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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Ter | 21.09.21

Duas semanas em Itália

 

Estar em Itália é assim como que voltar a casa de uma avó: estou num sítio diferente mas tudo parece familiar. Sinto-me à vontade, não estranho as pessoas, os hábitos ou as comidas. A língua é outra mas não é desconhecida, sabe-me bem ouvir as palavras ditas meio a cantar, e mimetizo-lhes a pronúncia sem dar por isso. As pessoas com quem me cruzo podiam ser portuguesas, não as distingo de nós tão facilmente como acontece noutros países. E só me ocorre perguntar-me porque é que ainda conheço tão pouco de Itália.

Barga                                                      Corniglia

 

Na verdade, a resposta até nem é muito complicada, e as razões são bastante comezinhas. A Itália está perto de Portugal, mas não está propriamente aqui ao lado; é muito pressionada pelo turismo, e eu detesto confusões; e sempre foi um país caro, pelos nossos modestos padrões portugueses (e continua a ser, apesar de agora a clivagem ser menor). Aparte a Sardenha e Veneza, até há pouco tempo a Itália era apenas um país que o avião onde eu ia sobrevoava (às vezes) para chegar a outro lado.

 

Mas havia dois lugares em Itália que eu tinha mesmo muita vontade de conhecer, e as restrições às viagens que continuam a existir, entre outros motivos, fizeram-me finalmente decidir que este seria um dos destinos das minhas férias deste ano. Em Julho, um voo directo deixou-me em Milão, onde começou uma viagem de duas semanas que me levou às Cinque Terre, à Toscana e a Bolonha.

 

É impossível resumir esta viagem em poucas palavras, mas uma coisa é certa: as expectativas eram bem altas, e ainda assim foram excedidas. Apesar de ser Verão e já haver mais turismo do que estava à espera, não havia demasiada confusão – os níveis de visitantes estrangeiros continuam muito abaixo do que era habitual. A máscara já não era obrigatória na rua, o que ajudou a suportar o calor, e em todo o lado havia medidas de higiene e segurança implementadas, algumas até mais eficazes do que as nossas (termómetros automáticos de medição de temperatura, ou entradas e saídas diferenciadas nos transportes públicos, por exemplo), embora por vezes fossem um bocado atropeladas, sobretudo pelos estrangeiros.

 

 

O plano

Os objectivos principais desta viagem eram conhecer Florença e as Cinque Terre (Monterosso, Vernazza, Corniglia, Manarola e Riomaggiore). Claro que, indo a Florença, seria um disparate não aproveitar para conhecer outras cidades e vilas da Toscana, portanto fiz um roteiro para dedicar metade do tempo a visitar esta região. Acrescentei Bolonha por uma questão prática – fica relativamente perto de Florença, e a partir desta cidade tinha voos de regresso a Portugal todos os dias. Por azar, poucos dias antes da viagem a companhia aérea decidiu cancelar o voo de Bolonha e tive de o trocar por um a partir de Florença, que entretanto apareceu precisamente para a mesma data. Mas como já tinha reservado alojamento em Bolonha, mantive a cidade nos meus planos (e ainda bem!). Também pelo mesmo motivo, na ida optei por voar de Lisboa para Milão, que fica a pouco mais de 200 km da região das Cinque Terre.

7 Itália Milão.jpg

 

Os transportes

Optei por só alugar carro para a viagem pela Toscana. A rede ferroviária em Itália é boa e funciona bastante bem, além de que nas cidades maiores e nas Cinque Terre o estacionamento é complicado e caro. Tanto Florença como Bolonha conhecem-se facilmente a pé, e em ambos os casos as estações de comboio ficam no centro da cidade.

8 Itália Bolonha.jpg

 

As Cinque Terre têm uma linha de comboio especial, entre Levanto e La Spezia, para a qual existe um passe – o Cinque Terre Card – que nos permite viajar sem limite durante o número de dias que escolhermos. Também é possível ir de uma aldeia a outra a pé pelos trilhos que eram antigamente a única forma de acesso. O mais famoso e mais fácil é o Sentiero Azzurro, mas é necessário pagar uma autorização especial para o percorrer, e alguns troços estão fechados devido a derrocadas. Outra alternativa é o barco, que também opera regularmente entre Levanto e La Spezia, com paragens em todas as aldeias com excepção de Corniglia. É mais caro e mais lento do que o comboio, mas oferece outras perspectivas.

Corniglia                                                    Riomaggiore

 

Aluguei carro em La Spezia, e devolvi no mesmo local. A diferença de preço entre alugar em La Spezia e Florença era enorme, e mais do que compensou o preço dos bilhetes de comboio. É comum ouvir dizer que o trânsito em Itália é uma loucura e que os condutores não são fiáveis. Pessoalmente, não achei que o comportamento nas estradas italianas fosse fora do normal. E apenas apanhámos um engarrafamento na auto-estrada, no último dia do roteiro na Toscana, provocado por obras. No entanto, é preciso ter cuidado com o sistema de estacionamento, que em muitos sítios é gratuito apenas por uma hora, mesmo nas terrinhas pequenas. Os carros têm um dístico no pára-brisas, onde é necessário marcar a hora de chegada, e não convém ultrapassá-la porque há de facto vigilância, sobretudo nos lugares mais procurados. Nas localidades mais turísticas, os estacionamentos que ficam à entrada dos centros históricos são sempre pagos.

 

Quanto aos comboios, há que notar que não são baratos, sobretudo os rápidos (Frecciarossa, Frecciargento e Frecciabianca). Nos que não são rápidos, por vezes há atrasos, o que pode complicar a viagem se for necessário apanhar mais do que um. Ao comprar o bilhete (o ideal é comprar online, já que as máquinas são um bocado complicadas e nas grandes estações as filas são sempre enormes), a reserva é logo feita para todos os comboios que será necessário apanhar para chegar ao destino final, e um atraso pode pôr em risco a ligação ao comboio seguinte. Passei por essa experiência num percurso que implicava três comboios, e só por sorte não perdemos o último. Como têm muita procura, sobretudo os que fazem percursos maiores e na época alta, convém reservar com alguma antecedência, porque por vezes já estão esgotados um ou dois dias antes da data.

11  Itália Florença.jpg

 

Os alojamentos

Mais uma vez, sobretudo por ser época alta, decidi sair daqui já com tudo marcado – num país com tanto turismo, o risco de ficar sem grandes opções de escolha é sempre real, e marcar com antecedência acaba por ser menos um factor de preocupação. Na maior parte dos casos ficámos em alojamento local e só raramente em hotel. Seja qual for o caso, os preços são um bocado altos e não incluem pequeno-almoço, que tem sempre de ser pago à parte (quando há essa opção) e também não é barato. Mas como a comida é de um modo geral cara, acaba por valer a pena aproveitar o que o alojamento propõe, sobretudo porque se poupa o tempo de andar à procura de um sítio para comer logo de manhã.

 

O roteiro

Apesar de serem duas semanas, planear esta viagem foi um pouco como tentar meter o Rossio na Rua da Betesga: há tanto para ver que para fazer uma selecção entre o que se visita e o que se deixa de fora é preciso ter alguma força de vontade. Quero sempre ver tudo, faço pesquisas, ouço sugestões, e acabo com uma lista interminável de sítios para conhecer; mas gosto de viajar devagar (mesmo assim, nunca é tão devagar como eu quereria), e portanto tenho de fazer escolhas, que me deixam na dúvida sobre se estarei a descartar algum lugar interessante em detrimento de um outro de que se calhar não vou gostar tanto. Enfim, são os dilemas de viajar…

14 Itália Toscana.JPG

Calculo que estranhem não ter incluído Pisa neste roteiro – e passei lá perto duas vezes. Foi uma escolha intencional, por causa de opiniões de quem já lá esteve e diz que a cidade não tem nada de interessante – tem a Torre e a igreja, ambas inclinadas, muita gente a tirar fotografias, e nada mais. Foi um dos sítios que ficou de reserva para o caso de ter tempo, mas como no último dia em que tivemos carro apanhámos o tal engarrafamento de que já falei, acabámos por não ter oportunidade para parar em Pisa. Não estou arrependida, e tenho mais pena de não ter tido tempo para ver outros lugares.

 

Este foi o roteiro completo:

Dia 1: Voo Lisboa-Milão; comboio Milão-Levanto-Vernazza

Dia 2: Vernazza; Riomaggiore; Manarola; Corniglia; Monterosso; Vernazza (sempre de comboio)

Dia 3: Vernazza; La Spezia; Verrucola; Piazza al Serchio; Pontecosi; Castelnuovo di Garfagnana; Barga; Lucca

Dia 4: Lucca

Dia 5: Lucca; Lari; Palaia; Certaldo; Volterra

Dia 6: Volterra; San Gimignano; Colle di Val d’Elsa; Monteriggioni; Siena

Dia 7: Siena

Dia 8: Siena; Montalcino; Bagno Vignoni; Madonna di Vitaleta; Pienza; Montepulciano

Dia 9: Montepulciano; Sinalunga; Monte San Savino; Arezzo; La Spezia

Dia 10: La Spezia; Florença

Dias 11 e 12: Florença

Dia 13: Comboio Florença-Bolonha

Dia 14: Bolonha

Dia 15: Comboio Bolonha-Florença; voo Florença-Lisboa

Certaldo                                                   Verrucola

 

O que mais me surpreendeu

A maior surpresa de toda a viagem foi sem dúvida Bolonha. Adorei o ambiente da cidade, onde o muito antigo e o mais recente convivem em absoluta harmonia. Tem muita gente jovem, muitas bicicletas, uma arquitectura característica, e um centro histórico interessante e bem preservado. Não é uma cidade de que se ouça falar como destino turístico de excepção, mas merecia ser.

 

O melhor da viagem

Toda a região do Val d’Orcia é ainda mais bonita ao vivo do que nas fotografias. As colinas ondulantes, cor de palha, com os ciprestes escuros alinhados ao longo das estradas de acesso às quintas, ou agrupados no meio do nada… O contraste é tão grande que parece irreal.

 

Montepulciano é um encanto, é tal e qual a Toscana do meu imaginário. Também gostei muito de Volterra, uma vila bonita, bem conservada e com muita vida. Bagno Vignoni tem uma atmosfera bucólica e relaxante, apetece ficar por ali a “esplanadar”, ou a ler um livro à sombra, passar uns dias dedicados ao dolce far niente. Barga, uma vila muito antiga de que nunca tinha ouvido falar até começar a preparar esta viagem, foi outra boa surpresa.

Volterra                                                 Montepulciano

Bagno Vignoni                                                 Barga

 

Em Pontecosi, junto ao lago com o mesmo nome, há uma zona de lazer perfeita para desligar do exterior e simplesmente “estar”. Foi um dos lugares mais agradáveis de toda a viagem, embora na verdade seja um sítio muito simples e sem nada que se possa considerar excepcional.

27 Itália Pontecosi.JPG

 

A Catedral de Siena é um dos monumentos religiosos mais bonitos que já visitei até hoje. Exteriormente, não é tão impressionante como a de Florença, mas o interior é maravilhoso – muito mais do que o de outras catedrais bem mais famosas.

 

Salvo algumas excepções, as igrejas estão todas abertas. Há imensas, de todas as espécies e em todos os estilos, na sua maioria muito antigas. Além de serem artística e historicamente interessantes, foram sempre um intervalo agradável longe do calor que se sentia na rua.

Monte San Savino

 

As Cinque Terre não desiludiram, apesar de estarem um bocado cheias de gente e demasiado viradas para o turismo.

Vernazza                                                 Manarola

 

Estranhamente, porque também é uma localidade quase exclusivamente dedicada ao turismo, gostei mais de San Gimignano do que estava à espera. Talvez por não haver carros, ou porque as torres criam uma paisagem visual diferente… Não consigo explicar bem a razão, mas gostei.

34 Itália San Gimignano.JPG

 

O facto de qualquer restaurante, café, chafarica ou seja o que for ter mesas na rua e à sombra. Tomar o pequeno-almoço num jardim ou varanda, almoçar à sombra das árvores, lanchar numa rua sossegada ou jantar à luz dos últimos raios de sol, foram momentos privilegiados de descanso e convívio durante toda a viagem.

Bolonha                                                   Certaldo

 

E já disse que adorei Bolonha?

 

O assim-assim da viagem

Por uma questão prática que teve a ver com o aluguer do carro, deixei Florença para depois do roteiro na Toscana. Talvez por isso, porque já tinha passado vários dias em ambientes semelhantes, a cidade impressionou-me menos do que estava à espera. Não me desiludiu: a arquitectura é maravilhosa, ver a escultura original do David foi um desejo tornado realidade, o exterior da Catedral deixou-me de boca aberta, e comer um gelado de caramelo salgado (o melhor gelado do mundo!) enquanto via o pôr-do-sol a partir de uma das pontes sobre o Arno reconciliou-me definitivamente com a vida. Mas não senti aquele clique de afinidade que aconteceu noutros lugares. Ou talvez fosse porque havia muita gente por todo o lado e às vezes parecia-me sentir no ar um certo frenesim, que não condiz nada com o meu espírito de férias. Tal como também me sucedeu em Siena, outra cidade lindíssima mas muito movimentada.

 

Algumas das vilas toscanas que visitei revelaram-se menos interessantes do que eu esperava. É certo que todas elas têm edifícios históricos e uma atmosfera própria, mas não as achei particularmente bonitas ou estimulantes. É o caso de Castelnuovo di Garfagnana, que me pareceu demasiado agitada e urbana, e também de Palaia, Lari, Monteriggioni e Sinalunga, que achei um bocado insípidas.

Palaia                                                   Lari

 

O menos bom da viagem

Definitivamente, os milhares de degraus e as ladeiras que é preciso subir em quase todo o lado. Vale muito a pena o esforço, porque as vistas são maravilhosas, tanto as rurais como as urbanas, mas aumentam o factor cansaço, sobretudo quando além disso também andamos quilómetros.

Barga                                                  Corniglia

 

O facto de estar bastante calor não ajudou, e fez aumentar o esforço. É muito agradável poder andar com roupa leve e ter noites com temperaturas amenas em que nem sequer um casaco de malha faz falta, mas o calor excessivo constante (na ordem dos 20 e muitos ou mesmo mais de 30 graus nas horas do meio do dia) torna a viagem mais cansativa. Note-se que eu gosto muito de calor, mas para estas viagens fisicamente mais exigentes acaba por atrapalhar.

 

O “coperto” e/ou o “servizio” que os restaurantes cobram na conta final. São valores de pagamento obrigatório, desde que estejam indicados no menu, e aumentam bastante o preço da refeição. Normalmente só cobram um ou outro, mas aconteceu-nos cobrarem ambas as taxas. O “coperto” varia geralmente entre 1,5 e 2,5€ por pessoa, mas em Bolonha (onde estive sozinha) cobraram-me 4€! Habitualmente colocam pão na mesa, assim como que para justificar o valor, mas nem sempre. Quanto ao “servizio”, é menos comum, e anda entre os 10 e 15% do valor total. Se somarmos a isto sobremesas a 6€, um copo de vinho por 5€ ou mais (nem vale a pena pensar em garrafas…!) e cafés a 1,5€, dá para perceber que é fácil uma refeição ficar pelo dobro do preço do prato principal. E não contem com doses para duas pessoas, que isso é coisa que não existe, embora na maior parte dos casos os pratos venham bem servidos.

 

Esta prática de acrescentar valores que não se justificam também é seguida noutros sítios. Para a Galleria dell’Accademia além do preço normal do bilhete, que já não é pequeno (12€), cobraram mais 4€ por cada reserva – sendo que a “reserva” foi chegar lá e dar o nome a uma senhora, que verificou a hora para que havia bilhetes disponíveis (online já estavam esgotados), e nos passou para a mão um papelinho com um número que apresentámos depois na bilheteira à hora estipulada (menos de 1 hora mais tarde). Se tivéssemos reservado online, teríamos pago o mesmo valor de reserva. Como os visitantes são muitos, não há qualquer outra hipótese de conseguir bilhete – o que significa que temos sempre de pagar 16€, em vez dos supostos 12€.

 

Onde gostaria de ter ficado mais tempo

A conselho de quem já lá tinha estado, reservei apenas um dia para as Cinque Terre. É verdade que deu para ver tudo (de comboio, são apenas poucos minutos entre cada aldeia), mas gostava de as ter conhecido com mais vagar, para apreciar melhor cada uma delas. Mais um dia ou dois seriam o ideal.

 

Também ficaria mais uns dias em Lucca. É uma cidade bonita, não demasiado turística, e com o equilíbrio certo entre animação e tranquilidade. Tem muito para conhecer e visitar, de preferência com calma e tempo, para a experiência ser menos cansativa.

 

A Montepulciano já chegámos quase ao fim do dia, por isso só fomos conhecer melhor a vila na manhã seguinte, antes de irmos para outras paragens. Soube-me mesmo a muito pouco…

48 Itália Montepulciano.jpeg

 

Bagno Vignoni também foi uma visita de passagem, mas seria um lugar óptimo para descansar durante uns dias.

49 Itália Bagno Vignoni.JPG

 

Decidimos parar em Arezzo no último dia do roteiro na Toscana, antes de regressar a La Spezia. Tínhamos algumas horas disponíveis, que obviamente apenas foram suficientes para ver uma parte do centro histórico. Gostei da cidade, e merece sem dúvida uma visita mais prolongada.

50 Itália Arezzo.JPG

 

Também não me importava nada de ter estado mais uns dias em Bolonha, e irei certamente regressar um dia a esta cidade.

51 Itália Bolonha.JPG

 

***

 

Dizer que esta viagem me deixou encantada é dizer pouco. Foram duas semanas de imersão numa cultura que é muito próxima da nossa, em certos aspectos, mas tem diferenças suficientes para que uma viagem seja tudo menos monótona. Poderia ter lá ficado mais tempo sem me fartar – e acho também que é um daqueles países em que conseguiria gostar muito de viver.

 

Irei publicar posts mais detalhados sobre estas duas semanas por terras italianas. Fiquem por aí, podem ter a certeza de que vão ter vontade de ir conhecer este pedaço da Itália. Perguntem tudo o que quiserem saber, e se já conhecem, deixem nos comentários a vossa opinião e sugestões de outros lugares que valha a pena visitar nesta região.

 

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Roteiro de duas semanas em Itália

 

Qui | 02.09.21

Um roteiro no Alto Alentejo

 

Na imensidão tão plana que é o nosso Alentejo, a serra de São Mamede é a sua maior excepção. De facto, é a serra mais alta que encontramos a sul do Tejo, mas a excepcionalidade não fica por aqui, e os motivos para a visitar são mais que muitos: o seu Parque Natural, as vilas cheias de História, a gastronomia que faz crescer água na boca e conforta o estômago, as vistas que se estendem sobre muitos quilómetros de paisagem e atravessam a fronteira, e até mesmo alguns segredos surpreendentes. Neste roteiro de dois dias proponho a visita a alguns locais menos conhecidos da região em torno desta serra, sem no entanto esquecer as suas vilas mais famosas. Vamos passear?

 

Dia 1

 

Castelo de Vide → Portagem → Ammaia

 

O primeiro dia deste roteiro começa naquela que é para mim uma das vilas mais bonitas e interessantes não apenas do Alentejo, mas de todo o país: Castelo de Vide. Situada num dos extremos da Serra de São Mamede, tem origens identificadas pelo menos desde o século XIII e o seu castelo foi posto de defesa das nossas fronteiras durante largos séculos, tendo pertencido à Ordem de Avis. É, por isso mesmo, um repositório muito rico da nossa história e da nossa cultura, além de ser uma vila belíssima, tanto pelo património construído que possui como pelo seu entorno natural.

 

Mas antes de descobrirmos os segredos que o núcleo histórico de Castelo de Vide encerra, vamos primeiro vê-la de longe e de cima, subindo até à Ermida da Senhora da Penha, local de lenda e de romaria desde o século XVI, e miradouro privilegiado sobre a vila e a imensidade da região circundante.

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Voltamos à estrada principal. Numa das rotundas antes de entrarmos na vila, vale a pena parar junto à Fonte do Martinho. Aliás, é impossível ignorá-la, pelas suas grandes dimensões. Terá sido bem mais útil e frequentada noutros tempos, pois já aqui está desde pelo menos o século XVII e tem inclusivamente um bebedouro para animais, o que é compreensível porque esta é desde sempre a via principal que liga Castelo de Vide a Portalegre. Como maior curiosidade desta fonte temos os quatro “golfinhos” de mármore de onde sai a água.

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Chegamos finalmente ao “coração” da vila, a Praça Dom Pedro V. Arejada e com muitos lugares de estacionamento, é aqui que encontramos a Câmara Municipal e a Igreja Matriz de Santa Maria da Devesa, de traça simples e sem grandes caprichos exteriores, mas imponente nas suas dimensões – é provavelmente a maior igreja de todo o Alto Alentejo.

4 Praça D. Pedro V.JPG

Seguindo para norte, entramos nas ruelas da antiga judiaria, de que ainda restam hoje vestígios importantes. Crê-se que a origem deste bairro, desenvolvido na encosta nascente da vila a partir das muralhas do castelo, terá sido um foral concedido por D. Pedro I ao seu físico (a que hoje chamaríamos médico), Mestre Lourenço, que se presume seria judeu. A comunidade judaica de Castelo de Vide cresceu sobretudo após 1492, ano em que os Reis Católicos de Espanha ordenaram a expulsão de todos os judeus que viviam nos seus territórios, muitos dos quais se refugiaram em Portugal.

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O largo onde fica a Fonte da Vila é o centro radial deste bairro, e a fonte é o ex-libris de Castelo de Vide. Aproveitando as águas de uma nascente, a fonte terá sido ampliada ao longo dos tempos, datando do século XVI o essencial da forma que lhe conhecemos hoje – rectangular, ornamentada e com uma cobertura piramidal suportada por colunas de mármore.

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Vagueamos pelas ruas empedradas que levam ao Castelo, onde muitas casas conservam os pórticos ogivais de granito, alguns com gravações nas impostas que suportam o arco. Na esquina da Rua da Fonte com a Rua da Judiaria encontramos o edifício da antiga Sinagoga, que agora é um museu. Depois de ter servido de residência durante vários séculos, a Sinagoga foi reconstruída em 1972 de acordo com a sua traça original. As sondagens arqueológicas efectuadas durante as obras de recuperação revelaram que o edifício teve fases de ocupação distintas desde pelo menos o século XIV.

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Núcleo Museológico da Sinagoga de Castelo de Vide

www.cm-castelo-vide.pt

Rua da Judiaria, 7320-190 Castelo de Vide

Horário: Inverno 9h-13h e 14h-17h / Verão 9h-13 e 15h-18h

Contactos: telefone 245 905 154  email sociocultural.cmcv@gmail.com

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Passamos as portas da muralha e entramos no bairro do Castelo. O empedrado da calçada é irregular e há muitas casas que precisam de recuperação, mas as ruas estão floridas. A Porta da Vila está guardada por dois toscos soldados medievais, talhados em madeira, que não assustam ninguém. No Salão Grande do Castelo haverá certamente uma exposição para ver, e vale a pena subir à Torre de Menagem, de onde temos uma das mais bonitas panorâmicas sobre o casario branco da vila e os seus telhados cor de tijolo.

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Saímos de Castelo de Vide para sudeste, em direcção a Portagem. Percorridos uns 5 km, ignoramos o desvio que nos leva à localidade e continuamos pela N246-1. Este troço, popularmente conhecido como Alameda dos Freixos, é uma das estradas mais bonitas do nosso país. Ao longo de cerca de um quilómetro alinham-se, de um lado e outro da estrada, freixos com mais de 200 anos, marcados com largas faixas brancas de cal. O efeito é extraordinário, e pode ser observado com mais calma parando o carro numa das escapatórias laterais criadas para o efeito.

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Continuando pela estrada, a seguir a São Salvador da Aramenha encontramos um dos locais mais surpreendentes e menos conhecidos desta região: as ruínas da cidade romana de Ammaia. Desta cidade apenas existe informação que se reporta ao século II, pese embora se saiba que terá sido elevada a Civitas romana em 44 ou 45 d.C. Os estudos efectuados mostram que Ammaia era a principal cidade de uma região a sul do Tejo que se estendia por quase 4000 km2, abrangendo territórios que hoje pertencem a Portugal e a Espanha. A área potencial de escavação é enorme (cerca de 25 hectares), mas apenas uma pequena parte viu até agora a luz do dia. Embora se saiba da existência destas ruínas romanas desde o século XVI e as primeiras escavações arqueológicas tenham começado em finais do século XIX, só em 1994 é que o local recebeu protecção legal. Três anos depois foi criada a Fundação Ammaia, que gere e promove a preservação e divulgação das ruínas, bem como todo o trabalho de investigação que continua a ser levado a cabo.

 

A visita começa pelo Museu, cuja exposição permanente reúne uma grande quantidade de objectos encontrados durante as escavações efectuadas até agora, onde se inclui uma fabulosa colecção de vidros, na sua maioria intactos, e que poderiam passar perfeitamente por peças feitas em épocas recentes.

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No exterior, as áreas já escavadas e expostas estão rodeadas de vegetação e só conseguimos descortiná-las com ajuda das setas identificadoras que nos orientam pelos caminhos de terra batida. Os três núcleos principais são a Porta Sul, as Termas, e o Fórum e Templo. O pouco material que foi possível pôr a descoberto é complementado por painéis com a recriação digital de cada local, tal como se supõe ter sido o seu aspecto quando a cidade era habitada. A visita às ruínas é um passeio agradável num ambiente bucólico e, se a época do ano for propícia, também muito florido.

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Fundação Cidade de Ammaia

http://www.ammaia.pt/

Quinta do Deão, Estrada da Calçadinha nº4, 7330-318 S. Salvador de Aramenha - Marvão

Horário: 9h-12h30 e 14h-17h30

Contactos: telefones 245919089 / 960325331  email ammaia@ammaia.pt

 

 

Dia 2

 

Marvão → Marco → Cabeço de Vide → Vila Formosa

 

No alto da Serra de São Mamede, Marvão é um ninho de águia definido pelas muralhas espessas do seu castelo, que rivalizam em cor e resistência com o maciço granítico sobre o qual a vila se instalou – em certos sítios nem se percebe bem onde acaba a obra da natureza e começa a da mão humana. E até os restos oxidados de um canhão que em tempos defendeu a fortaleza parecem fundir-se com a pedra.

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Em Marvão ziguezagueamos pelas ruas onde o branco óptico das paredes contrasta com as cores soturnas do granito que debrua portas e janelas, trepamos à muralha para sentir a vertigem das alturas e percorrer uma parte do perímetro da vila, visitamos o Museu Municipal instalado na dessacralizada Igreja de Santa Maria, que em tempos pertenceu ao Priorado da Ordem de Malta, passamos pelo jardim onde os buxos desenham formas geométricas e os bancos convidam ao descanso, e finalmente subimos ao Castelo, posto de vigia permanente da região e fortaleza inexpugnável reforçada ao longo dos tempos desde o século XII, quando D. Afonso Henriques a conquistou aos mouros.

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Museu Municipal de Marvão

http://www.cm-marvao.pt/pt/museus/museu-municipal

Igreja de Santa Maria, Marvão

Horário: 10h-12h30 e 13h30-17h

Contactos: telefone 245909132  email museu.municipal@cm-marvao.pt

 

Castelo de Marvão

http://www.cm-marvao.pt/pt/museus/castelo

Horário: 10h-19h

Contactos: telefone 245909138  email castelo@cm-marvao.pt

 

De Marvão tomamos a estrada para Arronches e depois viramos em direcção à fronteira para ir conhecer a ponte internacional mais pequena do mundo. Une a aldeia portuguesa do Marco à espanhola El Marco, embora na realidade a localidade seja apenas uma e a língua falada dos dois lados seja o português. A dividi-la, a ribeira de Abrilongo, cuja travessia se faz por uma ponte pedonal com 6 metros de comprimento por 1,95 de largura. Os marcos fronteiriços de pedra estão lá, o “P” de um lado e o “E” do outro, mas na verdade aqui a fronteira nunca foi muito mais do que uma mera formalidade teórica, pois esta região tem sido povoada, de ambos os lados, por camponeses alentejanos.

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O nosso próximo destino é a aldeia de Cabeço de Vide, famosa nos meios científicos internacionais mas praticamente desconhecida dos circuitos turísticos. Os mais de 600 metros do seu Rossio fazem dele um dos maiores (se não mesmo o maior) a sul do Tejo, e o encantador centro histórico que parte das muralhas do castelo para sul tem ruas floridas e casas com enormes chaminés tradicionais, debruadas com faixas amarelas ou azuis, várias igrejas simples, e algumas outras construções de carácter monumental.

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Mas o motivo pelo qual Cabeço de Vide tem recebido atenção por parte da comunidade científica envolve as águas minerais naturais que aqui correm e cujas propriedades excepcionais são conhecidas desde há cerca de 3500 anos, pois já os romanos as utilizavam. São as águas de uma das nascentes das Termas da Sulfúrea, a cerca de 2 km da vila, que têm vindo a ser estudadas pelos investigadores, devido ao seu pH elevado e ao processo geoquímico provocado pela interacção entre essa água e os minerais presentes na rocha, o qual leva à produção de hidrogénio, fonte de vida. O complexo junto às termas inclui um parque de merendas, uma praia fluvial e outras infra-estruturas de apoio.

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Quase ao lado das termas, a antiga estação de comboios de Cabeço de Vide fez parte do ramal ferroviário de Portalegre entre 1937 e 1990, ano em que a linha foi desactivada. Depois de algum tempo ao abandono, foi cuidadosamente recuperada e convertida em estalagem. Com mais aspecto de casa senhorial do que de estação ferroviária, é um edifício notável tanto pelas suas proporções harmoniosas como, e sobretudo, pelos lindíssimos painéis de azulejo que decoram as suas paredes e nos mostram, com execução primorosa, cenas campestres e motivos florais.

31 Antiga estação CP Cabeço de Vide.JPG

 

O último local de paragem deste roteiro, já no regresso a casa, é breve mas muito agradável. Na N369, cerca de 10 km depois de Alter do Chão, um desvio leva-nos ao parque de merendas criado junto à ponte romana de Vila Formosa. Construída no séc. I ou II d.C. sobre a ribeira de Seda, esta ponte fez parte da estrada nacional até há não muitos anos, quando foi construído um viaduto algumas centenas de metros mais ao lado. Apesar de ser uma ilustre desconhecida em termos turísticos, está classificada como monumento nacional desde 1910 e é o elemento da arquitectura civil alto-imperial mais importante do nosso país, pois pertencia à estrada que ligava Olisipo (Lisboa) a Augusta Emerita (Mérida), na época a capital da província romana da Lusitânia. É um lugar tranquilo e de grande beleza natural, onde apenas se ouvem os pássaros e a água quase parada da ribeira serve de espelho aos arcos de volta perfeita da ponte – o sítio ideal para terminar este roteiro que nos levou a conhecer alguns dos locais mais belos do Alto Alentejo.

32 Ponte romana Vila Formosa.JPG

 

(Este roteiro foi publicado pela primeira vez no website Fantastic)

 

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