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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Ter | 26.04.22

Um pedaço do Douro

 

Nos seus 325 km em terras portuguesas, não faltam ao Douro motivos para o visitar com regularidade. As paisagens que ele oferece são sempre soberbas, e mesmo que já tenha passado várias vezes pelo mesmo lugar, ele nunca se mostra igual aos meus olhos.

 

Há uma estrada que acompanha grande parte do percurso do rio Douro: a N222. O seu troço entre Peso da Régua e o Pinhão foi considerado, através de fórmula matemática desenvolvida por uma conhecida empresa de rent-a-car, a melhor estrada do mundo para conduzir. Mas a N222 não pode nem deve ser resumida a estes icónicos 20 km. Há muito mais estrada – menos perfeita e com mais curvas, é certo, mas que corre entre panoramas igualmente inesquecíveis sobre o rio e desvenda alguns segredos ainda bem guardados. E é por estes caminhos que agora vamos passear.

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Dia 1

 

Este nosso encontro com o rio começa à distância, mas em grande. No local onde o Paiva desagua no Douro e confluem três distritos (Porto, Aveiro e Viseu), há uma ilha a que chamam dos Amores. O nome vem de uma lenda que envolve um camponês e uma fidalga, um amor contrariado, um assassínio e um afogamento – tragédia portuguesa do melhor, como não podia deixar de ser. A História é mais prosaica e chama-lhe ilha do Castelo, pois nela existem vestígios de uma torre medieval e outros ainda mais antigos, com vários milhares de anos. O melhor local para abraçar toda esta paisagem é o Miradouro de Catapeixe – que não fica na N222 mas sim na sua irmã N224, um curto desvio mais do que justificado pelas vistas que dele alcançamos: as curvas do Douro e o seu encontro com o Paiva, as arribas verdejantes riscadas pelos socalcos e pontilhadas pelo branco das casas, uma embarcação de cruzeiro ancorada e outra que se desloca em passeio, e a pequena ilha que é o centro das atenções. Nem o céu a ameaçar chuva rouba beleza a esta visão em cinemascope.

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Tomamos a N222 e percorremos uns bons quilómetros até que encontramos o desvio para Mourilhe e a seguir a indicação para o Parque de Lazer do Ribeiro de Sampaio. Aviso-vos já de que não estão preparados para o que nos espera. Ao lado da estrada, entre as árvores, um parque de merendas com mesas e bancos de madeira. Seguimos o som da água a cair. O ribeiro passa sobre um maciço granítico e despenha-se na forma de uma cascata abundante, para depois se acalmar subitamente e se transformar num espelho de água que vai fundir-se com o Douro mais à frente.

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Do outro lado da estrada há um percurso pedestre que acompanha o ribeiro encosta acima, entre grandes pedras cobertas de musgo e de humidade, árvores de todas as espécies, algumas altíssimas, fetos e folhas secas caídas no trilho de terra batida, e a água a correr em ziguezague e aos saltinhos sobre as rochas.

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Alguém pendurou um baloiço rudimentar na orla do ribeiro, que em época de calor será certamente menos caudaloso. O verde é a cor dominante, e nem as ruínas dos antigos moinhos escapam à cor. É a natureza em estado quase selvagem, e só os corrimãos de metal colocados nalguns pontos mais propensos a escorregadelas mostram que já houve ali intervenção humana. Mais acima, outra queda de água mais vistosa, cruzada por uma ponte feita de troncos de madeira. Encantador é o adjectivo mínimo que encontro para descrever este percurso, e mesmo assim não lhe faz justiça.

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Apesar da vontade de ficar por ali, por esta altura já serão horas de pensar em comer. Subimos até ao Parque de Campismo e Caravanismo de Mourilhe, situado num outeiro com vistas privilegiadas sobre o Douro. Recente e moderno, tem espaços definidos para tendas e para autocaravanas, e os bungalows são paralelepípedos castanhos encarrapitados irregularmente sobre o terreno, como se fossem troncos ali largados por acaso. Ao lado da piscina, um edifício baixo abriga o restaurante Escritório, também ele com um ambiente clean e discreto. O acolhimento é eficiente e muitíssimo simpático, e a comida não podia ser melhor. Se houver trutas, é a escolha certa – foram as melhores que comi até hoje, servidas com esmagada de batata e legumes.

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O destino final de hoje é Cinfães. Situada a 400 metros de altura e já nas franjas da serra de Montemuro, a vila é arejada, tranquila, e funde harmoniosamente o antigo e o novo sem que se notem grandes arroubos de mau gosto. Tem 3400 almas, mas pontos de interesse não faltam e pede para ser descoberta com vagar.

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O centro histórico, pequeno e compacto, rodeia o coração da vila: a Igreja Matriz, dedicada a S. João Baptista. Construída no séc. XVIII sobre o local onde já existia uma capela (com fundações que alguns investigadores dizem serem dez séculos mais antigas), exemplifica o estilo barroco presente em tantos dos nossos edifícios religiosos: alvenaria pintada de branco com os vários volumes debruados com pilastras de granito, uma fachada ornamentada com óculos, janelas e frisos e decorada com motivos ondulados também em pedra granítica. A torre sineira está no centro, coroada com a tradicional varanda de balaústres e uma pequena cúpula, e abundam os habituais pináculos de bola ou “tipo cebola” e as cruzes latinas.

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Ao lado da igreja fica o Jardim Serpa Pinto – árvores bem alinhadas, relva, flores e um laguinho. Alexandre Serpa Pinto foi militar e um dos nossos mais famosos exploradores em África. Terá provavelmente nascido em Vimieiro (que pertence ao concelho de Marco de Canavezes), mas a sua família vivia desde finais do século XVIII na região de Cinfães. Esta ligação umbilical traduz-se na vila em várias homenagens à sua figura, desde o busto colocado no jardim a nome de rua, de escola e de museu.

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O Museu Serpa Pinto fica também ao pé do jardim. É um edifício simples (que já foi posto da GNR, cadeia e pólo de serviços da Câmara Municipal), pintado de amarelo, mas que não passa despercebido por ter no exterior, à frente da fachada principal, várias esculturas modernas. São duas as colecções que o museu expõe permanentemente: uma é constituída por parte do espólio de Serpa Pinto, e a outra por peças encontradas nas escavações arqueológicas que têm sido feitas nas terras do município.

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Nas ruas em volta do jardim e ao longo das encostas – passear em Cinfães é um sobe-e-desce quase constante – há edifícios curiosos que parecem um patchwork arquitectónico. Uns têm telhados bastante inclinados, outros têm partes revestidas a ardósia em escama, um parece uma casinha sobre outra, outro tem um telhado semi-hexagonal com estátuas no topo, e outro uma varanda saliente, fechada e envidraçada, que se apoia em esquadros de ferro forjado. Aqui não há monotonia na construção e o passeio tem de ser feito de nariz no ar, porque são estes detalhes que dão alma às casas. Também não passa despercebido o Portão da Quinta de Fervença, um grande pórtico barroco, em granito, com um brasão exuberante. Em tempos esteve junto à igreja, mas a construção da estrada obrigou a que fosse deslocado

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Uns degraus levam-nos a mais um largo com árvores, um pequeno anfiteatro e repuxos que sobrem do chão. É o Largo da Fonte dos Amores, local onde ocorrem alguns dos eventos culturais da vila. A água projectada sobe a alturas variadas, cada repuxo com a sua cadência própria, numa espécie de dança borbulhante, iluminada pelas luzes que se acendem no solo ao cair da noite. Quanto à fonte que dá o nome ao largo, é uma bica tímida que cai da parede de pedra a um canto, meio disfarçada por baixo das escadas que levam à rua superior.

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É precisamente por esta calçada que vamos chegar à Tasquinha do Amado, uma das “mecas” gastronómicas da vila e da região. O restaurante é pequeno e acolhedor, com muita madeira e uma decoração onde se misturam placas de matrículas e sinais de cidades estrangeiras, candeeiros com design contemporâneo, relógios de parede, o capote de uma confraria e mais uma parafernália de outros objectos. A carne arouquesa é a rainha do menu, declinada em diversos tipos de confecção, mas há também petiscos de várias outras espécies, bons vinhos, e até opções para quem for vegetariano. O mais importante é que tudo é bom, por isso percebe-se que muitas vezes seja difícil encontrar mesa em cima da hora. A somar a isto, a simpatia dos donos Miguel (filho do Amado que deu o nome à casa) e Inês (a chef) também ajuda à popularidade do restaurante. Altamente recomendável para terminar o dia em beleza.

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Dia 2

 

A poucos quilómetros de Cinfães, o rio Bestança desagua no Douro, naquele que é também um dos locais mais icónicos do percurso deste grande rio em Portugal. E é por isso que começamos o dia da melhor maneira, com o olhar inundado por esta paisagem maravilhosa, naquele que é o spot de excelência para observar, com os socalcos vinhateiros aos nossos pés, o encontro dos dois rios: o Miradouro de Teixeirô. Do lado esquerdo, ao fundo, os arcos de pedra da ponte ferroviária da Pala destacam-se contra o verde profundo das arribas. Do lado direito, o Bestança faz concorrência ao Douro, que apenas se distingue por ser ligeiramente mais largo e pela pequena ponte metálica branca que une as suas duas margens. Mordomia a que o Bestança ali não tem direito: para o atravessar há que voltar à N222 e seguir até Pias.

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O que até calha bem, porque Pias é local de visita obrigatória neste roteiro. Aldeia com pouco mais de cem habitantes permanentes, já foi em tempos muito mais importante e próspera, e o testemunho maior deste facto é precisamente a sua ponte, cujas origens remontam à Idade Média (embora a actual versão seja de inícios do século XX). Espalhadas pela encosta íngreme, entre vinhas e arvoredo, misturam-se casas senhoriais e outras mais humildes.

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No fundo do vale apertado corre o Bestança, que nasce a 12 quilómetros de distância e mil e qualquer coisa metros mais acima, na serra de Montemuro. A sua relevância é inversamente proporcional ao curto percurso: é um dos rios com melhor qualidade ambiental da Europa e está integrado na Rede Natura 2000. Nas margens há uma enorme variedade de espécies arbóreas – carvalhos, salgueiros, amieiros e castanheiros, entre muitas outras – e o peixe mais comum das suas águas é (claro!) a truta.

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Ao pé da ponte foi construído em 2018 o Parque de Lazer de Pias, que facilita o acesso ao rio e disponibiliza as infra-estruturas de apoio necessárias a quem visita a localidade. Há espaço de estacionamento e parque de merendas, um bar com esplanada (e um baloiço para as fotos…) e sanitários.

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O Bestança aqui é bastante estreito, escorre entre tufos de fetos, cenouras-bravas, dedaleiras, embudes e trevos-cervinos, e tão depressa corre e salta sobre grandes pedras como sossega e fica quieto, em jeito de espelho de água plácido. Na margem oposta à do Parque de Lazer ainda se vêem moinhos, um dos quais – o Moinho das Regadas – continua em funcionamento.

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É também em Pias que existe o Centro de Interpretação do Vale do Bestança, espaço expositivo e de informação para quem visita esta zona. Devido às limitações actuais, funciona essencialmente por marcação.

 

Centro de Interpretação do Vale do Bestança

https://cm-cinfaes.pt/municipio-cat/item/817-centro-de-interpretacao-do-vale-do-bestanca

Rua do Outeiro, Escola, Pias, Cinfães

Horário: 3ª a sábado 9h-13h e 14h-17h; domingo 9h-13h

Contactos: telefone 255 560 560  email turismo@cm-cinfaes.pt

 

Passamos sobre a Ponte de Pias, que faz parte da N222, e um pouco mais à frente encontramos o desvio para Boassas. Além de ser a aldeia onde a família Serpa Pinto construiu o seu solar – que é conhecido como Casa do Fundo da Rua e inclui uma capela – Boassas foi uma das participantes do concurso “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal”, que o Secretariado de Propaganda de Portugal organizou em 1938 e visava enaltecer a ideia de um país e de um povo rural, brando e conformado, o modelo ideal preconizado pelo regime salazarista. Deste concurso acabaria por sair vencedora a aldeia de Monsanto, que ainda hoje continua sem se descolar do título que lhe foi atribuído nessa altura. Quanto a Boassas, o concurso apenas teve a vantagem de deixar para a posteridade algum património documental sobre a vida na aldeia nessa época. Oitenta anos depois, notam-se diferenças óbvias: a população é mais reduzida e menos jovem, algumas casas mantêm a traça mas outras estão já completamente descaracterizadas, e apenas a vista sobre o Douro permanece, embora também ela com alterações na paisagem. Ainda assim, a aldeia mantém um certo encanto, e vale a pena perdermo-nos em passeio pelas suas ruas estreitas e ondulantes.

 

Um passeio que tem o Douro como mote não pode terminar sem nos aproximarmos dele, e por isso voltamos à N222 para descer até ao Porto Antigo. Acompanhando o Bestança, este é mais um dos troços desta estrada que surpreende pela belíssima vista que nos oferece – e não é de admirar que o silêncio se instale no carro, porque o cérebro está demasiado ocupado a tentar guardar tudo na memória, e as palavras só atrapalham. Chegamos por fim ao cais, onde talvez até esteja atracado um dos barcos que passeiam os turistas pelo Douro. Ainda por influência da Barragem do Carrapatelo, que fica a escassos quilómetros de distância, e porque este é precisamente o lugar onde o Bestança se une ao Douro, o rio mais parece um lago, e as colinas que espreitam umas por trás das outras fazem lembrar ilhotas tropicais, cobertas de árvores e semeadas de casas meio escondidas entre a vegetação.

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(Este artigo foi publicado pela primeira vez no website Fantastic)

 

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Um pedaço do Douro

Qui | 14.04.22

Bolonha: torres, arcadas, e muito charme

 

Uma da tarde, 34°C de temperatura do ar – ou, como diria Eça, um “calor de ananases”. Sentei-me na esplanada ainda quase deserta do Cesarina para aquele que iria ser o meu último almoço em Bolonha. Sob a protecção de um enorme chapéu-de-sol e com as árvores do complexo das Sete Igrejas de Santo Stefano a darem uma certa impressão de frescura, soube-me bem descansar enquanto esperava que me servissem um risoto de espargos. À minha frente alongava-se a Praça de Santo Stefano – que na verdade não é propriamente uma praça mas antes um espaço triangular, aberto na Via com o mesmo nome para acomodar vários palácios e as igrejas. Copo de vinho branco da Toscana na mão, dediquei-me ao tão italiano dolce far niente, no meu caso a simples arte de observar calmamente os edifícios de tons alaranjados, batidos pelo sol inclemente, as pessoas que iam e vinham, sacos de compras na mão ou máquinas fotográficas à tiracolo, muitas vezes de olhos postos num smartphone, e um ou outro ciclista de passagem. O risoto chegou e estava divinal, e depois veio também um tortino di cioccolato com cuore fondente, que tentei fazer render porque, a bem da verdade, estava com uma certa relutância em sair dali, e mais ainda de ir embora de Bolonha – a cidade como que me enfeitiçou.

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O meu primeiro almoço em Bolonha tinha sido algo diferente, mas também sossegado. Cheguei à Estação Central vinda de Florença, depois de uma curta viagem de 38 minutos no Frecciarossa, o topo de gama dos comboios de alta velocidade italianos (que pode chegar aos 300 km/hora). Ainda era cedo para dar entrada no alojamento e não me apetecia andar pela cidade de mala atrás, por isso atravessei o Parco della Montagnola, lugar fresco, cheio de árvores altas e vazio de confusões, e parei para almoçar. O parque tem um espaço nitidamente dedicado à população estudantil mais alternativa, com mesas e cadeiras de todas as espécies e feitios espalhadas entre as árvores, ao lado de uma osteria e um barzito, e de um pequeno recinto pavimentado onde decorria na altura uma aula de ioga. Entre um hambúrguer e um café pingado, deixei-me ficar por ali durante mais de uma hora, naquilo que foi para mim uma espécie de reset depois de alguns dias na agitação de Florença.

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Esta minha visita a Bolonha foi um acidente de percurso – e é a prova de que há acidentes felizes. Na história das minhas viagens existe uma boa mão cheia de lugares que se atravessaram no meu caminho sem que fosse propriamente essa a minha intenção, e dos quais acabei por ficar cativa. Bolonha foi uma das mais recentes adições a essa lista. Quando preparei a minha viagem de duas semanas pela Toscana, era suposto o voo de regresso a Portugal ser a partir de Bolonha, e por isso decidi reservar uns dias para conhecer um pouco da cidade. Como não era um destino que fizesse parte dos meus interesses principais, não fiz o “trabalho de casa” e não pesquisei praticamente nada antecipadamente. Cheguei sem saber o que esperar ou o que iria ver, portanto a surpresa foi completa (e boa!). E ser surpreendida é uma das melhores emoções que posso sentir em viagem.

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A cidade das torres

 

A idade dos lugares não se pode aferir pela nossa, que somos meros acidentes de percurso na história da Terra. Ainda assim, Bolonha é uma cidade velha, mesmo pelos padrões de povoamento da Europa. Inserida numa região habitada desde inícios do século IX a.C., foi aqui que os Etruscos fundaram o que se supõe ter sido uma estrutura urbana complexa a que deram o nome de Felsina, no século VII a.C. Sucessivamente ocupada ao longo do tempo por Gauleses, Romanos e várias tribos bárbaras, passou a fazer parte do reino de Itália em finais do século IX. Mas foi a fundação da Universidade em 1088 (o que faz dela a Universidade mais antiga do mundo em funcionamento contínuo) que deu impulso ao período de maior desenvolvimento da cidade, e ao aparecimento daquelas que são as suas duas características mais marcantes em termos arquitectónicos: as arcadas e as torres.

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Os historiadores crêem que nos séculos XII e XIII tenham sido construídas em Bolonha qualquer coisa como entre 80 e 100 torres. Porquê? Não se sabe ao certo. Presume-se que algumas terão funcionado como símbolo de riqueza e estatuto das famílias mais abastadas, e também como estruturas de defesa. As mais pequenas serviriam também de habitação. Certo é que este frenesim de construção em altura não se limitava a Bolonha. San Gimignano, 150 km a sul e em plena Toscana, foi outra das cidades medievais atacadas pela “febre” das torres: chegaram a ser 72, algumas ultrapassando os 50 metros de altura.

 

Em Bolonha, a loucura das torres acabou mais tarde por passar, e depois do século XIII estas gigantes começaram a desaparecer, fosse por serem demolidas, por colapsarem, ou por serem adaptadas a outas finalidades. Aos dias de hoje chegaram 22, a que se somam quatro torreões que faziam parte das muralhas do século XII, além de muitos vestígios remanescentes das casas-torre – que eram mais baixas, tinham mais aberturas, e cujas paredes eram menos espessas.

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As mais famosas são as duas torres que compõem o símbolo da cidade: a Torre Asinelli e a Torre Garisenda. A primeira é a mais alta de todas as torres de Bolonha: 92 metros, que quase me provocaram um torcicolo quando a olhei a partir do outro lado da Piazza onde estão situadas. A Garisenda é mais modesta, nos seus meros 48 metros de altura, mas bate a vizinha em graus de inclinação. São dois colossos de pedra castanho-avermelhada que se vêem de muitos pontos do centro da cidade, erectos como flechas, sobressaindo numa praça de dimensões modestas mas com um movimento tremendo, onde confluem pessoas e veículos de todas as espécies, constantemente. É possível subir à Torre Asinelli, mas confesso que deixei a tarefa para uma próxima visita. O calor e o cansaço de quase duas semanas de viagem, com muitos quilómetros feitos a pé, de carro e de comboio, esgotaram-me a coragem que é preciso ter para subir os 498 degraus que levam ao topo. Atrás das torres, o verde das cúpulas renascentistas da Basílica dos Santos Bartolomeu e Caetano parece querer competir com elas, mas sem grande sucesso.

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Fugi do sol da Piazza di Porta Ravegnana metendo por uma rua estreitinha e sombria cujo nome me chamou a atenção: Via de’ Giudei. Tenho um certo fascínio por judiarias, por serem geralmente bairros com características peculiares, uma espécie de mundo à parte dentro das localidades onde existiram. O traçado do gueto judeu de Bolonha, estabelecido no século XVI, permanece bem identificável na actualidade, definido por becos e ruelas que se entrelaçam no núcleo medieval da cidade. Também aqui existe uma torre, na entrada do Vicolo Mandria. É a Torre Uguzzoni, mas a sua altura respeitável passa praticamente despercebida neste bairro em que o céu não é mais do que uma nesga azul fininha lá no alto, as varandas se misturam com semi-arcadas, e a pedra alterna com as cores soalheiras das casas renovadas, que têm portadas garridas nas janelas e plantas que se derramam pelas paredes abaixo.

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A história da comunidade judaica em Bolonha remonta à segunda metade do século XIV, quando cerca de 15 famílias se instalaram na cidade. Apesar de verem as suas actividades continuamente controladas e das limitações que lhes foram sendo impostas ao longo dos anos, e envolvida sobretudo no comércio da seda e da joalharia, nos empréstimos bancários e na medicina, esta comunidade prosperou de tal forma que em meados do século XVI as sinagogas já eram em número de 11 – mais do que as existentes em Roma. Foi nesta altura que um decreto papal ordenou a criação do gueto, definido por muros e por portões que eram abertos quando o sol nascia (para que os seus habitantes pudessem ir trabalhar noutras partes da cidade, pois a segregação religiosa tinha o cuidado de ignorar as suas actividades, muito importantes para a cidade), fechados ao anoitecer, e constantemente vigiados. Uma das entradas era precisamente na Via de’ Giudei, outra no cruzamento da Via del Carro com a Via Zamboni, e uma terceira entrada fazia-se pelo arco que liga a Via Guglielmo Oberdan ao Vicolo Mandria. Tendo uma área disponível tão pequena, a comunidade aproveitava todo o espaço o melhor que podia, construindo em altura e até mesmo por cima das ruas, num puzzle tridimensional de que hoje ainda restam muitos vestígios. A espinha dorsal do bairro é a Via dell’Inferno, onde até 1943 existiu uma sinagoga (no actual número 16), que foi destruída pelos bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial. Mas não pensem que o nome da rua era devido a qualquer motivo religioso: resultou de uma mera associação do fogo às chamas do inferno, pois antes da criação do gueto existiam na rua várias oficinas de ferreiro.

 

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A cidade das arcadas

 

Em vez de desvantagem, a minha ignorância e total ausência de curiosidade prévia sobre Bolonha acabaram por ser uma bênção. Quando finalmente me decidi a sair do ar condicionado do alojamento para o calor da minha primeira tarde na cidade, as ruas que me levavam à Piazza Maggiore desvendaram aos poucos a maior surpresa que me estava reservada: as arcadas. Rua após rua, o piso térreo de cada edifício recua para dar lugar a um passeio coberto, com a fachada dos pisos superiores assente sobre pilares com materiais e formatos diversos. Elas são, na verdade, o elemento arquitectónico mais característico de Bolonha e responsáveis por grande parte do seu encanto. Só no centro histórico existem qualquer coisa como 38 km de arcadas, que se somam aos 53 km das que se encontram fora de portas. É a cidade com mais arcadas em todo o mundo e as suas são, desde 2021, património cultural da UNESCO.

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Mas qual é afinal a razão para esta abundância de arcadas? Falta de imaginação dos arquitectos? Mania cultural? Desenganem-se: o motivo começou por ser de ordem prática (como quase sempre são os motivos para tantos aspectos culturais que encontramos pelo mundo fora) e para o perceber temos de recuar um milénio. Em meados do século XI, Bolonha expandia-se a uma velocidade sem precedentes, tanto pela fama da sua Universidade, que atraía pessoas de todo o mundo, como pela chegada de cada vez mais camponeses em busca de outras condições de vida. Para alojar tanta gente, os habitantes começaram a ampliar as suas casas ao nível do piso superior, prolongando-as sobre a rua – como forma de conseguirem um aumento de espaço sem terem de pagar mais impostos – e apoiando estas estruturas sobre pilares de madeira. Nasceram assim as primeiras arcadas. Com o tempo, os bolonheses aperceberam-se de que elas lhes traziam outras mais-valias: abrigavam os passeantes tanto da chuva como do sol (e eu tive a prova de que tornam bem mais confortável a visita à cidade em dias de muito calor), afastavam os pisos térreos da sujidade das ruas, e favoreciam o comércio e os ofícios, que se desenvolviam muitas vezes no piso inferior das habitações. O sucesso destas arcadas levou a que em 1288 uma decisão municipal estabelecesse que não só as estruturas já existentes teriam de ser mantidas, como também cada edifício construído no futuro seria obrigado a ter a sua própria arcada. No século XVI, uma nova lei proibiu que fossem construídas em madeira, e a partir dessa altura passaram a ostentar colunas feitas de pedra ou tijolo.

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Hoje em dia, sobrevivem na cidade arcadas das mais variadas espécies: pórticos de madeira acrescentados, de origem medieval; beccadelli (semi-arcadas que não estão assentes em colunas) que se projectam das fachadas; arcadas góticas e renascentistas integradas nos edifícios; arcadas com dimensões monumentais, como os 10 metros de altura da arcada da Arquidiocese, ou os 666 arcos (o número diabólico foi propositado) que compõem o portico de quase quatro quilómetros que liga a Porta Saragozza ao santuário da Madonna di San Luca; e arcadas estilizadas ou minimalistas nos edifícios mais modernos. Algumas têm tectos elaborados, outras têm colunas com capitéis ornamentados, e noutras é o piso que nos chama a atenção. Na sua grande maioria são simples, por vezes estão grafitadas ou têm a tinta a pelar. E há ruas que vale a pena percorrer de uma ponta à outra só para observar a diversidade das suas arcadas: a Via Marsala, a Via Zamboni e a Via Farini são só alguns exemplos. Se outros motivos não houvesse, as arcadas de Bolonha já seriam razão mais que suficiente para visitar a cidade.

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A cidade descontraída

 

O meu primeiro dia terminou no centro nevrálgico de Bolonha, onde o Palazzo d’Accursio acolhe a sede do município. O céu ainda estava claro, mas as sombras já enchiam a Piazza di Nettuno e acendiam-se as primeiras luzes da cidade. Havia grupos de pessoas sentadas nas escadarias quase planas da Biblioteca Salaborsa ou à volta da fonte que dá nome à praça. Famílias em passeio cruzavam-se com bicicletas conduzidas com calma, na passagem sob o Palazzo Re Enzo o vaivém de gente era constante, e as esplanadas estavam cheias. Na Piazza Maggiore alinhavam-se filas e filas de cadeiras frente a um ecrã gigante, e grandes cartazes anunciavam uma programação de filmes italianos, tão extensa quanto apelativa. Na Via d’Azeglio, montras de lojas sucediam-se umas às outras, e atravessadas sobre a rua brilhavam em néon palavras da canção “Futura” de Lucio Dalla. Um dos cognomes de Bolonha é “la Rossa” – a Vermelha – e deve-se à cor do tijolo-burro, material predominante na construção dos edifícios do centro histórico. Sob o sol diurno, este vermelho declina-se em 350 nuances diferentes até ao amarelo. Ao lusco-fusco, ele torna-se mais intenso, profundo, raiando as tonalidades de um bom vinho tinto. Esta é a hora que mais favorece a cidade, e a iluminação urbana não agressiva acentua a tranquilidade do ambiente de final do dia.

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Bolonha tem uma atmosfera informal e relaxante. Essencialmente plana, é uma cidade perfeita para percorrer a pé ou de bicicleta – e há muito quem tire vantagem deste meio de transporte económico e amigo do ambiente. Com uma população de cerca de 85 mil estudantes, cativados pela fama do seu ensino universitário (que lhe granjeou outro dos seus cognomes, “la Dotta”), a riqueza histórica convive paredes-meias com o vanguardismo e a cultura alternativa. Há imensos museus e galerias de arte, e os palácios são com frequência usados para eventos culturais ou exposições. A Universidade e instituições afins espalham-se por toda a cidade, mas o seu núcleo central é a Via Zamboni, onde também se encontra a Biblioteca Universitária, aberta ao público desde 1756.

 

 

A cidade que tem fé

 

O número de edifícios religiosos no centro de Bolonha ultrapassa as duas dezenas. Alguns passam meio despercebidos, encaixados que estão entre casas de habitação e lojas, em ruas estreitas onde as arcadas muitas vezes não me deixavam perceber se o portal mais arrebicado que via do outro lado da rua era a entrada de um edifício notável ou apenas mais uma porta antiga. Outros são identificados com mais facilidade, como a Catedral Metropolitana de São Pedro, com origens no século X mas de aspecto claramente barroco, a bela Basílica de San Giacomo Maggiore, um casamento bem-sucedido entre os estilos românico, gótico e renascentista, ou o conjunto das Sete Igrejas de Santo Stefano, uma amálgama de templos construídos em épocas diferentes e que parecem nada ter em comum a não ser o tijolo de que são feitos.

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Curiosamente, a maior e mais importante de todas as igrejas de Bolonha tem um exterior pouco apelativo e inacabado, e à primeira vista não parece ser nada de especial. A Basílica de São Petrónio, o padroeiro da cidade, fica na Piazza Maggiore, e esse é um dos motivos pelos quais desperta a atenção. O outro é o facto de ter a sua metade inferior revestida em mármore branco e rosa, enquanto a superior deixa à mostra o tijolo escuro da estrutura, num contraste pouco agradável aos olhos. A largura da fachada principal também não dá qualquer indicação da magnitude do edifício, que é na verdade a 15ª maior igreja católica do mundo, e a quarta maior de Itália. Mas quando decidi visitá-la desconhecia estes pormenores, e por isso entrei sem grandes expectativas.

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A primeira surpresa foi perceber a dimensão real desta igreja, tanto em comprimento como em altura. As abóbadas das três naves como que flutuam 45 metros acima do solo, suportadas por colunas que, pela grossura, mais parecem imbondeiros, e a sua cor clara dá a sensação de que são ainda mais altas. O mobiliário escasso e o piso de mármore brilhante, que replica as cores vermelho-rosado e cru das colunas, aumentam o efeito de uniformidade e amplidão. Depois veio a segunda surpresa: o contraste entre esta sobriedade e a profusão decorativa das 22 capelas abertas nas laterais da igreja, decoradas por pintores e escultores de renome, algumas de forma bastante peculiar. A mais fascinante de todas é a Capela dos Magos, que data de inícios do século XV e mantém quase intactas as magníficas pinturas que cobrem completamente as paredes e o tecto – uma delas é uma representação invulgar do céu e do inferno criada por Giovanni da Modena, que buscou inspiração na Divina Comédia de Dante. Os vitrais das janelas sofreram pesados danos ao longo dos séculos, mas foram primorosamente recuperados e as suas cores vivas brilham e iluminam o interior. Outras capelas são bastante mais simples, e várias estão a ser restauradas. Há uma dedicada a Santo António (que em Itália é sempre de Pádua e nunca de Lisboa) e mostra o santo não com o menino nos braços, mas sim segurando uma flor numa das mãos e um livro na outra. As paredes pintadas e os vitrais com figuras de santos fazem dela uma das capelas mais chamativas de toda a igreja. A capela de São Petrónio é uma orgia barroca, e as de Santiago, São Pedro Mártir e Santo Abúndio também estão decoradas com vitrais soberbos.

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A Basílica de São Petrónio tem ainda uma outra grande atracção. E neste caso, “grande” é adjectivo duplamente adequado. Concebido pelo astrónomo Giovanni Cassini, foi criado em 1656 um relógio de sol, cujo meridiano tem 66,8 metros de comprimento (a seiscentésima parte da circunferência da Terra). Esta longa linha está incrustada no piso da nave esquerda e marca a passagem do tempo, coordenada com o raio de sol que entra por um orifício colocado na abóbada, 27 metros acima do chão. É o maior relógio de sol do mundo.

 

 

A cidade dos canais

 

Quando pensamos em cidades com canais, Bolonha nem sequer entra na lista. No entanto, apesar de serem quase invisíveis (a água corre principalmente em condutas subterrâneas ou entre as traseiras de edifícios), a cidade tem vários – e este deve ter sido o único “segredo” da cidade que eu já conhecia, apenas porque o alojamento que tinha reservado tem o nome de La finestra sul canale. Infelizmente, o quarto que me atribuíram, embora fosse excelente, não tinha vista para o canal mas sim para a Via Alessandrini, que é muito menos estimulante. Para ver o Canal do Reno precisei de descer a rua até chegar a um gradeamento “enfeitado” com umas boas dezenas de cadeados (a mania também chegou aqui). Como bónus, quando à noite regressei ao alojamento fui brindada com um pequeno filme projectado, em jeito de sombra chinesa, na parede de uma das casas, rente à água. O filme tinha como título “O Moleiro” e evocava uma das antigas actividades comerciais mais beneficiadas pela construção, a partir do século XII, de um total de 60 km de canais que unem Bolonha aos rios Reno e Savena.

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O sistema de oclusas e canais que foi criado e desenvolvido desde essa altura permitia direccionar para a cidade água suficiente para accionar moinhos concebidos para auxiliarem vários tipos de actividades: moagem de grãos, fiações, curtumes, britagem – em suma, todas aquelas nas quais a energia gerada pela força das águas significava uma maior velocidade de produção. Os canais eram também usados para o transporte de pessoas e mercadorias, e a criação de lavadouros e balneários públicos contribuiu para melhorar as condições sanitárias de Bolonha. Hoje, a face mais visível deste sistema é o Canale Navile, que começa no Parco del Cavaticcio, onde se situava em meados do século XVI o porto de Bolonha. Ao lado do parque continua de pé o edifício da Salara, antigo armazém do sal, que aloja actualmente o Cassero, o centro LGBT de Bolonha. O Navile desaparece sob a cidade e só volta a ser visto mais para norte, depois da linha férrea, seguindo a partir daí em campo aberto durante cerca de 30 km até Malalbergo. Navegado até 1948, actualmente é apenas usado para irrigação. A oeste da cidade, junto ao cemitério de Certosa, emerge um outro canal, que termina no Reno poucos quilómetros mais à frente.

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***

Deixei Bolonha muito cedo, ainda os cafés mal tinham aberto, na manhã de um dia que já se anunciava quente como os anteriores. Refiz o caminho de volta até à Centrale, o terminal ferroviário que me tinha visto chegar dias antes. A hora matutina mostrou-me a cidade a uma luz diferente, como diferente era também o meu estado de espírito. Tinha chegado cansada e vagamente alheia, sem expectativas; parti com vontade de ficar, rendida a esta cidade tão singular quanto despretensiosa, e cheia de bons motivos que me hão-de fazer regressar.

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