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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Qui | 21.10.21

Reviver o passado no Buçaco

 

Às vezes, quando vejo um determinado filme ou leio um romance histórico, sinto vontade de poder transportar-me no tempo e ir ver como seria realmente a vida nessa época. Infelizmente, as viagens temporais ainda não foram inventadas e não podemos andar para trás e para a frente ao longo dos anos a nosso bel-prazer. Há no entanto lugares que conseguem a proeza de preservar muito do ambiente de épocas passadas, e é a um deles que vos levo agora em passeio. Fica no centro de Portugal, num local para o qual “idílico” é o adjectivo mais fraco que consigo usar, e onde temos a sensação de que o tempo parou. Bem vindos ao Buçaco!

 

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A área que está actualmente classificada como Mata Nacional do Buçaco (ou Bussaco, pois a grafia “oficial” vai variando ao longo dos tempos) é uma extensa floresta com 105 hectares, rodeada por um muro de pedra. Foi aqui que a Ordem dos Carmelitas Descalços ergueu no século XVII o Convento de Santa Cruz, razão pela qual encontramos neste lugar tantas construções e referências associadas à fé católica. Com a extinção das ordens religiosas em Portugal em 1834, a administração da Mata passou para a tutela real, de onde transitou depois para a de variados serviços florestais do Estado português, sendo hoje em dia gerida pela Fundação Mata do Buçaco.

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É possível entrar na Mata por várias portas, mas todas elas vão convergir num mesmo ponto, que é o centro nevrálgico do Buçaco: o antigo pavilhão real de caça, convertido em 1917 em hotel, e um dos mais bonitos palácios portugueses. Construído para reis, agora é sobretudo frequentado por plebeus, e um verdadeiro ex libris desta região singular e imperdível.

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Nem que seja uma vez na vida, vale a pena pernoitar neste que é um dos mais belos hotéis do mundo. O Palace Hotel do Buçaco é uma verdadeira cápsula do tempo, que nos transporta para o passado assim que entramos nos seus domínios. Construído entre 1888 e 1907 por ordem de D. Carlos I e concebido pelo arquitecto e cenógrafo italiano Luigi Manini, que se inspirou na Torre de Belém, é um exemplo relevante do estilo neomanuelino, a forma de expressão arquitectónica mais importante do romantismo em Portugal.

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O interior é igualmente refinado. Há tectos e painéis em madeira trabalhada, paredes pintadas com cenas bucólicas e históricas, mármores esculpidos, antiguidades espalhadas pelos corredores e salas, brocados e damascos nos estofos e cortinados. Os quartos são decorados a preceito com mobiliário antigo, e nas casas-de-banho o chão é de quadrados bicolores e a banheira tem um tamanho descomunal. Os passos são abafados por alcatifas vermelho-cereja e carpetes com motivos florais clássicos, a luz dos candeeiros é suave e o ambiente geral é de tranquilidade, quase entorpecedor – porque ter a possibilidade de descontrair e não fazer nada é um dos maiores luxos a que podemos entregar-nos.

 

Do Convento de Santa Cruz resta hoje apenas uma parte, paredes-meias com o edifício do Palace. Dele podemos visitar a igreja, corredor e pátios. De dimensão e linhas modestas, chama facilmente a atenção pelos motivos em preto e branco que ornamentam a fachada e os muros, criados com pequenas pedrinhas incrustadas na parede, uma técnica a que dão o nome de embrechados.

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Fundação Mata do Bussaco
http://www.fmb.pt/v2/pt/
Mata Nacional do Buçaco, 3050-261 Luso
Convento de Santa Cruz do Bussaco
Horário: 2ª a 6ª - 9h-13h/14h-18h; fim-de-semana - 9h-13h/14h-18h30
Informações: telefone 231 937 000

 

Em volta do hotel e do convento há um jardim tradicional, a que chamam Jardim Novo. Amplo e bem ordenado, foi criado na altura da construção do palácio e inspirado nos jardins barrocos franceses, com sebes cuidadosamente aparadas e modeladas para formarem desenhos, uma extensa pérgula num plano mais elevado, e um pequeno lago habitado por patos.

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Passeando na Mata, o tempo como que fica em suspenso e as horas passam sem darmos por elas. O microclima desta encosta da Serra do Buçaco favorece a proliferação de uma enorme variedade de árvores e arbustos, vegetação típica tanto do clima mediterrânico como do clima temperado. Muitos dos exemplares arbóreos que vemos contam já algumas centenas de anos e têm uma altura descomunal.

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Além da vertente paisagística, a Mata inclui um vasto património construído, mais ainda por se encontrar no meio desta floresta exuberante. Para facilitar a visita, foram criados vários trilhos temáticos para percorrer, cada um deles dando a conhecer características particulares deste maravilhoso pedacinho do nosso país. Os pontos de interesse são muitos, e um dia não chega para ver tudo, sobretudo porque há muitos locais onde apetece parar e ficar durante algum tempo, simplesmente para apreciar a beleza e a tranquilidade do que nos rodeia.

 

Embora todos os percursos sejam fascinantes, confesso que o meu preferido é o do Vale dos Fetos. Acompanhamos um pequeno ribeiro, por entre fetos abundantes, bem mais altos do que nós, e árvores ainda maiores, passamos pela Fonte Fria, onde outro curso de água desce em socalcos, no centro de uma vistosa escadaria, observamos o Lago Pequeno e continuamos até encontrar o Grande, que até tem uma ponte de acesso a uma minúscula ilhota guardada por gansos barulhentos.

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Outro trilho obrigatório é o da Via Sacra, que percorre a maior parte da Mata e inclui um grande número de capelas, que têm no interior figuras de barro representando os vários passos da Paixão de Cristo. Neste percurso encontramos também outras capelas e ermidas, algumas já em ruínas, o Cedro de S. José, plantado em meados do século XVII, e a Varanda de Pilatos, uma espécie de torre com uma varanda embutida. O passo de Caifáz é um excelente miradouro, assim como as lindíssimas Portas de Coimbra, também decoradas com motivos geométricos embrechados.

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Mas o local onde nos é oferecida a melhor vista sobre a serra e toda a paisagem em volta é, sem sombra de dúvida, a Cruz Alta. Embora a subida para lá chegar seja dura, o esforço é totalmente recompensado.

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O Buçaco também foi lugar onde se desenrolou uma das maiores batalhas da invasão napoleónica, que culminou na derrota do Marechal Masséna, e uma das mais importantes de todas as que foram travadas durante este período tão marcante para o nosso país. A memória desta batalha está preservada no Museu Militar do Buçaco, criado em 1910, quando se comemoraram os 100 anos passados sobre aquela batalha.

 

Museu Militar do Buçaco
https://www.exercito.pt/pt/quem-somos/organizacao/ceme/vceme/dhcm/bu%C3%A7aco
Almas do Encarnadouro, Buçaco, 3050-201 Luso
Convento de Santa Cruz do Bussaco
Horário: 3ª a domingo - 10h-12h30/14h-17h; encerra à 2ª feira, 25 Dezembro, 1 Janeiro, domingo de Páscoa, 1 Maio
Informações: telefone 231 939 310  email musmilbucaco@mail.exercito.pt

 

Numa visita ao Buçaco, seja à entrada ou à saída, há que ir também conhecer a vila do Luso, ela própria uma referência na história do termalismo e da indústria das águas minerais em Portugal. A paragem na Fonte de São João, mesmo no centro da vila, é obrigatória. Impossíveis de ignorar são também o antigo Casino, edifício construído em 1886 em estilo Arte Nova e que hoje abriga o Núcleo Museológico da Sociedade da Água de Luso, e o Grande Hotel, o emblemático projecto concebido pelo arquitecto Cassiano Branco e inaugurado em 1940, cujas linhas modernistas e cor amarela fazem dele a construção mais fotografada e conhecida do Luso.

 

E para quem quiser prolongar esta viagem ao passado, sugiro continuar um pouco mais para norte até à Curia. Rodeada pelas vinhas que produzem os famosos espumantes da Bairrada, a história desta localidade está também muito ligada às suas termas. Mas a maior preciosidade da Curia é sem sombra de dúvida o Palace Hotel, um dos mais antigos e emblemáticos hotéis portugueses. Concebido dentro do espírito dos frenéticos anos 20 e inaugurado em 1926, contava com 400 quartos, sendo o maior hotel português da época e um dos maiores da Europa. Foi palco de inúmeros e importantes eventos sociais e desportivos, onde conviviam a elite da sociedade portuguesa e internacional, e frequentado por figuras do mundo do cinema, da escrita e de outras artes. Depois de uma cuidada recuperação, voltou a abrir portas em 2008, mantendo todo o seu encanto histórico.

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A piscina exterior do Curia Palace Hotel foi a segunda piscina olímpica construída em Portugal e é hoje em dia a piscina mais antiga do nosso país ainda em funcionamento. Terminada em 1934, foi projectada em estilo Art Deco, tal como o hotel, e evoca as piscinas dos grandes navios transatlânticos da época.

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O Buçaco e a região que o rodeia proporcionam-nos experiências fora do comum em ambientes revivalistas e cheios de encanto, que ficam na memória e nos deixam com vontade de regressar.

 

(Este roteiro foi publicado pela primeira vez no website Fantastic)

 

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Reviver o passado no Buçaco

 

 

Ter | 12.10.21

Coisas boas (e alguns segredos) de Viseu Dão Lafões - parte II

 

Aqui há tempos falei sobre o fim-de-semana mais recente que passei na região de Viseu Dão Lafões. Muito ficou no entanto por dizer, por isso hoje vou corrigir essa falha e revelar mais algumas das coisas boas que encontramos nesta região do centro de Portugal.

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As jóias discretas de Penalva do Castelo

 

Sob uma capa de placidez e de lugar “onde não se passa nada”, Penalva do Castelo guarda alguns dos melhores segredos do planalto beirão. A vila recebeu-nos sob o sol forte do princípio da tarde, luminosa e arejada na esplanada ampla que rodeia o moderno edifício da Câmara Municipal. A poucas centenas de metros de distância, a Igreja da Misericórdia foi o primeiro ponto para uma paragem mais demorada. Por fora parece apenas mais uma igreja barroca, paredes brancas debruadas a cantaria, as duas torres gémeas com varandins e pináculos coroados com o habitual catavento. Por dentro, ao contrário do que seria de esperar, o barroco desaparece para dar lugar a um ambiente neoclássico, altar-mor e retábulos em que o dourado quase se submete ao bege, uma lindíssima porta interior nos mesmos tons, na parede um púlpito e um órgão de tubos, e uma faixa de azulejos azuis e brancos em toda a volta. Não é muito comum encontrar este tipo de ambiente, tão harmonioso e pouco pesado, nos edifícios religiosos portugueses mais antigos, razão pela qual gostei particularmente de visitar esta igreja.

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Parece ser imagem de marca da vila “casar” a tradição com a modernidade, sem que o contraste criado seja aberrante. Um dos orgulhos do município de Penalva do Castelo são os seus produtos endógenos: o vinho Dão (sub-região Castendo); o queijo Serra da Estrela DOP, que é exclusivamente feito com leite de ovelhas das raças Bordaleira da Serra da Estrela ou Churra Mondegueira; e a maçã Bravo de Esmolfe, uma maçã outonal pequena, doce e com um aroma maravilhoso, produzida numa área geográfica bastante limitada. Para homenagear estes produtos típicos foi escolhida uma forma de expressão artística bem actual: a street art. Perto do jardim da Praça do Município e do recinto da feira, o “Mural dos Produtos Endógenos e Tradições do Concelho” celebra os costumes e os produtos agrícolas mais característicos da região. O mural foi concebido por Jaf Graph, um jovem artista já com créditos firmados no panorama português da arte urbana e também um “filho” da região Viseu Dão Lafões (nasceu e vive em Mangualde), e mostra bem como a flexibilidade da linguagem artística moderna consegue tratar com elegância até mesmo os temas mais clássicos.

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Mas a jóia maior da coroa de Penalva do Castelo ainda não se tinha mostrado, bem escondida que está atrás de muros de pedra, trepadeiras folhosas e árvores enormes: dá pelo nome de Casa da Ínsua e é ao mesmo tempo hotel, quinta e museu.

 

Foi a surpresa maior desta viagem. Até à altura, Casa da Ínsua era para mim apenas um nome de vinho vagamente conhecido. Daí o meu espanto quando, depois de percorrer uma alameda refrescada pela sombra de muitas árvores e passar um pórtico em arco, surgiu à minha frente um belo palacete barroco, em alvenaria branca debruada a granito e com uma capela anexa. Foi o início de uma viagem espácio-temporal guiada pelo actual gerente da Casa da Ínsua, Rafael Furão, que nos contou toda a história da casa e da quinta em que ela está inserida.

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A casa que hoje vemos foi construída no último quarto do séc. XVIII a mando de Luís de Albuquerque e Mello Pereira e Cáceres, um fidalgo cavaleiro da Casa Real que foi o quarto governador e capitão-general da capitania de Mato Grosso, no Brasil. No local existiam já uma casa antiga (dos sécs. XVI-XVII), da qual apenas foi preservado o terraço, e a capela, que sofreu posteriores modificações. Supõe-se que o arquitecto do projecto da casa terá sido José Francisco de Paiva, e as obras de que foi posteriormente alvo no séc. XIX foram confiadas ao arquitecto italiano Nicola Bigaglia (que desenhou o chafariz do pátio principal).

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Uma grande parte da casa está ocupada pelas instalações do hotel, que actualmente tem o nome de Parador Casa da Ínsua (faz parte da rede espanhola de Paradores de Turismo). As restantes divisões fazem parte do Núcleo Museológico e são um acervo riquíssimo de obras de arte, mobiliário, objectos decorativos e elementos arquitectónicos dos séculos passados. Notáveis são sobretudo os tectos, em madeira ou em gesso a imitá-la, com pinturas em trompe-l’oeil, brasões ou motivos clássicos. Há uma Sala Chinesa muito original, onde pontifica um samurai mecânico e as paredes e o tecto estão forrados com um maravilhoso papel pintado. No Salão Nobre, o piso é um magnífico embutido feito com 14 qualidades de madeira diversas, e sobre a lareira há um relógio finamente trabalhado, que em tempos idos fazia soar uma melodia diferente para cada segmento do dia. O percurso da visita levou-nos também às cozinhas, uma branca, mais modernizada e já com utensílios e funcionalidades relativamente “recentes” (sendo que recentes significa um século, mais coisa menos coisa), e outra preta, com uma grua para panelas e uma ampla chaminé.

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A caminho da capela, chama a atenção o engenhoso sistema de pesos que controla o funcionamento da torre sineira e a sua ligação ao relógio. Aliás, a própria torre é extremamente original, com quatro sinos de tamanhos diferentes sobrepostos e um outro (o sino inicial e único na altura da construção da capela) colocado mais acima. Consagrada a Nossa Senhora da Conceição, o interior da capela tem uma cúpula pintada, que lhe dá uma atmosfera de monumentalidade, e todas as paredes estão cobertas de azulejos, pinturas e quadros.

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Do interior saímos para os jardins – plural, porque são vários e de géneros diferentes. Há o francês, com os seus parterre geométricos e um lago com flores de lótus indianas, que só vivem 48 horas e tivemos a sorte (e felicidade!) de ver em flor. Há o inglês, mais selvagem, com muitos arbustos e árvores de grande porte – sequóias, cedros, paus-brasil. Há o dos aromas, com flores e um canteiro onde estão plantadas videiras das castas usadas para os vinhos Casa da Ínsua. Há um tanque com patos e um cisne, fontes, mesas e esculturas em pedra. E há um sem-fim de preciosidades espalhadas pelos 40 hectares da quinta, que uma visita de poucas horas não consegue abarcar.

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Além do vinho, da quinta que rodeia a Casa da Ínsua saem também os outros produtos típicos do concelho de Penalva do Castelo: o queijo Serra da Estrela e a maçã Bravo de Esmolfe. O cardo usado na cura do queijo aqui produzido é igualmente cultivado nos terrenos da quinta, que incluem ainda uma horta onde crescem frutos e legumes variados, base de algumas das compotas que são vendidas ao público. Em tempos trabalhavam aqui mais de mil pessoas e a quinta era praticamente auto-suficiente. Havia uma fábrica de gelo, uma moagem e um lagar de azeite – aliás, o azeite continua a fazer parte da produção própria da quinta. Lado-a-lado com a adega vinícola e a queijaria, as unidades produtivas entretanto desactivadas estão agora inseridas no Núcleo Museológico. Vemos máquinas arcaicas com finalidades desconhecidas (que o Rafael nos explicou prontamente), uma sala com mapas seculares e gravuras antigas representando a fauna e flora tropicais, outras com obras de arte, artefactos e objectos que pertenceram a Luís de Albuquerque e aos seus descendentes, e que ilustram ao mesmo tempo o percurso familiar dos proprietários da quinta e as mudanças sociais e tecnológicas ao longo de três séculos. Vemos os queijos alinhados nas prateleiras, à espera de estarem no ponto certo para irem para a mesa de quem os comprar (a cura demora de 2 a 4 meses), e as misturas de flor do cardo usadas para os curar. Vemos as cubas de aço brilhante e os tonéis de madeira onde as uvas fermentam e o vinho envelhece, e sentimos o cérebro invadido pelo odor forte que é tão típico das adegas. Visitar a Casa da Ínsua e a sua quinta é uma lição de História e um prazer para todos os sentidos, e confesso que me apetecia ter lá ficado mais tempo.

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Outro prazer esperava por mim, mais uma jóia de Penalva do Castelo, esta escondida na pequena aldeia de Sangemil: o forno comunitário. E aqui tenho de fazer duas notas prévias. A primeira é que a tarde ia avançada, e apesar de o almoço ter sido excelente (falarei dele mais adiante), o estômago já reclamava por qualquer coisita que o acalmasse. A segunda é que sou doida por pão, de preferência regional, e melhor ainda se for bem fresco. Podem por isso imaginar o que terá sido entrar num sítio onde não só cheirava a pão acabadinho de fazer, como também tinha mais de uma dúzia de belíssimos pães com um aspecto delicioso (mal cozidos, mesmo como eu gosto) em cima de uma mesa, a pedirem para os devorarmos logo ali. Foi ao mesmo tempo uma alegria e uma tortura, porque tive de me dominar para não os atacar imediatamente, feita selvagem.

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As fadas que produzem estas maravilhas (em Portugal faz-se o melhor pão do mundo!) chamam-se Cilita, Arlete, Maria Cristina e Natividade, mas só as três primeiras é que estavam à nossa espera, acompanhadas pelo vice-presidente da Câmara, José Laires. Fadas que põem todo o seu saber e afecto no pão que sai das suas mãos, e que ainda por cima aturaram com a melhor das disposições as nossas perguntas e pedidos de pose para a fotografia.

No piso superior da casa onde está alojado o forno comunitário de Sangemil há uma pequena exposição etnográfica que tem como leitmotiv o ciclo do pão. E quando voltámos a descer à sala do forno, cada um de nós foi presenteado com um dos belos pães de trigo que tínhamos estado a admirar, ainda quentinhos dentro do seu saco de papel. Vergonhosamente, o meu já não estava intacto na altura em que cheguei ao autocarro – não resisti e arranquei logo um bocado, que comi enquanto o diabo esfregou um olho, sem manteiga, sem doce, sem nada, e me soube pela vida. Há coisas que podem ser muito simples, mas não há dinheiro que as pague…

 

A visita a Penalva do Castelo ainda teve mais uma paragem, no sítio a que chamam Lages de Sangemil. Numa zona de antigas eiras, onde os aldeãos secavam e tratavam os cereais que cultivavam, um grupo de “palheiras” tem vindo a pouco e pouco a ser recuperado por um casal, e transformado em casinhas para alojamento temporário. O local onde estão situadas é excepcional, com uma vista ampla sobre o vale e as encostas do Dão, onde as vinhas crescem em socalcos ondulantes e o arvoredo se estende sobre a crista dos montes. As casas estão recuperadas de forma admirável (algumas estavam completamente em ruínas), e por todo o lado há pormenores que alegram o ambiente, engraçados e dispostos com bom gosto. Ao sol do final da tarde, com o verde matizando-se de dourado e naquele ambiente de sossego, pareceu-me sem dúvida um lugar ideal para aquelas alturas em que precisamos de desligar do mundo e relaxar.

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Viseu, flores e sabores

 

Doze. Para quem vem de carro dos lados de Lisboa, são doze as rotundas que encontra no caminho, depois de sair do IP3 e até chegar ao centro de Viseu (ou um número ainda maior, se o destino for outro que não o centro, como foi o meu caso). Mas se ter de contornar tantas rotundas num curto espaço de oito quilómetros causa alguma estranheza, são elas que primeiro nos fazem perceber a razão pela qual Viseu continua a fazer jus ao título de “cidade-jardim”, ostentado desde 1935 – quando as rotundas, por sinal, ainda nem existiam. Todas elas estão paisagisticamente arranjadas com relva e canteiros de flores, arbustos ou pequenas árvores, eventualmente uma escultura, pedras ou até mesmo uma fonte. Em Viseu, parques e jardins são mais que muitos, e mesmo nas ruas a proporção de flores por metro quadrado é admirável.

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O coração da cidade é disso o maior exemplo. Na Praça da República, mais conhecida por Rossio, o edifício da Câmara Municipal perde protagonismo para o Jardim Tomás Ribeiro, que é quase um prolongamento do centenário Parque Aquilino Ribeiro, um dos maiores de Viseu. O jardim homenageia o escritor e político, que nasceu em 1831 em Parada de Gonta, numa glorieta decorada com azulejos pintados pelo seu próprio genro, Jorge Colaço. Há uma fonte com repuxos, quiosques e esplanada, árvores frondosas e muitos bancos para descansar. Um dos vértices aponta para o edifício do Tribunal, e ao lado dele está o Avenida Boutique Hotel, onde dormimos na segunda noite da nossa estadia em terras viseenses. Aberto em inícios do séc. XX com o nome de Grand Hotel Avenida, foi remodelado há poucos anos. Mantendo a traça exterior, o interior foi modernizado sem grandes arroubos imaginativos, com quartos simples mas confortáveis e com excelente casa de banho.

 

Do outro lado da Praça, o painel de azulejos criado em 1931 pelo pintor portuense Joaquim Lopes guia-nos até ao pequeno Jardim das Mães, e ao lado da Pensão Rossio Parque há uma reinterpretação gigante, pintada pelo artista urbano Ricardo Romero, do quadro “Menina das Camélias” de José Almeida e Silva – uma obra que faz parte do acervo do Museu Grão Vasco.

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O Museu Nacional Grão Vasco possui uma riquíssima colecção de pintura, escultura, cerâmica, mobiliário e objectos decorativos, e até mesmo de arqueologia. Está alojado no Paço dos Três Escalões, um edifício de pedra com aspecto robusto que fica na Praça do Adro, paredes-meias com a Sé, o monumento mais icónico de Viseu. A Sé Catedral de Viseu tem uma história velha de séculos, anterior à da fundação de Portugal, e foram muitas as obras e modificações de que foi alvo durante a sua longa existência, tanto exterior como interiormente. As suas duas torres, paralelepípedos maciços de granito escurecido pelo tempo e só tenuemente aligeiradas pelos elementos decorativos colocados no topo, contrastam com o retábulo da fachada, em pedra mais clara e com um aspecto muito mais leve. Seis nichos escavados estão ocupados por outras tantas esculturas, a mais central representando São Teotónio, o padroeiro.

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No centro da Praça do Adro está um cruzeiro do séc. XVII, e do lado oposto à Catedral, como que a querer competir com ela pelas atenções, a Igreja da Misericórdia, exuberantemente barroca no exterior e neoclássica no interior, e cujo edifício também abriga um Museu.

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O passeio pelo centro histórico de Viseu foi curto, mas ainda assim suficiente para poder apreciar as casas com vários pisos, com janelas altas para deixarem passar o máximo de luz possível, debruadas a cantaria, e varandas com belos ferros forjados. Junto à Porta do Soar, o arco onde existiu uma das principais portas de entrada da cidade medieval, uma inscrição em pedra fez-me parar: “ESTA CAPELLA HE DO POVO QUE SE FEZ A CUSTA DAS ESMOLAS DOS DEVOTOS ANNO DE 1742”. Dedicada à Senhora dos Remédios e com uma invulgar forma exterior octogonal, o interior desta pequena capela é surpreendentemente bonito, sobretudo pelo forte conjunto cromático à base de azul e encarnado, pelos azulejos que cobrem as paredes até meia altura, e pelo colorido retábulo do altar.

 

Foi em Viseu que fizemos as refeições do segundo dia do nosso fim-de-semana, e os restaurantes escolhidos foram uma excelente amostra da diversidade gastronómica que a cidade põe à nossa disposição. Na Casa Arouquesa – o nome já diz tudo – a estrela foi a carne desta raça bovina, confeccionada nas duas formas diferentes que são as especialidades deste restaurante: o bife à casa e a vitela assada no forno. Altamente recomendável para os amantes irredutíveis da carne de vaca. Nas entradas, o presunto (mal curado e delicioso) fez sucesso; e à sobremesa, como fiquei indecisa entre o cheesecake de frutos vermelhos e o pudim de coco, provei os dois.

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O jantar foi completamente diferente. Na esplanada ao ar livre do Palace, a poucas centenas de metros do Rossio, vieram para a mesa petiscos atrás de petiscos, cada um melhor que o outro. Só para abrir o apetite, deixo aqui os nomes de alguns dos que provámos: peixinhos da horta (super estaladiços); croquetes de alheira com molho de mostarda; salada de pêra, rúcula e queijo da ilha; chocos panados com molho de iogurte e lima; gambas crocantes e geleia picante de citrinos; coscorões de peixe branco, malagueta e lima. Tudo regado com uma maravilhosa sangria de frutos vermelhos. Quanto às sobremesas, o destaque vai para a originalidade do cheesecake, que é servido num vasinho de barro, com um pé de alecrim espetado – como se se tratasse de uma planta envasada verdadeira.

 

Ainda no capítulo dos sabores, fica aqui mais uma recomendação: os chocolates artesanais da Chocolateria Delícia, situada ao pé do Rossio. Entre os vários mimos com que a Câmara de Viseu nos brindou estava uma caixinha com alguns dos bombons de autor que esta casa produz, e que têm nomes tão sugestivos como “coulis de manga”, “ganache de noz”, “bombom de flor de sal e alecrim” (sou louca por chocolate com sal…), “trufa de cacau” ou “bombom de vinho rosé”, entre outros igualmente apetitosos. No que toca a estes chocolates, “Delícia” não é um exagero.

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De Viseu ficou ainda muito por ver. Entre os locais icónicos que tenho em mira para uma próxima visita estão a Cava de Viriato – uma misteriosa “fortaleza” com um perímetro octogonal de taludes de terra batida, que se supôs ter sido erguida na época da ocupação romana mas investigações recentes parecem indicar ser muçulmana – e o Parque do Fontelo, que tem 10 hectares de mata e jardins para explorar. Neste link do website Visit Viseu há propostas muito interessantes de roteiros para conhecer a cidade e os arredores.

 

 

Ecopista do Dão, 49 km para descontrair

 

Entre 1982 e 2012, Portugal perdeu 1075 km de ferrovias (segundo o Pordata), e Viseu foi uma das cidades mais afectadas por esta redução: é actualmente uma das três capitais de distrito portuguesas às quais não é possível chegar de comboio (as outras são Bragança e Vila Real). Em 1988, dois anos antes do encerramento do ramal da linha do Vouga que passava em Vouzela, a linha do Dão tinha igualmente sido desactivada. Ligava Viseu a Santa Comba Dão, atravessando também o concelho de Tondela, e tinha um comprimento total de 49,3 km. Após muitos anos de abandono e com um percurso sem grandes desníveis, que atravessa ambientes diversos e acompanha em grande parte os rios Dinha e Dão, reunia as condições ideais para ser transformada em equipamento turístico e de lazer: a Ecopista do Dão foi oficialmente inaugurada no início de Julho de 2011.

 

Depois de uma manhã de domingo inesperadamente chuvosa, que apenas nos deixou visitar o Museu do Quartzo e fazer um curto passeio até à vizinha Capela de Santa Luzia, e de um almoço no Restaurante 3 Pipos, em Tondela – que incluiu uma variedade obscena de entradas, filetes de polvo, tiborna de bacalhau, entrecosto assado e uma quantidade igualmente imoral de sobremesas – era imperativo que fôssemos esticar as pernas e gastar algumas das muitas calorias ingeridas durante todo o fim-de-semana. Apesar das nuvens, o calor tinha regressado, e a Ecopista do Dão foi o destino ideal.

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Entrámos junto à antiga Estação de Treixedo, cujo edifício está infelizmente em ruínas. Ao longo da Ecopista há algumas (poucas) estações que foram reconvertidas em café/restaurante, mas não é o caso desta. Daqui até Santa Comba Dão são apenas 5,5 km, e este é um dos troços mais bonitos do percurso, sempre à beira do Dão até chegarmos à ponte metálica do Granjal, que atravessa o rio. Ouvem-se pássaros no meio do arvoredo, e a tranquilidade só é quebrada pelos ciclistas apressados que pedalam freneticamente pela Ecopista, por vezes em grupos, e certamente com muita pressa de chegarem a qualquer lado.

O asfalto da Ecopista está pintado, e a sua cor identifica o concelho em que se insere cada troço: encarnado para Viseu (que é parcialmente feito em ambiente urbano), verde para o concelho de Tondela, e azul para o de Santa Comba Dão. É a Ecopista mais longa do país, e existem planos para a ligar às suas congéneres de Vouzela e do Vouga, naquela que será a maior ecopista da Península Ibérica – uma boa notícia para os amantes da bicicleta e das caminhadas longas.

 

Com o final da tarde a aproximar-se, foi com alguma relutância que fiz o caminho de regresso ao autocarro que nos levou de volta a Viseu e à “civilização”. Em terra boa apetece sempre ficar mais um dia – ou dois, ou uma semana, um mês… A região de Viseu Dão Lafões tem muitas coisas boas para conhecer, provar e aproveitar, e certamente muitos mais segredos para descobrir.

 

Querem saber mais sobre esta região? Leiam o post Coisas boas (e alguns segredos) de Viseu Dão Lafões - parte I

 

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Esta viagem teve o apoio do Turismo do Centro de Portugal e foi organizada pela Comunidade Intermunicipal Viseu Dão-Lafões (CIMVDL). Agradeço à Cristina, à Cátia e ao Luís Pedro as experiências que nos proporcionaram e, acima de tudo, a sua simpatia e atenção, e as boas conversas que tivemos.

Comigo viajaram outros bloggers associados da ABVP-Associação de Bloggers de Viagem Portugueses: David Samuel Santos (Dobrar Fronteiras), Gonçalo Henriques (Num Postal), Jorge Montez (Hit the Road), Marta Geadas Durán (Boleias da Marta) e Sónia Justo (Lovely Lisbonner).

 

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Coisas boas de Viseu Dão Lafões