quando viajávamos. Foi ele que nos levou pela primeira vez ao Louvre e ao Museu Britânico, teria eu uns 12 ou 13 anos, apesar de no ano anterior ter ignorado o MoMA em Nova Iorque. Na verdade, o interesse dos meus pais pelos museus tinha menos a ver com o gosto pela arte em geral do que com o prazer de observarem “coisas bonitas”, e a sua noção de beleza restringia-se ao que fosse classicamente identificável, melhor ainda se tivesse ouro ou prata à mistura. Estando as raízes de um e de outro em famílias humildes de origem rural, já era bastante disruptor o facto de os seus interesses incluírem a literatura e as artes plásticas, e na verdade foi suficiente para criarem nas filhas o gosto e um interesse mais alargado pelas artes.

 

Procurei replicar depois com o meu filho aquilo que os meus pais tinham feito comigo e a minha irmã, talvez ainda de forma mais exagerada e com algum sacrifício da parte dele. Nos episódios mais memoráveis está uma visita guiada ao Palácio de Mafra em que ele, com ano e meio de idade e se calhar já aborrecido de marchar (literalmente!) por tanto corredor interminável, decidiu fugir do grupo e atirou-se em corrida contra uma das estantes da famosa biblioteca; e uma incursão ao Louvre quando tinha cinco anos, no final de um dia em que já tínhamos percorrido um exagerado número de quilómetros a pé, em que aproveitou cada banco em cada sala para se sentar, sem um queixume, enquanto os seus impassíveis pais paravam a observar mais um quadro, mais uma escultura, mais um objecto. Apesar destes maus-tratos, creio que não ficou traumatizado, e ter escolhido para curso universitário precisamente uma área artística parece-me ser disso uma prova.

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Museu do Louvre, Paris

 

Da minha mãe também herdei algum jeito para o desenho, e até chegar ao ciclo preparatório dizia que queria ser pintora. Claro que para os meus pais isso não preconizava um futuro bem sucedido, e a pouco e pouco lá conseguiram orientar-me para outra área que eu também apreciava e prometia ser mais rentável O êxito dos seus esforços foi apenas parcial, e à medida que fui crescendo, cresceu também o meu apreço pelas várias formas de expressão artística, sobretudo pela pintura e o design (acabei por tirar depois um curso nesta área), com preferência especial pelas correntes modernas e contemporâneas. Os museus foram, obviamente, parte importante na descoberta do meu gosto – falo de um tempo em que a tecnologia ainda não tinha posto na ponta dos nossos dedos o acesso imediato a (quase) tudo o que se vai fazendo por esse mundo fora. Tínhamos os livros, o cinema e alguma televisão, e tudo o mais tinha de ser “ao vivo”. Sem os museus e as exposições temporárias da Gulbenkian, nos anos 80 não me teria apaixonado por Vasarely e a Op Art, por Escher e as suas construções impossíveis, pelas cores fortes das obras de Robert e Sonia Delaunay, pelo génio de Vieira da Silva, Paula Rego e tantos outros artistas portugueses, pelos objectos fabulosos de Lalique e as estampas estilizadas de Hokusai. Sem o Museu Nacional de Arte Antiga não teria conhecido, ainda bem novinha, os belíssimos biombos Namban ou a pintura onírica e angustiante de Bosch. Sem o Sintra Museu de Arte Moderna - Colecção Berardo (entretanto substituído pelo Museu das Artes de Sintra) nunca teria aprendido nada sobre a arte minimalista.

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Sala Lalique, Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa

 

 

O espaço e a atmosfera

Nessa altura os museus, fosse qual fosse o seu tema, ainda eram maioritariamente espaços básicos de exposição (da obra de arte) e contemplação (por parte do visitante). Entretanto evoluíram, tal como as manifestações artísticas, e agora temos não só museus com exposições interactivas, muito orientados para atrair ou entreter camadas mais jovens da população, como também museus com espaços mais variados na sua concepção de base, mutáveis e criados para se adaptarem e realçarem as obras expostas, imaginados para enriquecerem a experiência do visitante e combaterem o cansaço que por vezes se instala quando os percorremos. Ainda me recordo da minha visita, há bastantes anos, ao Kunsthistorisches Museum de Viena, onde vi obras icónicas de Bruegel e Arcimboldo, só para citar dois dos grandes pintores representados nas colecções do museu – e que também incluem obras de ourivesaria, relojoaria, escultura e uma variedade enorme de outras peças. A meio da exposição, eu o meu filho, na altura adolescente, já tínhamos uma overdose de arte e de tédio, e estávamos ansiosos por chegar ao fim: as obras sucediam-se monotonamente umas às outras num ambiente meio soturno, expostas e iluminadas sempre da mesma maneira. Em franco contraste, no quarteirão ao lado, os vários museus que integram o Museumsquartier, dedicados à arte moderna e contemporânea, já eram na altura espaços bem mais interessantes e motivadores (apesar de eu nem sequer apreciar muitas das peças), menos pela diversidade do que expunham do que pela forma como as obras estavam organizadas.

 

Outro que me aborreceu solenemente foi o Museu Egípcio do Cairo. Abriga um espólio de tamanho descomunal e valor incalculável, mas mostrado ao público sem qualquer imaginação. Senti-me como se estivesse a visitar um armazém, às tantas já não podia ver à minha frente múmias, sarcófagos, estatuetas, amuletos e tudo o mais que é exibido – em lotes, em prateleiras, e em quantidade. Nem a sala da Colecção Tutankhamon escapa à monotonia, embora a observação das peças expostas seja obviamente bem mais excitante e o ponto alto da visita. Felizmente, prevê-se para Novembro deste ano, quando se celebra o centenário da descoberta do túmulo de Tutankhamon, a abertura (sucessivamente adiada) do GEM, o Grande Museu Egípcio em Gizé, que irá mostrar de forma condigna – a acreditar na divulgação mediática – parte das colecções do Museu Egípcio de Tahrir e do Museu Nacional da Civilização Egípcia. A visitar num futuro próximo.

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Museu Egípcio, Cairo

 

No capítulo atmosfera, um dos meus museus preferidos é o Victoria & Albert, em Londres. É provavelmente o maior museu do mundo de artes decorativas e design, com uma colecção permanente com mais de 4,5 milhões de peças que abrangem 5000 anos de história e versam temas tão variados como moda e têxteis, fotografia, teatro, pintura, arquitectura, joalharia, cerâmica, mobiliário, vidraria. Há objectos da Europa medieval, renascentista e barroca, do Médio Oriente islâmico, da Ásia do Sul, do Japão, e ainda a colecção Gilbert, com cerca de 1200 belíssimos objectos feitos à mão, na sua maioria miniaturas em metais preciosos, esmalte ou mosaico. As exposições distribuem-se por cinco pisos, com as colecções divididas por salas temáticas, e o museu consegue a proeza de não ser minimamente enjoativo para quem o visita. Tem além disso a vantagem de ser gratuito (apenas as exposições temporárias são pagas), tal como sucede com vários outros museus londrinos. Mais ainda, tem um café que abre para o jardim interior, e que também abre o apetite só de olhar para a comida exposta, e uma loja com artigos tão atractivos que apetece comprar tudo.

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V&A Museum, Londres

 

Foi a visitar vários dos excelentes museus de Londres que comecei a reparar tanto na diversidade de pessoas que povoam estes espaços, como na forma como elas observam as peças expostas, como se movem, como interagem com o museu – e como elas também contribuem para a atmosfera mais ou menos acolhedora do lugar. Gosto (e aproveito para fotografar) sobretudo quando há um ambiente descontraído, com pessoas que conversam umas com as outras, crianças que se sentam no chão, entretidas com uma qualquer actividade, casais que descansam relaxadamente num banco ou sofá – como se o museu fosse a casa de um amigo que visitam com frequência. Quando as pessoas se mantêm em silêncio ou falam em sussurros, como se estivessem numa igreja, e vão progredindo monotonamente umas atrás das outras, a fazerem lembrar objectos no tapete transportador de uma qualquer unidade industrial, o ambiente é bem mais aborrecido e desmotivante, mesmo que a exposição seja de grande interesse.

 

Tate Britain, Londres
Tate Modern, Londres

 

Outro museu de Londres que aprecio particularmente é o Tate Britain, que expõe colecções de arte britânica datadas do séc. XVI até à actualidade. Embora com grande incidência na pintura, os trabalhos que exibe abrangem todo o espectro das artes visuais. Tanto podemos encontrar aviões de combate transformados em obra de arte por Fiona Banner, como uma exposição temporária de esculturas de Henry Moore. Um dos mais importantes espólios à guarda da Tate é constituído pelo legado de J.M.W.Turner, considerado o maior pintor inglês, o qual engloba 300 pinturas a óleo e vários milhares de esboços e aguarelas, incluindo todos os trabalhos que se encontravam no estúdio do pintor aquando da sua morte em 1851. As obras de Turner são mostradas ao público num espaço especial, a Clore Gallery, em exposições que vão mudando pontualmente – e num ambiente que me faz ter vontade de ficar tempos infindos a olhar para cada quadro.

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Tate Britain, Londres

 

De vez em quando, sou surpreendida por exposições que me deixam maravilhada – e feliz! Aconteceu-me, só para dar um exemplo, quando há uns meses visitei o Fotografizka de Estocolmo. Creio que foi o bilhete de museu mais caro que paguei até hoje, mas valeu cada cêntimo. À entrada, um caminho de patas de cão estilizadas guiava-nos para o Pet Show: várias salas com fantásticas fotografias de animais de companhia, intercaladas com filmes e algumas esculturas, uma mostra de trabalhos de 25 artistas firmemente destinada a despertar emoções, desde a ternura ao riso e à angústia.

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Fotografizka, Estocolmo

 

No piso superior, a imersão num mundo ao mesmo tempo tenebroso e colorido: “Between These Folded Walls, Utopia” são obras concebidas pela dupla (Sarah) Cooper & (Nina) Gorfer, que associam fotografia e colagem em retratos híbridos de jovens mulheres que se viram forçadas a migrar. A ideia por trás deste projecto é chamar a atenção para as tragédias humanitárias e para a perda de identidade e reinvenção de quem é obrigado a afastar-se das suas raízes; ou, como afirmado no texto de apresentação, “a perda da utopia e a nossa capacidade de voltar a sonhar”. Num ambiente de quase câmara escura, os quadros fundiam-se por vezes com a própria parede em que estavam expostos, criando um impacto bem maior do que se estivessem simplesmente pendurados numa parede de cor neutra e completamente iluminada – prova cabal de que para lá da qualidade da obra que se expõe, a forma como ela é exibida faz toda a diferença.

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Fotografizka, Estocolmo

 

É também em Estocolmo que fica o Museu do Vasa, um dos museus mais originais e espectaculares que já encontrei nas minhas viagens, totalmente concebido em torno de um único motivo (e que não tem nada a ver com artes plásticas). O Vasa, navio de guerra do século XVII considerado o supra-sumo da tecnologia naval da época, naufragou na baía de Estocolmo durante a sua viagem inaugural em Agosto de 1628. Resgatado do leito marinho, quase intacto, nos anos 60 do século passado, à volta deste “artefacto” de inegável valor histórico e artístico foi construído um grande museu, onde ficamos a conhecer em pormenor toda a arquitectura e história não só do navio, como da época em que ele foi concebido, das pessoas que nele pereceram, e da forma como foi recuperado. A “estrela” da exposição é obviamente o próprio Vasa. Ver de perto uma nau verdadeira, não uma reconstrução ou embarcação imaginada, é no mínimo excitante. Pensar que esteve durante três séculos debaixo do mar e foi possível recuperá-la, preservando-a e colocando-a em exposição, é perceber o valor do trabalho dos milhares de pessoas (investigadores e não só) que têm contribuído para que a memória do mundo não desapareça. E ainda por cima é um regalo para os olhos, tanto pela riqueza artística das suas ornamentações como pela forma como está exposta e iluminada. O Museu do Vasa é, em todos os sentidos, um tributo ao engenho humano.

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Museu do Vasa, Estocolmo

 

 

Casas que são museus

Lugares de excepção são também as casas que já foram morada de artistas, ou que têm características tão especiais que foram convertidas em museus. Uma das minhas preferidas, neste caso por ser um exemplo primoroso da arquitectura do ferro portuguesa, é a Casa-Estúdio Carlos Relvas, que fica na Golegã. Figura proeminente da alta sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX, proprietário de explorações agrícolas, inventor e fotógrafo de excepção, Carlos Relvas concebeu e mandou construir em 1872 uma lindíssima casa destinada a servir como estúdio fotográfico. Edifício original e ecléctico inserido num jardim romântico, é actualmente um museu dedicado à fotografia, e é para mim um dos edifícios mais bonitos de Portugal.

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Casa-Estúdio Carlos Relvas, Golegã

 

Em terras dos nossos vizinhos, o Museu de Arte Nova e Art Deco em Salamanca está alojado na Casa Lis, um palacete modernista construído em 1905-1906 em estilo Arte Nova mas seguindo os preceitos da arquitectura industrial. Foi mandada construir por Miguel de Lis, um empresário industrial da cidade, que encomendou o projecto ao arquitecto Joaquín de Vargas (que também concebeu o belíssimo edifício do Mercado Central de Salamanca). Uma das suas particularidades é ter duas fachadas bem distintas: a da entrada em pedra e ladrilho, e a maior, virada a sul e sobre um declive, em ferro e vidro. Outra é ter as suas salas dispostas em torno de um pátio interior, com uma abóboda de vitrais coloridos que, tal como os que decoram a fachada sul, são trabalhos de uma delicadeza e originalidade excepcionais e transmitem uma atmosfera quase diáfana às salas agora ocupadas pelas exposições. Na parte de trás do piso da entrada existe uma cafetaria absolutamente encantadora, decorada no estilo da casa e com vistas para o exterior através dos vitrais. Sou grande apreciadora dos estilos Arte Nova e Art Deco, mas confesso que nunca tinha ouvido falar deste museu até começar a preparar a minha viagem a Salamanca – e que lamentável teria sido passar ao lado desta preciosidade! As colecções do museu incluem um número impressionante de peças de artes decorativas criadas entre fins do século XIX e até ao final do período entre as duas Grandes Guerras. Há vidros, estatuetas, bronzes e esmaltes, jóias, leques e têxteis, mobiliário, e uma das mais importantes colecções de bonecas de porcelana em todo o mundo. A casa e o seu museu complementam-se na perfeição.

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Museu de Arte Nova e Art Deco, Salamanca

 

Nascido em Viena em 1928, o artista visual e arquitecto Friedrich Stowasser ficou conhecido para a posteridade pelo nome de Hundertwasser e pelas suas opiniões vincadas sobre a protecção ambiental e o repúdio pelas “linhas direitas” – princípios que estão bem visíveis no mural de azulejos “Submersão de Atlântida” que criou, por alturas da Expo 98, para a estação de metro Oriente em Lisboa. Tal como as suas obras, a casa onde viveu na sua cidade-natal é um edifício colorido e assimétrico tanto exterior como interiormente, onde até o piso foi concebido com ondulações (segundo ele, “um piso irregular é uma melodia para os pés”). É aqui que está actualmente instalado o Kunsthaus Wien, museu que expõe pinturas, trabalhos gráficos e arquitectónicos do artista. Visitá-lo foi imergir num mundo diferente, e saí de lá com toda uma outra visão sobre o que pode ser a arquitectura.

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Kunsthaus Wien, Viena

 

Irregulares e fora do comum são também as Casas Colgadas, na cidade espanhola de Cuenca. Em periclitante equilíbrio sobre o abismo cavado pelo percurso do rio Huécar, este pequeno conjunto de edifícios medievais de finais do século XV é uma visão simultaneamente excêntrica e encantadora. Nelas está instalado o Museu de Arte Abstracta Espanhola, que exibe em permanência uma colecção absolutamente notável de pintura e escultura de artistas espanhóis de meados do séc. XX. Distribuídas pelos vários pisos destas casas, em que o exterior e o interior estão em forte contraste, as salas de exposição são pequenas e acolhedoras, cada uma exibindo poucas obras, e o resultado é ao mesmo tempo intimista e dinâmico – e uma agradável surpresa para quem, como eu, gosta de arte contemporânea.

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Casas Colgadas, Cuenca

 

Tal como o seu excêntrico dono, a casa onde Salvador Dalí viveu entre 1930 e 1982 é tudo menos banal. Fascinado pela paisagem de Cadaquès, uma localidade junto ao Cabo Creus, no extremo nordeste da Catalunha, Dalí escolheu uma pequena casa de pescadores situada na Cala de Portlligat para aí instalar o seu refúgio – que habitou com Gala, a sua muito amada mulher, até à morte desta. Ao longo de quarenta anos acrescentou e transformou a pequena casa branca à sua imagem, decorando-a por dentro e por fora com cores e objectos dos mais díspares, a maior parte deles criados por si. Ali fez o seu atelier e ali recebeu os seus convidados e amigos – no entanto, apenas os acolhia nas dependências exteriores da sua casa, à volta da piscina, pois tanto ele como Gala eram extremamente ciosos da sua privacidade. Hoje a casa está transformada num museu, com visitas guiadas e rigorosamente cronometradas, onde quase tudo está preservado tal como em vida do pintor. É uma casa labiríntica, quase orgânica. Os vários espaços interligam-se uns com os outros, cada um tendo uma função bem definida. Nas palavras de Dalí, era “como uma verdadeira estrutura biológica, (...). A cada novo impulso da nossa vida correspondia uma nova célula, uma divisão”. Uma casa a roçar o surreal, tal como o seu criador.

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Casa Salvador Dalí, Portlligat, Cadaquès

 

Mais conhecida pelo seu espaço exterior – os incontornáveis Jardins Majorelle – a icónica casa azul e amarela que Yves Saint-Laurent comprou em 1980 em Marraquexe também inclui um museu. Complemento perfeito aos jardins, que são um autêntico oásis no calor marroquino, com vários ambientes exóticos onde a água e a cor são elementos importantes, o Museu Pierre Bergé das Artes Berberes expõe centenas de objectos, coleccionados ao longo dos anos por Pierre Bergé (mentor, sócio, companheiro e eterno amigo de Saint-Laurent) e pelo próprio costureiro. Articulado tematicamente em espaços distintos, o museu é ao mesmo tempo um testemunho e um tributo à riqueza e diversidade da cultura dos “homens livres” do Norte de África.

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Casa Majorelle, Marraquexe

 

 

Para lá dos museus

Por feliz coincidência, visitei Veneza durante uma Biennale. Este evento de divulgação artística realiza-se desde 1895 e continua a ser um dos mais importantes do género – mesmo hoje em dia, quando são organizadas anualmente mais de 300 feiras e bienais de arte em todo o mundo (até finais do século passado eram apenas 50…). A cidade, já por si só senhora de um charme muito especial, deitava arte por todos os poros, com inúmeras manifestações e exposições à margem do grande acontecimento. As surpresas surgiam ao virar de cada esquina, num passeio pelos canais, numa montra, num jardim, na varanda de um hotel, em palácios e igrejas. Fiquei encantada com esta facilidade de convivência, com a enorme quantidade de exposições de livre acesso para o público, e com a descoberta de obras inesperadas até em situações triviais. E foi precisamente num local insuspeito, uma espécie de armazém na margem do Dorsoduro, longe dos Giardini da Biennale e das confusões, que tropecei por acaso numa das exposições mais interessantes que já vi até hoje, concebida à volta de um objecto que faz parte da vida diária de milhões de pessoas: a chávena de café. Criada pelo director cénico americano Robert Wilson para a conhecida marca de café Illy, e com o sugestivo título “The dish ran away with the spoon - everything you can think of is true”, esta exposição sensorial celebrava o 25º aniversário da Colecção de Arte Illy, que na altura já contava com 400 chávenas de café (e seus inseparáveis pires) com o formato icónico lançado pela marca, decoradas por 111 artistas de renome. Ao longo de sete salas sucediam-se ambientes surrealistas diferentes, parcialmente inspirados na Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, cada um mais delirante do que o anterior e com grande impacto visual e sonoro. Uma exposição inesquecível.

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Exposição Illy, Veneza

 

De facto, se há país onde se respire arte, esse país é a Itália. No Palazzo Vecchio de Florença, depois de admirar o magnífico e recém-renovado Pátio de Michelozzo, dei por mim numa enorme sala povoada por figuras híbridas e desproporcionadas, estilizadas, estranhas, homens que são animais, animais com rodas… São assim as esculturas de Paolo Staccioli, ceramista toscano que expandiu entretanto os seus dotes para o bronze. Na Sala de Armas do Palácio, dividida em seis espaços definidos por pilares e abóbadas cruzadas, as esculturas estavam expostas como instalações individuais, mas visualmente unidas pela sua morfologia similar. Muito a propósito, a esta exposição foi dado o título “Nel Ventre Antico del Palazzo. Esercizi di guerra e giochi di bimbi”.

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Palazzo Vecchio, Florença

 

Em Madrid, o magnífico Palácio de Cristal, no Parque do Retiro, é lugar habitual de exposições temporárias, e ficou-me particularmente na memória a instalação criada de propósito para aquele espaço pela artista coreana Kimsooja e baptizada como “Respirar - una mujer espejo”: um espelho contínuo colocado no solo, que reflectia não só os visitantes (que tinham de entrar descalços) como também as cores do arco-íris criadas pela película de difracção translúcida que recobria a estrutura envidraçada do palácio. Como “música” de fundo, os sons da respiração da própria artista.

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Palácio de Cristal, Madrid

 

E na localidade de Alarcón, pequena vila na província espanhola de Castilla-La Mancha, existe uma igreja do século XVI que foi esvaziada e dessacralizada, e é hoje a “casa” de um projecto incomum executado pelo pintor Jesús Mateo. Apadrinhados pela UNESCO, que os classificou como obra de interesse artístico mundial, os murais criados por Mateo evocam, pelas formas e pelas cores, a pintura primitiva, ao mesmo tempo naïf e surreal. É uma obra esmagadora pela dimensão, surpreendente pelo contraste entre o vanguardismo da temática dos murais e o cariz religioso da arquitectura do edifício, simultaneamente envolvente e remetendo para espaços sem fim. Um lugar com alma própria, que se pode amar ou detestar, mas ao qual de certeza ninguém fica indiferente.

Afinal, não é este o cerne de qualquer obra de arte?

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Antiga igreja de São João Baptista, Alarcón

 

(Este artigo foi publicado pela primeira vez no blogue Delito de Opinião)

 

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Arte, museus e boas surpresas

 

Qua | 07.09.22

Diário de uma viagem à Islândia X

O sul e o Círculo Dourado

 

Muito do turismo na Islândia circunscreve-se à região sul, sobretudo ao chamado Círculo Dourado, uma rota de 300 km que passa por algumas das mais famosas atracções naturais do país. A relativa proximidade de Reiquiavique será uma das razões, e o clima algo menos agreste será outra. Nota-se um maior afluxo de pessoas em todo o lado. Sendo a maior região da Islândia (102 mil km2), tem muito que explorar. São precisos vários dias para visitar os seus lugares mais emblemáticos, e mesmo assim ainda ficará muito por ver.

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Dia 10

O primeiro objectivo deste dia era visitar Thórsmörk, o vale de Thor (esse mesmo, o deus viking dos trovões e das batalhas, e agora dos filmes da Marvel), uma reserva natural conhecida pela beleza das paisagens e famosa entre os amantes dos percursos pedestres. O acesso a partir da Estrada 1 (vulgo Ring Road) faz-se pela estrada 249, que ao fim de meia dúzia de quilómetros passa a ser F249. Neste caso, “F” significa “fjalla”, a palava islandesa para “montanha”, e nestas estradas só estão autorizados a transitar veículos 4x4. São estradas de terra ou areia com gravilha, pedregosas e nem sempre com boa manutenção, onde é frequente ser necessário atravessar rios ou ribeiros. Normalmente estão abertas apenas no Verão, dependendo das condições climatéricas. Como o Thórsmörk é bastante popular e já tínhamos percorrido outras estradas F – nomeadamente a F586, no noroeste, que nos tinha obrigado a passar alguns ribeiros a vau (a “aventura” está descrita aqui) – avançámos confiadamente durante uma vintena de quilómetros, com a trepidação habitual devida ao solo pedregoso mas dando graças por o percurso ser plano. Até que encontrámos um aviso à beira da estrada, grande, impossível de ignorar e graficamente intimidante, alertando que estávamos a entrar em território atravessado por cursos de água, que poderiam ser fundos e sobre os quais não existem pontes, pelo que só deveríamos prosseguir se tivéssemos um carro adequado e experiência em travessias a vau. Hesitámos em continuar, o nosso Dacia Duster não era propriamente o carro ideal, tinha servido para ribeiros quase rasos mas não sabíamos o que iríamos encontrar pela frente. E percorrer mais umas dezenas de quilómetros para eventualmente depois ter de voltar para trás sem chegarmos ao nosso destino seria um grande balde de água fria. Enquanto avaliávamos a situação, passaram por nós alguns veículos, que continuaram caminho sem vacilar – todos eles bem maiores do que o nosso, jeeps elevados que quase pareciam “bigfoots”, conduzidos por gente com ar de quem está habituada a fazer aquilo todos os dias. Menos confiantes do que eles, e com grande pena nossa, acabámos por jogar pelo seguro e decidimos inverter a marcha.

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É também na estrada 249, muito perto da Ring Road, que ficam duas cascatas cuja visita é altamente recomendável. Num universo estimado de 10 mil (!) quedas de água na Islândia, a certa altura podemos pensar que vamos começar a ver mais do mesmo, mas desenganem-se: as belezas naturais deste país não param de nos surpreender, e vale sempre a pena fazer um desvio para contemplarmos com os nossos próprios olhos aquilo que já vimos várias vezes em fotografia – e deslumbrarmo-nos uma e outra vez, sem qualquer sensação de déjà vu.

 

A Gljúfrabúi está escondida, e só não passa despercebida por causa do fluxo regular de pessoas que se encaminha para aquilo que parece ser apenas uma fenda numa elevação rochosa. É impossível entrar nesta caverna sem molhar os pés, mas o sacrifício é bem empregado. As paredes estão cobertas de musgo, e de um dos lados cai um véu de água pouco copioso, translúcido, que parece jorrar directamente do céu brilhante. Senti-me como se estivesse numa catedral, muros quase negros à minha volta, uma clarabóia celeste, fios de água a imitarem raios de sol. No meio há uma rocha volumosa, semiplana, que poderia bem ser um altar sacrificial, embora aqui o único sacrifício possível seja subir e posar para a fotografia da praxe.

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Um caminho de poucas centenas de metros leva-nos à Seljalandsfoss, famosa porque é possível ver a queda de água pelo lado de trás. A falésia rochosa por onde escorre está saliente em relação ao plano inferior onde a água cai, formando um pequeno lago, e no vazio que existe por trás foi aberto um trilho, cujo acesso é irregular e escorregadio, apesar de seguro. Nesta espécie de gruta vemos a paisagem exterior através de uma cortina líquida ondulante, pouco abundante por comparação com outras cascatas, mas ainda assim impressionante quanto baste. A combinação de vento e água não perdoa, e molha indiscriminadamente quem se atreve a esta experiência incomum.

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Regressámos à Estrada 1, mas só até chegarmos à 264, onde desviámos para Keldur. É aqui que está a casa de turfa mais antiga da Islândia – tão antiga que terá pertencido a Ingjaldur Höskuldsson, uma das personagens da Saga de Njál, que relata acontecimentos passados entre os anos de 960 e 1020. Keldur faz parte do Museu Nacional da Islândia desde 1946; está aberta ao público de Junho até fins de Agosto e tem visitas guiadas duas vezes por dia. Como chegámos à hora de almoço, a guia informou-nos que não poderia estar connosco nem mostrar-nos a casa por dentro, mas tivemos autorização para vaguear à vontade pelo espaço e espreitar para dentro das várias casitas. Embora a maior parte dos edifícios datem do século XIX, há partes mais antigas, algumas que remontam ao século XIII. Nesta quinta foram descobertas ruínas de 18 assentamentos diferentes, prova de que foi habitada continuamente ao longo dos tempos.

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Também aqui não poderia faltar uma igreja, revestida de chapa ondulada pintada de branco e com a data de 1875 bem visível na fachada. Achei mais curioso o cemitério atrás dela, onde a relva cobre os montículos de terra que assinalam as campas e há cruzes e lápides de várias espécies, algumas com datas tão recentes como 2002.

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A explicação para as sepulturas mais contemporâneas é simples: a quinta de Keldur continua a estar em actividade, separada dos edifícios históricos por um ribeiro e uma ligeira vedação de arame farpado. Do lado de lá há ovelhas e vacas, que também pareciam estar na sua hora de descanso, embora umas quantas não tenham resistido à curiosidade de vir observar os estrangeiros que interrompiam a paz da hora de almoço islandesa. Uma até conseguiu passar-se para o lado de fora da cerca, vá-se lá saber como. Ao longe, dois estábulos semicilíndricos, de pedra, também cobertos de erva. Junto ao ribeiro, uma fachada de madeira assinala a centenária casa do moinho, igualmente feita de turfa.

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A cerca de 20 quilómetros de distância, à beira de um rio e atravessada pela Ring Road, Hella é a maior localidade desta zona. Na estação de serviço da Olís fizemos o três-em-um: almoçámos, comprámos mantimentos no supermercado e enchemos o depósito do carro. Depois seguimos para Kerið, uma cratera vulcânica com um lago no interior. O verde-azul-cinzento da água, que contrasta com os tons avermelhados da terra que a rodeia, e a forma ovalada da cratera levam a que Kerið seja conhecida como “o olho do mundo”. Fotomontagens populares na Internet mostram-na com uma sombra escura no centro, como a pupila de um olho, mas são imagens que não correspondem à realidade. O nível da água varia de acordo com as subidas e descidas do lençol freático, e a profundidade do lago pode ir de 7 a 14 metros. Tal como outros lagos islandeses, congela no Inverno e serve de arena para patinagem. Como fica em propriedade privada, o acesso é pago: à volta de 2€, valor modesto que contribui para a manutenção do local, dotado de escadas, de um banco para observação zen, e – pasme-se! – até mesmo de uma bóia de salvação.

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Continuámos para norte para visitarmos o lugar a que chamam “o coração da Islândia”: O Parque Nacional Þingvellir (o símbolo “þ” lê-se como o “th” inglês). Com uma área de quase 100 km2, existem no seu perímetro cinco parques de estacionamento, todos pagos (o valor é fixo e cobre um dia inteiro). O mais usado é o P1, porque fica perto do Centro de Visitantes e é o mais acessível para quem vem de Reiquiavique. Nós optámos pelo P2, que nos ficava mais em caminho, e também mais perto de alguns locais do parque que queríamos visitar primeiro.

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No lado ocidental do vale de Þingvellir abre-se o Almannagjá, um desfiladeiro que marca nitidamente a deriva continental entre as placas tectónicas norte-americana e eurasiática. Há vários locais no parque onde é possível percorrê-lo, entre paredes de blocos basálticos empilhados irregularmente, como se deuses caprichosos os tivessem atirado uns para cima dos outros em brincadeira descuidada. É cruzado pelo rio Öxará, que flui para o Þingvallavatn, o maior lago natural da Islândia, situado a sul de Þingvellir, e no desnível onde o rio atravessa o desfiladeiro forma-se a Öxarárfoss, uma cascata pouco imponente (a sua maior queda tem apenas 13 metros) mas de grande efeito estético, com a água abundante a saltar irrequieta sobre os pedregulhos desordenados que estorvam a sua louca corrida.

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A sul do parque, quase na orla do lago, há mais ravinas famosas provocadas pelos movimentos das placas tectónicas. Estão cheias de água, que emerge do subsolo através dos substratos de lava porosa e cuja origem é o glaciar Langjökull, 60 km a norte. É o caso da Silfragjá, que surgiu em 1789, local excepcional para a prática do mergulho, seja de Verão ou de Inverno, pelas suas águas límpidas e por ser um lugar geologicamente atípico; e da Peningagjá que, traduzida à letra, significa “fissura do dinheiro”. Até há poucos anos, os visitantes tinham por hábito atirar moedas à água neste lugar, para atraírem a sorte e verem cumpridos os seus desejos. Este ritual foi entretanto proibido, a bem da preservação da natureza, o que explica as aparentemente estranhas placas de aviso colocadas nas pontes de madeira que atravessámos.

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Mas o principal motivo pelo qual Þingvellir é tão importante para a Islândia prende-se com a sua história. O povoamento da Islândia terá começado no ano de 874 com Ingólfr Arnarson, o primeiro norueguês a instalar-se na ilha, embora como país independente a Islândia seja muito jovem – só deixou de pertencer completamente à Dinamarca em Junho de 1944. No entanto, a sua localização remota permitiu-lhe sempre uma grande autonomia e um sistema de governação muito próprio. No início, as decisões eram tomadas em assembleias locais, mas à medida que a ilha foi sendo mais povoada tornou-se necessário organizar regularmente uma reunião em que estivessem presentes todos os chefes de clã, onde se fizesse justiça e fossem tomadas decisões gerais e equivalentes, evitando assim que alguma família se tornasse mais dominante do que outras. Foi este espírito igualitário que levou à realização, em 930, daquela que é considerada a primeira assembleia parlamentar do mundo, e que continuou a funcionar regularmente até chegar aos nossos dias: o Alþingi. O lugar onde ela se realizou até ao ano de 1800 tem o nome de Lögberg (Rocha da Lei) e fica na encosta do vale de Þingvellir. O local está assinalado com uma grande bandeira da Islândia, cujas cores representam o fogo dos seus vulcões (vermelho), a neve e os campos gelados (branco), e o oceano que a rodeia (azul).

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Embora o Alþingi tenha sido deslocado para Reiquiavique a partir de 1845, Þingvellir ainda continua mais do que simbolicamente ligado ao poder. É aqui que se situa a residência de Verão do Primeiro-Ministro islandês em exercício, um edifício de linhas simples desenhado em 1930 por Guðjón Samúelsson, no estilo minimalista e pouco ostentatório característico da Islândia. Tem cinco volumes idênticos que parecem habitações independentes, brancas com telhado negro e caixilhos e portas em verde-acinzentado. Na verdade, apenas quatro deles constituem a residência, estando o quinto dotado de instalações para o Administrador do Parque e para o padre da Þingvallakirkja, a igreja que se ergue quase ao lado. Construída em 1859 no lugar de uma outra mais antiga (segundo as sagas, desde 1017 que existe pelo menos uma igreja em Þingvellir), é igualmente sóbria nas suas linhas e cores. A torre, uma adição já no século XX, tem três sinos de épocas diferentes, datando o mais recente de 1944, o ano em que a Islândia passou a ser formalmente uma república independente.

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A visita a Þingvellir ocupou-nos durante quase duas horas de uma tarde sem nuvens e com uns suportáveis 15°C de temperatura do ar. Já eram seis e meia da tarde quando saímos, mas o sol estava alto – cortesia do Verão nórdico – e ainda tínhamos dois lugares obrigatórios do Círculo Dourado para visitar. Seguimos por isso para leste, e quarenta minutos depois estávamos em Geysir. O nome é auto-explicativo: é aqui que podemos ver a erupção de um géiser. O vale de Haukadalur é uma área de grande actividade geotérmica, com vários núcleos de fumarolas e águas borbulhantes, alguns deles com erupções regulares. O primeiro a ser referido em documentos foi o precisamente o Geysir, que chegou a atingir alturas de 170 metros – e é dele que vem o nome genérico dado a estes fenómenos da natureza. As suas erupções foram quase sempre irregulares, parando totalmente durante intervalos de muitos anos. O mais recente período de actividade regular ocorreu entre 2000 e 2003.

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Claro que não é sem razão que o local continua a ser extremamente popular entre os turistas. A poucas centenas de metros de distância do Geysir, o seu “irmão” mais pequeno Strokkur faz as honras do lugar, surgindo regularmente a cada 6-10 minutos e lançando jactos de vapor de água fervente a 20 ou mais metros de altura. O primeiro indício é uma ligeira agitação na superfície da água, de onde surge uma bolha que cresce e explode num repuxo repentino de água e fumo, extinguindo-se tão depressa como surgiu. O espectáculo não dura mais do que meia dúzia de segundos, e vê-lo uma vez não chega – ou, pelo menos, para nós não chegou, pois ficámos ali à espera da uma segunda sessão, apesar do vento geladinho que se fazia sentir.

Apesar de não ter a surrealidade de Hverir (de que falei aqui), a área que rodeia o Strokkur é fora do comum. Rolos de vapor soltam-se de inúmeras pequenas crateras no solo. A brisa espalha a neblina sobre a terra manchada pelo roxo e amarelo das flores selvagens que crescem entre regatos rasos e rochas manchadas. Em volta, renques de coníferas de um verde profundo destacam-se contra as colinas abauladas que se alongam até onde a vista alcança. Com nuvens grisalhas já a obscurecerem o sol, o cenário não podia ser mais diferente daquele que tínhamos deixado a uns meros 60 km de distância.

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Com as sombras das montanhas já a alongarem-se, chegámos à Gullfoss, que é “só” outra das quedas de água mais magníficas da Islândia. Tem tanto de impressionante como de bela, e somando tudo (paisagem, grandeza, formato) creio bem que, de todas as que vi na ilha, será a minha cascata favorita – embora na verdade seja um preciosismo dizer que gostei mais desta ou daquela, porque cada uma tem características especiais que tornam quase impossível compará-las.

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As águas da Gullfoss pertencem ao rio Ölfusá, cujo caudal é sempre abundante, qualquer que seja a estação do ano: 109 m3 por segundo, em média. O leito do rio, composto por camadas de rocha feitas de diferentes minerais, umas mais macias do que outras, foi-se desgastando de forma desigual, e o resultado é a Gullfoss ser uma cascata com dois grandes saltos, o primeiro com 11 metros e o segundo com 20. Cada ressalto está orientado numa direcção diferente, por isso a água, branca de tão buliçosa, desce em ziguezague, afundando-se numa ravina estreita de que não vemos o fundo. O vento fazia com que em alguns pontos se levantasse uma névoa fina e esvoaçante mas, porque o sol já estava demasiadamente baixo, não tivemos a sorte de ver o arco-íris tantas vezes eternizado em fotografias desta cascata.

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Há sítios de onde não apetece sair, e para mim este foi um deles. Estivemos ali quase meia hora, e não fossem o frio e o cansaço já a acumular-se, teria estado ainda mais tempo. Era hora de recolher ao alojamento, que nessa noite iria ser em Flúðir, a apenas 30 km de Gullfoss. Tínhamos reservado um mini-apartamento inserido numa casa particular, mas com entrada independente. Quarto simples e casa de banho minúscula, um sofá confortável, e uma boa kitchenette. Na região sul, que tem bastante oferta de locais onde comer, nem sempre é fácil encontrar (a preço decente) alojamentos com cozinha, e tínhamos tido este pormenor em conta na nossa escolha. Íamos precisar de fazer comida para nos alimentarmos durante todo o dia seguinte (o penúltimo da viagem), que planeávamos passar num local fascinante. Onde? Vão ficar a saber tudo num próximo post.

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O roteiro e várias informações práticas sobre a Islândia estão aqui: Coleccionar paisagens surreais na Islândia

 

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Diário de uma viagem à Islândia - O sul e o Círculo Dourado