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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Qui | 21.07.22

Salamanca e não só

 

Espanha é um mundo, e fica já aqui ao virar da esquina. Seja para umas férias mais compridas ou para uma escapadinha de fim-de-semana, no país vizinho há um nunca acabar de cidades, aldeias, percursos e paisagens para conhecer – e cada região tem as suas características, o que significa que não há monotonia. Tem ainda a vantagem de que basta pegar no carro e em poucas horas estamos a atravessar a fronteira, rumo a outro fuso horário e à descoberta de terras e costumes que são, com algumas excepções, bem diferentes dos nossos.

 

Desta vez, a minha proposta é ir até Salamanca, com algumas paragens no percurso, à ida e no regresso, para visitar outros lugares emblemáticos. O ideal para esta viagem serão três ou quatro dias, mas podem esticar o roteiro por mais tempo, porque há muito para ver.

 

CIUDAD RODRIGO

 

A apenas 30 km da fronteira de vilar Formoso, vale a pena visitar esta cidade, que é pequena em tamanho mas grande em beleza e história. Povoada desde pelo menos a Idade do Bronze, foi em finais do séc. XII que Ciudad Rodrigo começou verdadeiramente a desenvolver-se, atingindo no séc. XIV a sua idade de ouro. O facto de ter uma situação fronteiriça tornou-a um ponto-chave da defesa do território e o centro de várias batalhas, razão pela qual foi protegida por muralhas logo desde a Idade Média, mais tarde reforçadas com um conjunto de baluartes, revelins e fossos, que conferiram à fortificação o formato estrelado habitual dos sistemas defensivos construídos a partir do séc. XVI. Na História mais recente, teve especial importância na Guerra da Independência espanhola no contexto das invasões napoleónicas, entre 1808 e 1814.

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Ciudad Rodrigo possui um património histórico-artístico importante, um dos mais relevantes da região oeste da Comunidade Autónoma de Castela e Leão. Entrando pela Porta de Amayuelas, encontramos logo do lado direito a Catedral de Santa Maria, cujo museu abriga uma parte importante do património móvel da cidade.

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Embrenhando-nos nas ruelas do centro histórico, passamos pela Igreja de Cerralbo e pela encantadora Plaza Buen Alcalde, com as suas arcadas e os bancos de pedra que rodeiam a fonte central.

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Depois chegamos ao local que é o coração de todas as localidades espanholas mais antigas: a Plaza Mayor. Como é habitual, esplanadas não faltam, nem a costumeira animação dos nuestros hermanos. É o melhor sítio para tomar um café, uma bebida fresca, ou mesmo para uma refeição mais demorada. Num dos lados, a Casa do Marquês de Cerralbo chama a atenção pelo seu friso plateresco (estilo arquitectónico da primeira renascença espanhola) com medalhões e arabescos. Na extremidade sul, a Câmara Municipal está alojada num edifício do séc. XVI, que se distingue pelas suas colunas-torre cilíndricas e pelas arcadas encimadas por uma galeria.

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Seguindo pela Rúa del Sol deparamos com vários outros edifícios emblemáticos, como a Casa de la Cadena ou a Casa de los Gómez da Silva. Encontram aqui um mapa detalhado com todo o património arquitectónico relevante da cidade. E a partir da Plaza de Herrasti acede-se às muralhas, que são um miradouro excelente sobre a paisagem em volta e os bairros mais recentes de Ciudad Rodrigo.

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A sul da cidade corre o Rio Águeda, um afluente do Douro que define a fronteira entre Portugal e Espanha durante cerca de 40 km, desde Almofala até à sua foz. No local conhecido como Pesquera de La Concha há uma praia fluvial, e há um percurso pedestre que acompanha parte das suas margens, com lugares óptimos para piquenicar e fugir do calor na época mais quente.

 

Uma das maiores épocas festivas de Ciudad Rodrigo é o Carnaval del Toro, que durante cinco dias de festejos une a tauromaquia aos eventos culturais e à folia típica do Carnaval, com largadas de touros nas ruas, desfiles de máscaras, música e muita animação.

 

 

SALAMANCA

 

Velha em idade mas jovem em ambiente – um terço dos habitantes da cidade são estudantes universitários – Salamanca é monumental, vibrante e culturalmente muito rica. Situada numa região habitada desde há mais de 20 mil anos, a cidade terá sido fundada por povos indo-europeus e aparece citada, na era pré-cristã, com o nome de Helmantiké, que significa “lugar de adoração”. Em 220 a.C. foi sitiada por Aníbal, o afamado general e estratega militar cartaginês, a quem os helmantiquenses opuseram grande resistência. Com a ocupação romana da Península Ibérica, a localização geográfica de Salamanca em plena Via da Prata, entre Asturica Augusta (actual Astorga) e Emerita Augusta (Mérida), trouxe-lhe grande desenvolvimento. Já na Idade Média, em 1218, o rei Alfonso IX de Leão decidiu criar ali uma Universidade – a mais antiga das universidades espanholas hoje existentes, e cujas Cartas Fundadoras foram usadas como modelo para a maior parte das universidades que surgiram durante os séculos XVI e XVII na Europa e na América, facto que proporcionou à cidade uma expansão e um prestígio sem precedentes. Hoje em dia, a Universidade de Salamanca conta com cerca de 30 mil estudantes matriculados anualmente.

 

O património histórico-arquitectónico de Salamanca é tão denso que é impossível não nos sentirmos “esmagados” pela sua monumentalidade quando entramos na zona do centro histórico, declarado Património da Humanidade pela UNESCO. A visita tem, mais uma vez, de começar pela Plaza Mayor – a “sala de estar” de todos os salmantinos, que se tinge de dourado ao pôr-do-sol, e de contrastes e animação quando a noite chega. No séc. XV era conhecida como Plaza de San Martín; quatro vezes maior em tamanho do que actualmente, dela se dizia ser a maior praça da cristandade. O séc. XVIII reduziu-a em dimensão mas trouxe-lhe a riqueza do estilo barroco, dotando-a de 88 arcos e muitos medalhões com efígies. As suas arcadas abrigam lojas, hotéis, a Câmara Municipal (cujo relógio é provavelmente a referência da cidade mais usada como meeting point) e outros organismos oficiais, restaurantes e cafés, dos quais o mais famoso é o Novelty, aberto em inícios do séc. XX e desde essa altura local preferido de encontro para intelectuais, artistas e escritores.

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Uma das saídas da Plaza Mayor deixa-nos em frente ao Mercado Central, edifício com mais de 100 anos de história, exemplar belíssimo da arquitectura do ferro em estilo Arte Nova com vitrais coloridos. Além das lojas tradicionais, no interior há gastrobares onde é possível petiscar.

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Seguindo para sul, ao chegarmos à Plaza de Colón encontramos o Palácio de la Salina e o seu pátio renascentista com balcão suspenso, apoiado em esquadros decorados com figuras grotescas. Foi em tempos um armazém de sal, mas subiu na hierarquia e actualmente é a sede da Autarquia Provincial.

Do outro lado da praça, a Torre del Clavero não passa despercebida. Este edifício, entre o quadrado e o octogonal, faz lembrar uma prisão, mas na verdade a sua função presente é bem menos inquietante, pois abriga os escritórios da Assembleia Legislativa de Salamanca.

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Duas ruas ao lado, na Calle de la Compañia, há mais paragens obrigatórias. Os olhos hesitam entre os dois monumentos que nos prendem a atenção. De um lado, a Casa de las Conchas, palácio gótico cujo nome lhe é dado pela decoração da fachada (que remete obviamente para a Ordem de Santiago, à qual pertencia o seu primeiro proprietário), e que agora funciona como biblioteca e sala de exposições. Do outro lado, a magnífica La Clerecía, Colégio da Ordem dos Jesuítas construído entre os sécs. XVII e XVIII, convento sem horta nem jardim mas com um esplêndido pátio barroco rodeado de uma galeria com dois pisos, para que os religiosos pudessem passear e apanhar sol no Inverno. É a Sede da Universidade Pontifícia, e do alto das suas torres temos uma vista excepcional sobre o centro histórico da cidade.

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Em volta do Patio de Escuelas erguem-se os majestosos edifícios mais antigos da Universidade, alguns deles transformados em museus. Antes da visita é obrigatório ficar longos minutos a olhar para a Fachada Rica do edifício das Escuelas Mayores. Porquê? Pois em primeiro lugar porque é considerada, muito justamente, a expressão máxima do plateresco espanhol; e em segundo, porque uma das “tradições” em Salamanca é tentar descobrir a rã que foi esculpida sobre a reprodução de uma caveira – e acreditem que é como procurar agulha num palheiro, tantos são os arabescos, símbolos e figuras desta fachada. A qualquer hora do dia ou da noite há sempre grupos de pessoas de pescoço esticado a tentarem encontrar o famoso batráquio (que na verdade é um sapo, não uma rã) até que finalmente alguém aponta para o sítio certo… e ouve-se um suspiro de alívio colectivo, que o desespero já estava a atingir os limites. Especula-se que esta escultura tão peculiar representará a morte e, por oposição, a máxima carpe diem; e também mais especificamente o príncipe Juan de Sevilha, que morreu adolescente em 1497, e o Doutor Parra, que tentou afincadamente salvar-lhe a vida – razão pela qual a rã é conhecida pelo diminutivo de Parrita.

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A visita à Universidade inclui a passagem por várias antigas salas de aula, como as de Miguel de Unamuno, Francisco de Vitoria e Frei Luis de León, pelo saguão gótico e pelo Paraninfo, onde se celebram actualmente os actos solenes da Universidade, pela Escada do Conhecimento e pela Biblioteca Geral Histórica, que foi a primeira biblioteca pública da Europa, pela Capela de São Jerónimo, e pelo pátio das Escuelas Menores para ver o Céu de Salamanca, parte de uma obra de finais do séc. XV que decorava o tecto da Biblioteca da Universidade e cuja autoria está atribuída ao pintor Fernando Gallego.

 

Chegamos finalmente à Catedral – que não é uma, mas sim duas catedrais unidas. A entrada faz-se pela Catedral Nova, construída entre os sécs. XVI e XVIII no estilo gótico tardio, com as suas fachadas riquíssimas em detalhes e a sua cúpula e torre sineira barrocas.

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O interior é impressionante. Nas abóbadas há nervuras que compõem belíssimos desenhos estrelados, e um zimbório com corpo octogonal sobre pendentes com relevos e cúpula semi-esférica decorada com pinturas, cujas grandes janelas deixam passar a luz e criam, para quem está no interior, a impressão de que a Catedral se ergue até aos céus. Há dois órgãos majestosos, um renascentista e outro barroco, quase uma dezena de capelas onde o dourado impera, e um coro com um cadeiral em madeira intrincadamente trabalhada com imagens em relevo de santos e eclesiásticos, entre um sem-fim de outros motivos decorativos.

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A Catedral Velha é mais pequena e menos adornada do que a sua irmã “siamesa” mais nova, mas não menos encantadora, apesar da sua aparente simplicidade. Construída nos sécs. XII e XII, o acesso é feito pelo interior da Catedral Nova, com a qual partilha uma extensa parede interior. As suas várias capelas, que abrigam sepulcros de personalidades famosas de séculos passados, estão decoradas com pinturas coloridas. A obra que mais chama a atenção é o retábulo da Capela Maior, realizado entre 1430 e 1450. Tem 53 quadros pintados, que rodeiam uma imagem mais antiga (do séc. XII) de bronze dourado da Virgem de la Vega, a padroeira da cidade. Sobre o retábulo, na cúpula semiesférica da abside, foi pintada uma representação do Juízo Final. É a esta Catedral que pertence a magnífica Torre do Galo, um dos zimbórios mais exóticos da arquitectura românica em toda a Península Ibérica. Podemos subir aos telhados da Catedral acedendo pela Torre Mocha, que fica na Plaza Juan XXIII. A experiência tem o nome de Ieronimus e inclui um espaço expositivo espalhado por várias escadas e salas. Encontram mais informações aqui.

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A Catedral de Salamanca foi bastante afectada pelo terramoto de Lisboa de 1755, após o que foi necessário reforçar algumas das suas estruturas para corrigir a sua inclinação. No entanto, não houve vítimas, facto que é celebrado todos os anos a 31 de Outubro com a subida do Mariquelo (um habitante vestido com traje típico, que faz um discurso e toca flauta e tambor) à torre da Catedral.

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Outra curiosidade obrigatória em Salamanca é procurar o astronauta no portal norte da Catedral, que dá para a Plaza de Anaya. Bem mais fácil de encontrar do que a rã da Universidade, foi adicionado em 1992 aquando da restauração desta fachada, cuja pedra já apresentava grande deterioração. A ideia foi de Miguel Romero, um dos canteiros restauradores, para que ficasse bem patente que esta parte do edifício era nova. Não é a única figura contemporânea do portal: também existe um dragão/demónio a comer um gelado. Este tipo de intervenção divide as opiniões, entre os que a encaram como uma prática legítima para diferenciar a época de cada restauração, além de uma marca pessoal de quem executa os trabalhos, e os que consideram que este tipo de figuras desvirtua o sentido inicial da obra. Com ou sem polémica, não é incomum encontrar referências extemporâneas em monumentos deste género um pouco por todo o mundo.

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Contornando a Catedral pela esquerda, chegamos ao Huerto de Calixto y Melibea. Àquela que foi, na época medieval, a horta da casa do Arcediago de Ledesma foi unido o Jardim do Vizir, pertencente a uma casa particular entretanto demolida, para formarem um extenso e agradável espaço ajardinado. O nome evoca o casal de amantes da obra trágica “La Celestina”, escrita em princípios do séc. XVI por Fernando de Rojas, sendo este o local onde supostamente teriam os seus encontros amorosos. Situado sobre a muralha antiga, funciona também como miradouro sobre o rio Tormes e a zona mais baixa da cidade, sendo um local privilegiado para observar o pôr-do-sol. Tem muitas árvores, várias delas frutíferas, vegetação espessa, e recantos intimistas. A atmosfera romântica é completada por um poço, cuja armação metálica está repleta de cadeados, colocados por casais apaixonados que acharam por bem ali deixarem uma marca.

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A Calle Arcediano leva-nos pela parte exterior traseira da Catedral até à Calle Tentenecio, rua pedonal que em tempos foi o principal acesso à cidade para quem vinha do sul. É por esta rua que entramos na Casa Lis, um palacete modernista construído em 1905-1906 em estilo Arte Nova mas seguindo os preceitos da arquitectura industrial, e com uma das fachadas em pedra e ladrilho e a outra, virada a sul e sobre o declive, em ferro e vidro. Actualmente acolhe o Museu de Arte Nova e Art Deco, e é um dos locais incontornáveis de Salamanca. Os vitrais coloridos que decoram a abóbada do pátio interior e a fachada sul são trabalhos de uma delicadeza e originalidade excepcionais, e transmitem uma atmosfera quase diáfana às salas agora ocupadas pelas exposições. Na parte de trás do piso da entrada existe uma cafetaria absolutamente encantadora, decorada no estilo da casa e com vistas para o exterior através dos vitrais. Encontram aqui todas as informações sobre este museu.

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Depois descemos até à Ponte Romana sobre o Tormes, o melhor sítio para ver a Catedral por inteiro e de longe. Dos seus 26 arcos de volta perfeita, apenas os que ficam perto da cidade são originais, tendo os restantes sido completamente restaurados no séc. XVIII. Muito comprida e larga, fazia parte da Via da Prata romana. É exclusivamente pedonal e muito concorrida, também porque oferece belas vistas sobre as margens do rio, um amplo espaço arborizado com uma área de lazer apetecível.

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No final da ponte invertemos a marcha e voltamos ao Paseo de San Gregorio, para depois subirmos até à Cuesta de Carvajal. É aqui que encontramos, no piso térreo de um edifício insuspeito, o Centro Interpretativo da Salmantica Sedes Antiqua Castrorum – ou, dito por outras palavras, a parte mais antiga da muralha castreja de Salamanca. Tem 32 metros de comprimento, uma largura que varia entre os três e os sete metros, e é feita de arenito, terra e xisto. Apenas descoberto em 1999, este troço da muralha data do séc. IV a.C. e está parcialmente encostado à muralha antiga de Salamanca, que é muito mais recente (sendo que recente, neste caso, se reporta à Idade Média…).

 

Do outro lado da calçada, um portão de ferro dá acesso à Cueva de Salamanca. “Cueva” significa “caverna”, mas na verdade este local é a cripta da antiga Igreja de São Cipriano, que foi demolida no séc. XVI. Ao lado ergue-se a Torre do Marquês de Villena. Diz a lenda que este marquês foi aluno do diabo, que aqui dava aulas de necromancia a sete alunos durante sete anos. Como pagamento pelos ensinamentos recebidos, um destes alunos ficava refém do dito cujo, e consta que o referido marquês teve o azar de ser aleito para o “cargo”. Não se conformando com o fadário que lhe tinha calhado em sorte, Villena decidiu fugir, e na fuga perdeu a sua sombra, ficando assim marcado até ao fim dos seus dias. Contrariando a lenda aziaga, a Cueva é o cenário aproveitado para um espectáculo de projecção de luzes que se realiza às sextas e sábados entre as nove e as dez e meia da noite.

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Salamanca cresceu ao longo dos séculos em palácios, igrejas e conventos. Perto da Cueva encontramos a belíssima e imponente Igreja de Santo Estêvão, geminada com o convento que tem o mesmo nome. Foi na Sala Profundis deste convento que Cristóvão Colombo apresentou ao frades dominicanos que o habitavam a sua ideia de uma nova rota para chegar às Índias. Consta que a ajuda dos dominicanos foi um factor determinante para que os Reis Católicos dessem luz verde (ou seja, financiamento) ao projecto do navegador. Uma ponte liga o adro da Igreja de Santo Estêvão ao Convento de las Dueñas, um palácio de estilo mourisco que ainda hoje é habitado por freiras dominicanas.

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Entre os muitos outros edifícios religiosos do centro histórico de Salamanca – onde nem sequer falta uma igreja ortodoxa romana – há ainda a destacar a vistosa igreja barroca da Puríssima, a parte pública do Convento de las Agustinas, cujas monjas vivem em clausura. Foi mandada construir pelo Conde de Monterrey em frente ao seu palácio, um magnífico exemplar do renascimento espanhol, que actualmente pertence à Casa de Alba e pode ser visitado.

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Outro belo edifício em estilo plateresco é a Casa de las Muertes, desenhada no séc. XVI por Juan de Álava, o arquitecto da Catedral Nova e da capela da Universidade. O nome tétrico da casa deve-se às caveiras esculpidas que suportam os parapeitos das janelas superiores, mas também parece estar relacionado com histórias de habitantes que terão morrido de forma algo estranha.

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Em Salamanca, o imenso património arquitectónico antigo “casa” bem com o ambiente dinâmico e jovial que se sente nas ruas, a famosa movida pela qual os nossos vizinhos são tão conhecidos. É uma daquelas cidades que pede para ser visitada sem pressas, pois os seus pontos de interesse são tantos que vai tornar-se cansativo querer ver tudo num curto espaço de tempo.

 

 

SIERRA DE FRANCIA

 

Dentro do triângulo formado por Salamanca, Ciudad Rodrigo e Plasencia, encontramos a Sierra de Francia, região declarada Reserva da Biosfera pela UNESCO em 2007 e senhora de um património paisagístico, cultural e etnográfico que merece ser conhecido. Nas aldeias que se escondem nas suas encostas há toda uma herança velha de séculos, tanto tangível como imaterial, que resulta de uma fusão feliz entre as culturas muçulmana, judaica e cristã, e se revela nas características únicas e bem vincadas da sua arquitectura, das suas tradições, e da personalidade dos seus habitantes. La Alberca e San Martín del Castañar são duas das suas 14 aldeias.

 

San Martín del Castañar

 

É uma das seis aldeias da Sierra de Francia declaradas Conjunto Histórico do património de Espanha. O coração de San Martín del Castañar é (obviamente!), a Plaza Mayor, dominada ao centro pela sua fonte e onde não passa despercebida a Câmara Municipal, com frontaria assente em colunas de pedra bem antigas e cujo piso inferior é uma passagem que comunica com a rua traseira. Há uma igreja que remonta ao séc. XIII, já muito transformada, com retábulo barroco e tecto mudéjar, uma antiga praça de touros de dimensões modestas, um castelo que agora abriga o Centro de Interpretação da Reserva da Biosfera das Serras de Béjar e Francia, um parque junto ao ribeiro e dois percursos pedonais. Mas o mais cativante desta aldeia é mesmo a sua arquitectura, com as típicas casas com treliças geométricas de madeira incorporadas nas paredes de alvenaria e as compridas varandas no piso superior dos edifícios, em madeira e ferro forjado, que mais parecem alpendres. O passeio pelas ruas estreitas faz-se de nariz no ar, para não perder pitada dos muitos pormenores deliciosos que surgem a cada passo.

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La Alberca

 

O seu nome é de origem árabe (significa “depósito de água”) e é a aldeia mais famosa e turística da Sierra de Francia, como dá para perceber pelos grandes parques de estacionamento ao lado da estrada antes de chegar à povoação. A Praça de Santo António é a porta de entrada na aldeia, e o seu cruzeiro com pórticos laterais é local obrigatório de foto de família para quem está de visita. Não faltam lojas de produtos mais ou menos artesanais, e à volta da Plaza Mayor as esplanadas são mais que muitas, com vista para outro cruzeiro, este do séc. XVIII. As casas seguem o modelo tradicional da região, muitas delas enfeitadas com sardinheiras e outras flores exuberantes nas varandas e janelas.

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La Alberca tem dois museus etnográficos: a Casa-Museu Satur Juanela, uma habitação albercana conservada no seu estado genuíno, com espaços domésticos fielmente recriados, e o Museu dos Trajes Típicos. A Igreja de Nossa Senhora da Assunção, construída no séc. XVIII, fica numa praça rodeada de casas bem recuperadas e embelezadas, e ao seu lado encontramos a escultura de um porco, ali colocada para homenagear uma das tradições mais antigas da aldeia, que foi institucionalizada em princípios do séc. XVI pelos judeus conversos como forma de provarem a sua nova fé à Inquisição: o Marrano de San Antón. No dia 13 de Junho (dia de Santo António) solta-se um porco, que vagueia pela aldeia e é engordado por todos os habitantes até ao dia 17 de Janeiro (dia de San Antón), data em que é rifado. O valor colectado reverte a favor de obras sociais ou é entregue a uma ONG. Outra das festas mais populares de La Alberca é o 15 de Agosto (Diagosto), celebrado em honra da padroeira da aldeia, a que se associa no dia seguinte a representação de “La Loa”, um auto sacramental com origens na Idade Média, que dramatiza a vitória do bem sobre o mal e se destaca pela peculiaridade das suas personagens. É uma das festas mais genuínas de Espanha, e atrai sempre um grande número de visitantes.

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Uma mão cheia de bons motivos para dar um pulinho até terras de nuestros hermanos.

 

(Este artigo foi publicado pela primeira vez no website Fantastic)

 

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Salamanca e não só

 

Qua | 06.07.22

Judiarias

 

Sou mais de pensar no futuro do que no passado, mas nas minhas viagens gosto de visitar bairros antigos. Presto atenção particular à arquitectura, sobretudo quando não está “maquilhada” pelas falsas reconstituições que tantas vezes alteram o carácter original dos lugares (assunto com pano para mangas, que poderá ser motivo para outro artigo). Estes bairros são muitas vezes a linha que me conduz a conhecer um pouco da história de cada lugar, frequentemente a posteriori, e também frequentemente para tentar separar o trigo do joio, ou seja, o que é facto histórico verificado daquilo que é efabulação ou exagero para chamariz turístico. Nos últimos anos, o acaso tem levado os meus passos até algumas antigas judiarias em cidades e vilas europeias, e tenho vindo a interessar-me progressivamente por estes bairros, que de uma forma geral mantêm algumas das suas características originais e terão sido menos adulterados pelos modismos da passagem dos séculos.

 

HERVÁS

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Diz a publicidade turística que o seu bairro judeu é um dos mais interessantes e melhor conservados em Espanha. Para mim, foi um dos que mais gostei de visitar até hoje. Hervás fica a pouco mais de 100 km da nossa fronteira, entre Plasencia e Salamanca, entre florestas de castanheiros e carvalhos na região do vale do rio Ambroz. A vila tem as suas raízes em finais do século XII, quando as terras foram doadas por Afonso VIII a monges templários, que ali erigiram uma ermida e apoiaram o povoamento local, submetido à autoridade do Duque de Béjar.

 

Em 1391, estalou em Sevilha uma revolta contra a população judaica, que se alastrou depois a várias cidades dos reinos de Castela, Aragão e Navarra. A Europa sofria os efeitos devastadores da peste de 1348, e no imaginário colectivo havia que atribuir a tragédia a alguém. Ferrán Martínez, arcediago de Écija, foi o grande instigador da revolta, no culminar de vários anos de pregação antijudaica, e os seus seguidores ficaram conhecidos como “matadores de judeus”. Para escaparem aos assassinatos em massa, muitos judeus foram obrigados a assumir a fé católica, e outros fugiram para localidades mais pequenas, onde a convivência religiosa era pacífica e os senhores feudais asseguravam alguma protecção aos habitantes das suas terras. As primeiras referências documentadas sobre a presença de judeus em Hervás datam de 1464, mas é provável que algumas famílias já se tivessem instalado na localidade em datas anteriores.

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Em 1492, quando finalmente unificaram o Reino de Espanha, os Reis Católicos decretaram a expulsão de todos os judeus. Das 45 famílias judaicas que viviam em Hervás, apenas 14 decidiram ficar na localidade, convertendo-se ao cristianismo; as restantes foram conduzidas à fronteira com Portugal, onde se refugiaram. No entanto, vários desses exilados regressaram a Hervás dois anos mais tarde, beneficiando de um édito régio que conferia uma carta de segurança aos conversos castelhanos que quisessem retornar ao reino, garantindo-lhes também formas de recuperarem os seus bens. Uma das pessoas regressadas foi o rabino Samuel, que ingressou na confraria de São Gervásio e pôde assim continuar dissimuladamente a apoiar a prática judaísta e a coesão desta comunidade em Hervás. Apesar de tudo, a aceitação de cristãos-novos na vida da localidade permaneceu difícil e demorada, com estatutos discriminatórios e perseguições que levaram alguns deles à fogueira até que, em 1661, a duquesa D. Teresa Sarmiento de la Cerda aboliu as discriminações impostas e a integração das famílias de cristãos-novos pôde finalmente prosseguir sem grandes entraves.

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O bairro judeu de Hervás começa junto ao rio Ambroz, na ponte medieval da Fonte Chiquita, que é o monumento mais antigo da vila. Vai depois subindo suavemente por ruas estreitas e sinuosas (a Callejilla tem apenas 55 cm de largura!), cheias de recantos e becos, até ao local simplesmente conhecido como La Plaza, uma confluência de ruas marcada por uma oliveira e uns bancos de jardim. As placas toponímicas com uma estrela de David ajudam a identificar as ruas do bairro, que foi declarado conjunto histórico-artístico em 1969 e alvo de uma reabilitação profunda nos anos 90, na qual os próprios habitantes também se empenharam. A arquitectura das casas é tradicional, com paredes de pedra e adobe ou taipa, e tabique em madeira de castanheiro – construções irregulares que ignoram a simetria, com dois ou três pisos, o último sendo muitas vezes saliente ou até mesmo unido à casa do lado oposto da rua. As paredes estão ocasionalmente cobertas por telhas árabes invertidas, colocadas na vertical, ou por pranchas de madeira em sobreposição – soluções de isolamento térmico pensadas para aligeirar os rigores do calor estival e os ventos frios que sopram do Pico Pinajarro. Cabos eléctricos e tubos metálicos convivem com varandins de ferro forjado e vasos de flores, e as portas e janelas ainda não sucumbiram à tentação do alumínio.

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Para capitalizar o potencial turístico da judiaria de Hervás, desde 1997 que se realiza em inícios de Julho a festa “Los Conversos”. Há exposições, música, degustações e uma recriação histórica teatralizada da vida na localidade em tempos medievais e de eventos marcantes na história da sua comunidade.

 

 

BOLONHA

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A história da comunidade judaica em Bolonha remonta à segunda metade do século XIV, quando cerca de quinze famílias se instalaram na cidade. Apesar de verem as suas actividades continuamente controladas e das limitações que lhes foram sendo impostas ao longo dos anos, e envolvida sobretudo no comércio da seda e da joalharia, nos empréstimos bancários e na medicina, esta comunidade prosperou de tal forma que em meados do século XVI as sinagogas já eram em número de onze – mais do que as existentes em Roma – e Bolonha tinha uma prestigiada academia rabínica. Famosas eram também as oficinas gráficas da cidade, onde em 1482 foi impressa a primeira versão física do Pentateuco com comentários do Rabi Shlomo Yitzhaki, mais conhecido como Rashi.

 

Em 1555, um decreto do Papa Paulo IV ordenou que os judeus fossem separados do resto da população, e em Bolonha ficaram confinados a um bairro definido por muros e por portões que eram abertos quando o sol nascia (para que os seus habitantes pudessem ir trabalhar noutros locais, pois a segregação religiosa tinha o cuidado de não abranger as suas actividades, muito importantes para a cidade), fechados ao anoitecer, e constantemente vigiados. Além disso, eram obrigados a usar uma marca distintiva, para serem facilmente identificados, e apenas foi permitido que uma sinagoga continuasse em funcionamento. Uma das entradas deste gueto ficava na Via de’ Giudei, uma rua estreitinha e sombria que principia na Piazza di Porta Ravegnana, onde se erguem as famosas Duas Torres de Bolonha (durante o período fascista e anti-semita em Itália, a Via de’ Giudei passou a chamar-se precisamente Via delle Due Torri); outra encontrava-se no cruzamento da Via del Carro com a Via Zamboni; e uma terceira entrada fazia-se pelo arco que liga a Via Guglielmo Oberdan ao Vicolo Mandria.

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A criação do gueto judaico de Bolonha suscitou óbvia agitação e alguma resistência, e apesar de ter sido escolhida a zona da cidade onde a maioria das famílias já vivia, muitas outras foram forçadas a vender as suas casas e mudar-se. Por outro lado, cristãos que viviam dentro do perímetro definido para o gueto tiveram de sair dos seus domínios e arrendá-las aos novos habitantes (os judeus passaram a não estar autorizados a possuírem propriedades). Tendo uma área disponível tão pequena, a comunidade aproveitou todo o espaço o melhor que podia, construindo em altura e até mesmo por cima das ruas, num puzzle tridimensional de que hoje ainda restam muitos vestígios. A espinha dorsal do bairro é a Via dell’Inferno, onde até 1943 existiu uma sinagoga (no actual número 16), que foi destruída pelos bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial. O nome da rua não se devia a nenhum motivo religioso: resultou de uma mera associação do fogo às chamas do inferno, pois antes da criação do gueto existiam na rua várias oficinas de ferreiro.

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Uma nova bula pontificial expulsou em 1569 os judeus que viviam em quase todos os territórios directamente governados pela Igreja Católica Romana. Readmitidos por Bolonha em 1586, voltaram a ser banidos sete anos depois, desta vez por mais de dois séculos, até à chegada dos franceses de Bonaparte em 1796, que libertou a cidade da influência papal.

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O traçado do gueto judeu de Bolonha permanece bem identificável na actualidade, definido por um labirinto de becos e ruelas que se entrelaçam, arcadas e passagens suspensas, casas muito próximas umas das outras, com janelas pequenas e várias portas (algumas delas falsas, estando as entradas verdadeiras mais dissimuladas), varandas que se misturam com semi-arcadas, e onde a pedra e os grafitis alternam com as cores soalheiras das casas renovadas, que têm portadas garridas nas janelas e plantas que se derramam pelas paredes abaixo.

 

 

BUDAPESTE

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A presença judaica na área de Budapeste data do período romano, e há documentos que atestam a sua importância e prosperidade tanto na Idade Média como durante o tempo em que a região pertenceu ao Império Otomano. No entanto, quando em 1686 uma coligação de exércitos cristãos reconquistou Buda, a sinagoga foi incendiada e todas as pessoas que nela se encontravam presentes pereceram. A comunidade judaica que vivia a oeste do Danúbio foi praticamente dizimada.

 

No século XVIII, começou a nascer em Pest um novo bairro judeu, que corresponde actualmente à metade interior do Erzsébetváros (o Distrito VII), dentro do perímetro definido pela rua Király, avenida Erzsébet, rua Dohány e avenida Károly. Em 1867, os judeus húngaros passaram a ter direitos civis idênticos aos da restante população, e a comunidade floresceu. Budapeste estava em rápido crescimento urbano e económico, atraindo cada vez mais habitantes, que em 1910 já ultrapassavam o milhão – e quase um quarto das pessoas professavam a fé judaica. O bairro judeu era uma área comercial e residencial vibrante, e constituía o núcleo cultural e religioso da comunidade, contando com três sinagogas.

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Depois da Primeira Guerra, o Império Austro-Húngaro desintegrou-se e a Hungria perdeu dois terços do território que detinha antes do conflito e mais de metade da sua população. A instabilidade económica crescente levou ao descontentamento social e a uma cada vez maior animosidade contra os judeus, que se transformaram em alvo preferido dos líderes húngaros, em especial depois da subida ao poder de Miklós Horthy, que instaurou um regime de extrema-direita influenciado pelas políticas anti-semitas da Alemanha nazi. Após a ocupação alemã em Março de 1944, as autoridades húngaras ordenaram que o bairro judeu fosse transformado em gueto e completamente separado do exterior. Em apenas 56 dias, muitos milhares de judeus foram deportados para os campos da morte na Polónia, e o partido ultranacionalista NYKP, que esteve no poder entre 15 de Outubro de 1944 e 28 de Março de 1945, matou mais de dez mil. Dos que restaram, a maioria morreu de fome, doença ou hipotermia nas ruas do gueto.

 

A chegada do exército soviético em Janeiro de 1945 libertou o gueto e os seus poucos sobreviventes, mas durante a era comunista a população do bairro foi diminuindo, atraída pela modernidade dos distritos mais periféricos de Budapeste. O declínio e as adulterações imobiliárias foram alterando o carácter original da judiaria, e a gentrificação ocorrida nos últimos vinte anos deu-lhe um rumo diferente. Permanecem as três sinagogas, das quais a da rua Dohány é a mais frequentada e também a mais famosa, por ser a maior da Europa. E é de facto um edifício belíssimo e impressionante, construído em meados do século XIX em estilo neo-românico combinado com elementos mouriscos e bizantinos. Permanece também o traçado meio irregular das ruas densamente construídas, onde ainda predominam os edifícios de arquitectura historicista, as suas fachadas debruadas ou forradas a pedra, com grandes janelas e elementos ornamentais ilustrativos de todos os “neos” – neoclássicos, neogóticos, neobarrocos.

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As cicatrizes dos acontecimentos da Segunda Grande Guerra ainda são visíveis actualmente, como também o são os danos provocados pelas décadas de abandono a que o bairro foi votado. E no entanto, qual fénix renascida das cinzas, é precisamente devido à sua degradação que este antigo bairro judeu é agora um dos locais mais trendy da Europa, elevando o Erzsébetváros à categoria de distrito mais populoso de Budapeste. As rendas baixas de edifícios dilapidados em ruas negligenciadas começaram a atrair, nos primeiros anos deste século, uma população jovem e empreendedora, pese embora com poucos meios financeiros para investir. O primeiro caso de sucesso foi o Szimpla Kert, ícone dos chamados “ruin bars” que são agora uma espécie de imagem de marca da cidade. O que começou por ser uma tentativa de salvar da demolição um complexo que em tempos abrigou habitações e uma fábrica, tornou-se primeiro no local mais cool de Budapeste, frequentado pela juventude liberal e vanguardista, e depois numa atracção turística que é obrigatório visitar. O espaço degradado foi sendo progressivamente preenchido com toda a espécie de móveis velhos, objectos mais ou menos estranhos, bugigangas, plantas, luzes e tudo o que se possa imaginar, funcionando simultaneamente como café e bar, local de espectáculos, festas e eventos, mercado de produtos agrícolas ao domingo de manhã, e loja de artigos kitsch. Cada sala é um mundo diferente, há escadas e recantos, grafitis nas paredes, cores vibrantes, banheiras que são assentos, bicicletas penduradas no tecto, manequins, e até um carro. Uma miscelânea caótica que atordoa os sentidos à noite, quando o barulho das pessoas e da música alta nem nos deixa pensar, mas é surpreendentemente convidativa durante o dia, quando o lugar está tranquilo e quase vazio. Duas faces de uma mesma moeda.

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Atrás do sucesso do Szimpla Kert vieram lojas, ateliers, restaurantes com comida de todo o mundo, mais bares, e muita arte de rua. Na nova vida deste bairro convivem o antigo e o novo, judeus e gentios, habitantes e turistas, a tradição e o vanguardismo. Claro que nem tudo são vantagens, e como em tantos centros históricos de outras cidades, a popularidade e o turismo estão a fazer subir os preços das habitações, e a afastar os residentes para outros distritos mais baratos e mais tranquilos. É mais uma fase na história do bairro judeu de Budapeste.

 

 

CASTELO DE VIDE

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Embora não haja certezas quanto às origens do bairro judeu de Castelo de Vide, há indícios de que as primeiras famílias judias se tenham instalado na localidade em princípios do século XIV. Apesar da segregação existente, que tinha como vantagem fortalecer laços dentro da própria comunidade e manter inalterados os seus hábitos religiosos e culturais, a convivência entre cristãos e judeus era pacífica e mutuamente benéfica. Por tradição, além da sua vocação mercantil, a comunidade judaica apostava no estudo e no desenvolvimento intelectual, razão pela qual muitos dos seus elementos desempenhavam funções socialmente importantes, fosse como físicos, botânicos, professores, prestamistas ou homens de leis. Foi aqui que nasceu Garcia da Orta, filho de judeus conversos, que mais tarde estudou medicina na Universidade de Salamanca e exerceu esta profissão em Goa a partir de 1534.

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O número de famílias judaicas em Castelo de Vide cresceu sobretudo após 1492, ano em que os Reis Católicos de Espanha ordenaram a expulsão de todos os judeus que viviam nos seus territórios, muitos dos quais se refugiaram em Portugal, onde ainda podiam professar a sua religião sem incómodos de maior. Crê-se que mais de cinco mil judeus vindos de Espanha tenham passado por ali, e bastantes terão ficado. No entanto, o Portugal como refúgio tranquilo foi sol de pouca dura. A negociação do casamento de D. Manuel I com Isabel de Aragão, filha dos Reis Católicos, levou a que o nosso rei fosse pressionado a, também ele, expulsar do reino quem não se convertesse ao catolicismo, o que acabou por suceder em 1496. Quarenta anos mais tarde foi criado em Portugal o Tribunal da Inquisição, marco negro na história da convivência religiosa no nosso país, onde se iniciou um terrível período de perseguição aos cristãos-novos que só terminaria em 1767 com a reforma pombalina e com o fim da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos.

 

Apesar das conversões forçadas, a prática do judaísmo nunca desapareceu completamente em Portugal, e Castelo de Vide testemunha bem esse facto. Nas ruas do antigo bairro judeu, entretanto sujeito a modificações e recuperações, ainda se notam elementos característicos do tipo de ocupação que tiveram, e que continuaram preservados ao longo dos séculos. A judiaria desenvolveu-se na encosta nascente da vila, a partir das muralhas do castelo. O largo onde fica a Fonte da Vila é o centro radial deste bairro – e a fonte é, além disso, o ex-libris de Castelo de Vide. Aproveitando as águas de uma nascente, a fonte terá sido ampliada ao longo dos tempos, datando do século XVI o essencial da forma que lhe conhecemos hoje: rectangular, ornamentada e com uma cobertura piramidal suportada por colunas de mármore. Deste largo saem as ruas da Fonte, do Arçário, do Mestre Jorge e a rua Nova, que ligam a várias outras num padrão sinuoso e irregular. Nas ruas empedradas que levam ao Castelo, as casas têm habitualmente duas portas no piso térreo: uma daria acesso às escadas que levavam ao piso superior, de habitação, e a outra seria a da loja onde era desenvolvida a actividade comercial da família. Muitas destas casas ainda conservam os pórticos ogivais de granito, alguns com gravações nas impostas que suportam o arco, que podem ser símbolos profissionais ou pequenos entalhes com cerca de 10 cm, característicos do culto judaico, que têm o nome de “mezuzot”.

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Na esquina da Rua da Fonte com a Rua da Judiaria encontramos o edifício da antiga Sinagoga, que agora é um museu. As sondagens arqueológicas efectuadas durante as obras de recuperação revelaram que o edifício teve períodos de ocupação distintos desde pelo menos o século XIV, com uma primeira fase até ao século XVI e uma outra mais tardia. Crê-se que no piso superior se encontraria o Tabernáculo e um espaço dedicado ao ensino. Escavados na base do piso inferior descobriram-se três silos, que também apresentam indícios de terem sido usados em épocas diferentes. Terá passado a servir de residência particular no século XVIII, e foi reconstruída em 1972 de acordo com a sua traça original.

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Deste passado, mantém-se na memória colectiva a importância da celebração da Páscoa em Castelo de Vide. Da prática do judaísmo nesta vila foi herdada a bênção dos borregos, cujo abate posterior tem semelhanças com o ritual judaico tradicional.

 

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Estes são apenas quatro exemplos de bairros judeus, entre os muitos que estão bem identificados em vários países da Europa. Como tudo o que envolve reconstituição histórica secular, há sempre alguma (por vezes bastante) controvérsia em torno destes bairros. Mas isso não lhes retira o encanto, nem afecta a minha capacidade de imperfeitamente imaginar como terá sido o dia-a-dia das pessoas que ali viveram ao longo dos tempos, e que outras histórias interessantes aquelas paredes contariam se pudessem falar.

 

(Este artigo foi publicado pela primeira vez no blogue Delito de Opinião)

 

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