Jardins e arroz de sarrabulho
E perante este título, perguntam vocês: o que é que uma coisa tem a ver com outra? Pois tem, e muito, porque são duas particularidades que me encantam em Ponte de Lima, uma das vilas mais interessantes do Minho (e eu adoro o Minho!). Se ainda não conhecem, está na hora de programar uma visita a esta que é a vila mais antiga de Portugal.
A vila dos jardins
Talvez não saibam, mas desde 2003 que Ponte de Lima organiza todos os anos o Festival Internacional de Jardins (2020 foi a excepção, por razões pandémicas). E o sucesso da iniciativa tem sido tanto que a forma como este festival está concebido foi adoptada do outro lado da fronteira, na localidade galega de Allaríz – cuja visita, já agora, aproveito para recomendar (podem ficar a saber mais no post Allaríz, jardins e muito mais).
A edição de 2022 começou em Maio e o tema deste ano é “Os Jardins e as Alterações Climáticas”. Até Outubro (inclusive) vai ser possível visitar 11 jardins concebidos por paisagistas de vários países, seleccionados de entre todas as propostas recebidas durante o ano passado, provenientes de 12 nacionalidades diferentes. Vai continuar também exposto o jardim mais apreciado pelo público na edição de 2021, criado por Magda Jandová, da República Checa, e cujo título é “Jardim do Diálogo”.
A qualidade do Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima já foi reconhecida por diversas organizações e teve distinções internacionais. Neste ano, como de resto tem sido mote do festival, é dada importância especial à preservação do ambiente – para a qual os jardins contribuem de forma notável, sem qualquer dúvida, mas onde é sempre possível fazer mais e melhor, tanto na escolha das variedades vegetais como na reutilização cíclica de materiais e plantas.
Se gostam de jardins, a visita a este festival é imperdível. Se gostam de originalidade e de projectos diferentes, também. E é sempre uma boa desculpa para uma ida a Ponte de Lima.
Festival Internacional de Jardins
https://www.festivaldejardins.cm-pontedelima.pt/
Município de Ponte de Lima, Praça da República, 4990-062 Ponte de Lima
Horário:
Maio, Junho e Setembro: dias úteis - 10h-12h/13h30-19h; 2ª feira - 13h30-19h; fins de semana e feriados - 10h-19h
Julho e Agosto: de 3ª a domingo - 10h-20h; 2ª feira - 13h30-20h
Outubro: de 3ª a domingo - 10h-18h; 2ª feira - 13h30-18h
Informações: telefone 258 900 400 email: festivaldejardins@cm-pontedelima.pt
Mas no capítulo dos parques e jardins, Ponte de Lima não vive só do festival. Para começar, há a magnífica Avenida dos Plátanos, que acompanha uma parte da margem leste do rio. É um lugar idílico para passear e descansar, seja com tempo quente ou em dias mais enevoados, quando adquire uma atmosfera meio misteriosa. Em cada estação do ano, estes plátanos centenários (foram plantados em 1901) oferecem uma perspectiva diferente, mas sempre fascinante.
Ao lado da Avenida dos Plátanos, o jardim do Convento de Santo António dos Terceiros, à entrada do museu com o mesmo nome, desenvolve-se em torno de um tanque central, dividido geometricamente em espaços diferentes, com zonas separadas para as plantas medicinais, para os temperos, e para as plantas odoríferas. O jardim foi recuperado com recurso a documentos antigos.
Quanto ao museu, está alojado no conjunto arquitectónico formado por um antigo convento e pelas instalações da igreja da Ordem Terceira de S. Francisco, edifícios com origens medievais e remodelados no período barroco. O espólio do museu é essencialmente constituído por arte sacra, em escultura, pintura e ourivesaria.
Museu dos Terceiros
https://www.museuspontedelima.com/
Avenida 5 de Outubro, 4990-028 Ponte de Lima
Horário: de 3ª a domingo - 10h-12h30 / 14h-18h (encerra à 2ª feira e nos dias 1 de Janeiro, 1 de Maio, 25 de Dezembro, domingo de Páscoa, 2ª feira de Feiras Novas e 20 de Setembro)
Informações: telefone 258 240 220 email: mute.geral@museuspontedelima.com
Em volta do edifício da Câmara Municipal estende-se o Jardim Dr. Adelino Sampaio, com buxos e canteiros estilizados, camélias, roseiras e outras plantas floridas, um relógio de sol e a Fonte da Vila – cuja água é tão boa que, segundo consta, quem a beber nunca mais vai conseguir deixar Ponte de Lima. Como ainda não a provei, não consigo confirmar se a lenda corresponde de facto à realidade.
Passando pela ponte romano-medieval para o outro lado do rio, encontramos do lado direito os Campos do Arnado, uma área de lazer arborizada com parque de merendas e, mesmo ao lado, aquele que é na minha opinião um dos jardins mais bonitos do nosso país: o Parque Temático do Arnado.
Temático porque está dividido em quatro jardins diferentes, cada um em seu estilo. Há um jardim romano, inspirado na Casa dos Repuxos de Coimbra, com piso de mosaicos e uma colunata de tijolo e pérgulas em volta de um lago ajardinado. No jardim barroco, o tema principal são as rosas, declinadas em várias cores, com canteiros delimitados por buxo ao estilo dos parterres franceses. O jardim labirinto desenvolve-se em torno de uma folly de metal, colocada numa zona mais elevada e ornamentada com jasmins, onde também crescem belos exemplares de ácer japonês. E depois há o jardim Renascença, com ciprestes e canteiros de azáleas e rododendros, e água que escorre por uma parede de pedra em socalcos.
Aos jardins temáticos soma-se um horto botânico com uma estufa muito bonita. Feita de ferro forjado cor de chumbo, num dos lados está adjacente a dois lagos com nenúfares, e no interior tem plantas exuberantes, algumas quase a chegarem ao tecto.
As alamedas têm latadas com vinhas ou trepadeiras, aproveitando os esteios da exploração agrícola que existiu em tempos no local, e de que também foram recuperados e integrados vários outros elementos, como o tanque – que ainda é usado para a rega – ou o espigueiro. Há um pomar, viveiros, e um parque infantil. Nos antigos anexos agrícolas da Casa do Arnado está agora instalado o Centro de Interpretação do Território de Ponte de Lima, um espaço expositivo etnográfico e de informação.
Este parque-jardim é uma das mais-valias de Ponte de Lima, e um daqueles lugares em que apetece ficar.
Curiosidades históricas
Ponte de Lima recebeu carta de foral em 1125, quando a região fazia parte do Condado Portucalense e o nosso país ainda não era sonhado. Com quase 900 anos de existência, é óbvio que a vila tem muitas histórias para contar. Uma delas explica a razão pela qual junto ao rio encontramos, numa das margens, esculturas e painéis de madeira pintada que representam a “amostra” de uma centúria romana e, na outra margem, a figura imponente de um comandante romano, de seu nome Décio Junius Brutus, montado num cavalo branco. Ora diz a lenda que o Lima foi, numa ocasião longínqua, confundido com o Rio Lethes – ou Rio do Esquecimento, porque provocava perda de memória a quem entrasse nas suas águas. Um exército romano, ao deparar-se com o rio Lima e admirado com a beleza do lugar, julgou ter encontrado o Lethes, razão pela qual os soldados (uns medricas, estes romanos...) se recusaram a atravessá-lo. Foi preciso que o comandante desse o exemplo e passasse para a outra margem, de onde depois chamou cada um dos seus subalternos pelo nome, provando assim que, afinal de contas, a sua memória continuava inalterada e portanto aquele não era o Rio do Esquecimento.
Quando D. Teresa outorgou a Ponte de Lima o foral que fez dela a primeira vila portuguesa, a localidade tinha o nome de Terra da Ponte. De facto, a ponte que é hoje um dos ícones limianos data muito provavelmente do século I e fazia parte da via romana que ligava Braga (Bracara Augusta) a Astorga (Asturica Augusta). Era, e continuou a ser durante a Idade Média, a única passagem segura que existia sobre o rio Lima. No século XIV foi necessário acrescentá-la, provavelmente devido a alterações no leito do rio, e é por este motivo que a ponte tem dois troços distintos – embora, a bem da verdade, actualmente seja difícil para um leigo perceber que existe alguma diferença entre eles.
À entrada dos Campos do Arnado, junto à Igreja de Santo António e à ponte, há uma estrutura quadrangular aberta muito original, que chama a atenção: é a Capela do Anjo da Guarda e crê-se que a sua origem será de finais do século XIII. No entanto, uma grande enchente do rio acabou por a destruir parcialmente, e foi recuperada no século XVIII em estilo barroco. O anjo da guarda neste caso é São Miguel, o protector de Ponte de Lima.
O Largo de Camões é uma espécie de ponto de encontro da vila e no seu centro há um chafariz, que no entanto só está neste local desde 1929. Originariamente foi erguido, em 1603, naquele que é agora o Largo Dr. António Magalhães. Era uma das poucas fontes de água potável da localidade, por isso foi necessário instituir penalidades para quem a sujasse, gravadas num bloco de granito que ainda hoje é visível. O castigo mínimo para quem conspurcasse a água era prisão durante três dias, ou seis dias para os reincidentes.
Da antiga muralha que protegia Ponte de Lima, construída durante o reinado de D. Pedro I, existem ainda duas torres e alguns pedaços. Uma delas, que já se chamou da Porta Nova e agora é conhecida como Torre da Cadeia Velha, passou a ser utilizada como prisão no séc. XIV, com o piso superior destinado à cadeia feminina e os dois pisos inferiores reservados aos homens. Curiosamente, só nos anos 60 do século passado é que deixou de ter esta função.
A outra torre também já teve várias designações: agora é Torre de São Paulo, mas já foi da Expectação e do Postigo. No painel de azulejos azuis e brancos colocados numa das fachadas, a referência a uma outra lenda popular na região. Andava o nosso rei D. Afonso Henriques à caça por aquelas bandas, acompanhado por vários fidalgos, quando lhe apareceu ao caminho o capelão do Mosteiro de Vitorino das Donas, seguido por ajudantes carregados com uma generosa merenda. Sentaram-se todos a descansar e a comer, até que a páginas tantas começaram a ver ao longe, para norte, uma grande nuvem de pó, a que se juntava o barulho de patas em tropel. Julgando que fossem inimigos, os fidalgos apressaram-se a montar nos seus cavalos e, espírito guerreiro oblige, foram ao encontro da confusão. Apenas o capelão do mosteiro se deixou ficar refastelado, a aproveitar a boa comidinha. Não tardou muito o regresso dos nobres, em grande e divertida algazarra; ao desmontar do seu cavalo, o rei dirigiu-se ao padre: Cabras são! – revelou ele. E para comemorar o engano, definiu naquele lugar um couto, que doou ao mosteiro. O local ficou desde essa altura conhecido como Cabração, aldeia situada alguns quilómetros a norte de Ponte de Lima. A Torre de São Paulo tem ainda marcados, na mesma fachada, os níveis que a água do Lima atingiu em cheias de épocas passadas.
O século XVIII trouxe prosperidade a Ponte de Lima, que cresceu e extravasou as suas muralhas, razão pela qual encontramos na vila muitas casas apalaçadas e igrejas barrocas, como a de Santo António, a de Nossa Senhora da Lapa, a da Misericórdia, ou a de Nossa Senhora da Guia, situada ao fundo da Avenida dos Plátanos. Quanto à Igreja Matriz, as suas raízes são bastante anteriores: foi construída em meados do século XV, como se pode perceber pelos seus elementos moderadamente góticos. Remodelações em séculos posteriores deram-lhe uma estrutura maneirista e um interior parcialmente barroco – uma mistura que lhe dá alguma peculiaridade.
Passeando na vila, é também impossível ignorar as muitas esculturas que encontramos um pouco por todo o lado. Algumas são representativas das tradições mais características de Ponte de Lima, como as colocadas no Passeio 25 de Abril: uma que evoca o trabalho no campo e a outra que celebra o folclore e as Feiras Novas – realizadas todos os anos no segundo fim-de-semana de Setembro, com romarias, muita música, fogo-de-artifício, concursos e desfiles de gigantones e cabeçudos; ou a escultura de um touro que vemos ao pé da Igreja Matriz e remete para a Vaca das Cordas, uma manifestação tão antiga que se desconhece a sua origem. Preso por cordas, um touro desfila pelas ruas na véspera do Corpo de Deus, dá obrigatoriamente três voltas à Igreja Matriz, e depois é deixado meio à solta no areal junto ao rio, perseguindo quem o provoca.
No Largo de São José, a figura em pedra de um acordeonista, meio naif, homenageia os tocadores deste tipo de instrumentos musicais, sempre presentes nas festas minhotas. Há também muitas esculturas dedicadas a figuras notáveis da cultura limiana, como António Feijó, o Conde de Aurora e o Cardeal Saraiva, entre outros. Na ponte romana há um rosto esculpido que assinala o facto de Ponte de Lima ser um ponto de passagem do Caminho Português de Santiago. Com uma carta de foral em riste, na Praça da República está representada Dona Teresa, mãe do fundador de Portugal. E no Largo da Picota, a fonte rudimentar, que tem ar de ser bem antiga, tem no cimo a imagem em pedra de uma mulher risonha com um cântaro à cabeça, a que dão o nome de Maria da Fonte.
O arroz de sarrabulho
Chegamos finalmente à parte mais saborosa de uma visita a Ponte de Lima. Aviso já que deve ser dos lugares onde melhor se come no nosso país, tanto pela quantidade de restaurantes e “tascas”, como pela qualidade do que neles se cozinha. Há receitas locais de lampreia e de bacalhau, mas o prato mais afamado e que é obrigatório provar nesta terra é sem dúvida o arroz de sarrabulho, sempre acompanhado de rojões de porco e sangue frito e também, de preferência, de um bom vinho verde tinto – mas daquele mesmo bom, para não estragar a experiência. Restaurantes com nome e fama não faltam, mas aquando da minha última visita, o acaso, a fome e a chuva levaram-me a descobrir a Taverna do Artur, na rua do Arrabalde. Era domingo e, do lado de fora da porta, uma ardósia apregoava “Hoje temos sarrabulho caseiro”. Nada mais foi preciso para eu entrar e, no que toca à nossa gastronomia tradicional, foi das decisões mais acertadas da minha vida. Se querem uma experiência de ir às lágrimas (no bom sentido!) aproveitem esta minha sugestão, porque o arroz de sarrabulho que comi estava qualquer coisa de sublime. Os acompanhamentos também estavam bem confeccionados, mas o arroz… o arroz era divinal, e em tanta quantidade que acabei por não ter barriga para mais nada – estar a desperdiçar esta maravilha para comer outras coisas pareceu-me um sacrilégio. Só de pensar nesse almoço, até salivo…
E para a hora do petisco, deixo-vos uma sugestão mais brejeira: a Tasca das Fodinhas, na rua do Rosário. O menu é, digamos… curioso, e requer “tradução”, mas a comida é boa e o vinho também, tudo servido com a habitual simpatia e desenvoltura das gentes do norte.
E pronto, creio que já perceberam porque é que vale a pena ir conhecer ou revisitar Ponte de Lima, e a razão para o título deste artigo. Esta terra minhota nunca desilude.
Bons passeios!
(Este artigo foi publicado pela primeira vez no website Fantastic)
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