A geografia de Portugal é tão variada quanto o somos nós, portugueses, e a nossa cultura. Este pequeno rectângulo da Europa, com fronteiras delimitadas pelo mar e pelo seu povoamento, a que se juntam dois punhados de ilhas e ilhéus no Atlântico, tem uma diversidade paisagística tão imensa que surpreende até mesmo quem já lhe conhece mais ou menos bem os “cantos à casa”.
“Conjunto de antigo e moderno, numerosas praias de macias areias e extensas campinas verdejantes, testemunho de uma história herdada dos seus antepassados fenícios, gregos, romanos e árabes: assim é Portugal, terra acolhedora, perfumada pelas flores.” – e é assim que o jornalista e escritor André Visson (1899-1971) começa o artigo que escreveu em 1954 sobre Portugal, com o título A Garden by the Sea (traduzido como Jardim da Europa à beira-mar plantado n’O Grande Livro das Viagens publicado pelas Seleccções do Reader’s Digest, e sobre o qual já falei no meu post O culpado). Quando Visson escreveu isto Portugal era apenas mais um país minúsculo e pobre num continente que ainda lambia as feridas da mais recente guerra, e este retrato permaneceu inalterado durante décadas. Milhares de rotações terrestres e terabytes de avanços tecnológicos depois, o nosso país passou de ilustre desconhecido a coqueluche do turismo mundial, e basta uma ligação à Internet para perceber que a oferta paisagística de Portugal vai muito além das praias de areias macias e campinas verdejantes. Milhões de fotografias, divulgadas em tudo o que é website ou rede social, testemunham a variedade e riqueza do nosso património geográfico e provam que uma viagem no nosso tão pequeno país é como olhar para dentro de um caleidoscópio – a cada curva do caminho, a paisagem muda, surpreende, e nunca nos aborrece.
E no entanto, grande parte de toda a publicidade que é feita a Portugal parece focar-se essencialmente nos mesmos lugares, que são replicados fotografia atrás de fotografia com ligeiras variações, mais ou menos Photoshop, mais ou menos saturação de cor, luz matinal ou do entardecer, ângulo mais ou menos aberto… Não discuto aqui o merecimento destas escolhas, e de muitos deles também já falei noutros posts. Mas hoje apetece-me falar de outras paisagens portuguesas, igualmente inspiradoras, igualmente importantes, igualmente dignas de serem vistas mais uma vez, em fotografia e depois ao vivo, e que estão muito menos divulgadas. Cada uma delas tem características próprias, por vezes únicas, e contribui para enriquecer a diversidade deste país a que chamamos nosso. Estas são algumas delas, entre as muitas mais que Portugal oferece a quem faz questão de o conhecer.
Barragem de Santa Luzia
Escondida entre as serranias ondulantes da serra do Açor, a albufeira da Barragem de Santa Luzia é quase uma miragem: um deslumbrante lençol de água azul-eléctrico que surge de repente quando fazemos uma curva na estrada que vem da Pampilhosa da Serra. O contraste da paisagem cria no cérebro uma sensação de incongruência, parece impossível a coabitação entre a crista quartzítica maciça que se ergue do lado esquerdo, onde o muro de betão da barragem fecha o círculo e trava o passo ao rio Unhais, e o lago tranquilo rodeado de colinas arborizadas, que se transformam em picos acastanhados mais ao longe, com a serra da Estrela a espreitar entre eles, acinzentada pela distância.
Esta é uma parte do nosso interior beirão que se mantém relativamente tranquila e é pouco explorada turisticamente, ofuscada por outras áreas em volta que são mais publicitadas. Tem no entanto uma oferta hoteleira razoável, sobretudo ao nível do alojamento local, excelentes praias fluviais – uma delas na própria albufeira da barragem, rodeada por uma bonita mata – e, como não podia deixar de ser, uma gastronomia excelente. Foi sobre esta região que escrevi o post Nas curvas da Pampilhosa.
Buracas do Casmilo
Perto da aldeia de Casmilo, no Maciço de Sicó, o Vale das Buracas é um conjunto de formações geológicas resultantes do abatimento da parte central de uma colina, que deixou a descoberto as grutas que existiam no seu interior, escavadas pela água nas zonas calcárias mais porosas durante o período jurássico médio. Apesar de pouco profundas, algumas destas grutas têm uma dimensão considerável e o aspecto de todo o conjunto é magnífico e original, diferente de todas as outras formações geológicas que encontramos no nosso país.
As grutas estão rodeadas de vegetação rasteira e oliveiras, e surgem como manchas cinzentas e negras entre o verde dominante. Na sua maioria são de fácil acesso, bastando subir um pouco pelos carreiros marcados pelos passos de muitos outros visitantes. Nota-se que algumas servirão regularmente de abrigo e local de reunião de grupos, a julgar pelos vestígios que ali são deixados, por vezes algo estranhos.
Carrascal do Juízo
Junto à aldeia do Juízo, num planalto meio desértico (e quase deserto) da Beira Alta, há um bosque de aspecto misterioso que poderia ser palco para o enredo de uma novela gótica. É o Carrascal do Juízo, um bosque de azinheiras onde os troncos das árvores fazem lembrar esqueletos retorcidos e estão cobertos de líquenes tão antigos que já foram objecto de estudo científico. É atravessado pela ribeira do Porquinho, que tanto pode estar quase seca como ser necessário cruzá-la sobre as poldras ali colocadas para facilitar a passagem. Quando saímos do bosque e chegamos ao ponto mais alto das redondezas, os olhos perdem-se nos muitos quilómetros da paisagem serrana que vai de Marialva a Trancoso.
Sobre a aldeia do Juízo e o projecto de alojamento local que nela se desenvolve podem ler mais pormenores no post Juízo, uma aldeia que tem histórias.
Estuário do Sado
É uma das nossas Reservas Naturais e estende-se por vários quilómetros e municípios, alimentando pessoas e animais desde que há memória. As margens do Sado no seu estuário são essencialmente planícies aluviais, embora também haja algumas zonas dunares e de praia. A riqueza florestal e agrícola do estuário e a sua diversidade faunística fazem dele um local privilegiado tanto para trabalhar como para passear. Há inúmeros e variados pontos de interesse ao longo dos muitos quilómetros que rodeiam a extensão onde o Sado se encontra com o mar. Um dos meus favoritos é a zona de Alcácer do Sal a que chamam Amieira, mais noticiada por ser todos os anos invadida por flamingos em migração para outras paragens, mas que é permanentemente habitada por uma enorme quantidade de aves diferentes, desde cegonhas a garças, pernilongos, alfaiates e outras pernaltas, além das omnipresentes gaivotas, que gostam de perseguir em grande algazarra os tractores que preparam o solo para a semeadura do arroz.
O meu local mais preferido no estuário do Sado é o cais palafítico da Carrasqueira, uma obra-prima da arquitectura popular com características únicas que o tornam verdadeiramente fora de série. Embora cada vez menos pescadores façam uso dele, tem-se mantido quase inalterado ao longo das décadas e tornou-se parte importante da paisagem cultural desta região, com o seu aspecto colorido, tosco, meio decrépito e absurdamente cheio de poesia.
Podem conhecer mais um pouco sobre estes (e outros) locais nos posts Lugares para conhecer em Portugal em tempos de pandemia e 11 lugares a não perder em Portugal continental.
Estuário do Tejo
É uma das zonas húmidas mais importantes da Europa e ramifica-se em esteiros e mouchões de aluvião, sendo as suas margens em grande parte constituídas por campos de vasa e sapais, onde a vegetação é rasteira e predominam as gramíneas e os caniços. A importância do estuário do Tejo deve-se sobretudo ao facto de ser ambiente de permanência regular de inúmeras espécies de aves aquáticas (que chegam a atingir o impressionante número de 120 000 indivíduos), e um dos lugares onde podemos observar mais de perto muitas destas aves é o Parque Linear Ribeirinho do Estuário do Tejo, entre a Póvoa de Santa Iria e Alverca. Há inúmeros patos, as sempre presentes gaivotas, e uma enorme população de guinchos, pilritos, alfaiates e maçaricos-das-rochas, só para citar os que são mais facilmente visíveis. Nas ribeiras que desaguam no Tejo há felosas e galinhas-d’água, e no meio do verde da erva emerge de vez em quando o pescoço branco e comprido de uma garça-boieira, movendo-se com aquele balanço quase hipnótico tão típico delas.
Esta zona do estuário é em grande parte ocupada pelo vasto Mouchão da Póvoa, onde apenas vemos desenhadas as silhuetas de algumas árvores, e o Tejo que avistamos parece só um rio estreito e tranquilo, muito diferente das perspectivas mais reconhecíveis que dele temos em vários outros troços do seu percurso.
Fanal
O Fanal é um caso à parte na Madeira, uma paisagem distinta de todas as outras que encontramos nesta ilha, sobretudo pelo seu bosque de tis centenários (o til é uma árvore endémica da Madeira e das Canárias), que aqui vivem desde antes dos Descobrimentos. Neste bosque encantado, os troncos rugosos e retorcidos das árvores velhíssimas parecem ir ganhar vida a qualquer momento, e imaginamos com facilidade que de repente vão começar a falar connosco numa voz roufenha e mal-humorada, perguntando-nos porque estamos a incomodá-las no seu sono. Uma pequena lagoa, entre a orla do bosque e uma escarpa, ajuda ao encantamento; e se estiver neblina, como tantas vezes acontece, a impressão de estarmos dentro de um filme é ainda maior. Ou então, e porque estamos a altitudes que rondam os 1100 metros, podemos ter a sorte de chegar a um miradouro e ver abaixo de nós um tapete de nuvens extenso e compacto, e sentimo-nos como que a voar. É um outro mundo.
Guadiana
Apesar de ser o terceiro maior rio que corre em território português e fonte do imenso lago artificial criado pela Barragem de Alqueva, o Guadiana continua a ser um ilustre desconhecido para a maioria dos portugueses. Talvez isso se deva ao facto de a maior parte da sua extensão correr em Espanha, e muito do que sobra ser fronteira entre os dois países, ou talvez porque do lado de Portugal o seu curso se faz maioritariamente em zonas pouco povoadas. O certo é que este rio tem muito menos protagonismo do que vários outros do nosso país, e por isso mesmo ainda há muito por “descobrir” nas suas margens.
Pouco depois de passar a ser também nosso, uns quantos quilómetros abaixo da fronteira do Caia, o Guadiana é palco para as ruínas de uma ponte com muita história. A Ponte da Ajuda foi construída no séc. XVI para ligar Elvas à luso-espanhola Olivença, quando a questão da propriedade deste território ainda não suscitava dúvidas. Tinha 385 metros de comprimento, suportados por 19 arcos, e um torreão colocado no centro. Foi destruída e reconstruída várias vezes até 1709, quando o exército castelhano a fez explodir durante a Guerra da Sucessão Espanhola. Está em ruínas desde essa altura, e é bem visível a partir da bem mais recente ponte que faz parte da estrada entre Elvas e Olivença – e que tem uma placa a indicar Espanha na extremidade em que supostamente entramos no país vizinho, mas (compreensivelmente) nenhuma placa a indicar Portugal quando fazemos o trajecto em sentido contrário.
Lagoa de Paramos
A Lagoa de Paramos, também conhecida como Barrinha de Esmoriz, é a maior área lagunar da região norte de Portugal e um local fascinante. Fica muito perto do mar e à sua volta corre um passadiço de madeira com oito quilómetros, um lugar privilegiado para passear ao sol, relaxar e observar aves de várias espécies. Dependendo da altura do ano, além das habituais gaivotas e de patos variados, é possível avistar guinchos, galeirões e galinhas-de-água, pernilongos e pilritos, garças, águias-sapeiras, e também alguns pássaros menos comuns como o bispo-de-coroa-amarela ou o chamariz. Rodeada de dunas e canaviais, em certos troços do passadiço avistamos os aglomerados de casas das povoações vizinhas, mas a maior parte do tempo é passada tendo apenas por companhia a água, a vegetação rasteira e os sons das aves.
Situada numa região que tem muito para ver, incluí-a num roteiro que já aqui sugeri há algum tempo, e que podem encontrar no post Roteiro de fim-de-semana: entre a natureza e a História.
Meandros do Zêzere
Um dos troços mais admiráveis do rio Zêzere é o que serpenteia entre a aldeia de Dornelas e a barragem do Cabril, conhecido como Meandros do Zêzere. Atravessando esta zona extremamente montanhosa, o rio desbrava o seu caminho moldando-se ao relevo irregular e intenso que domina a paisagem, seguindo com calma, imperturbável, pelas curvas e contracurvas que a serrania o obriga a percorrer. Da N344, a estrada que vai para a Pampilhosa da Serra, há vários locais de onde podemos observar esta maravilha da natureza. Outro dos lugares privilegiados para apreciar os Meandros é a aldeia de Álvaro, estrategicamente situada ao longo de uma crista sobranceira ao rio, precisamente no ponto onde ele forma um cotovelo muito pronunciado. Sobre esta região já falei no post Nos meandros do Zêzere, e continuo a considerá-la como um dos melhores segredos do nosso país.
Norte da ilha das Flores
Entre Santa Cruz das Flores e o Farol de Albarnaz, o ponto mais remoto da ilha, os olhos voltam-se para o mar. Aqui não há cascatas nem lagoas, mas sim miradouros sobre ilhéus rochosos com nomes tão díspares como Garajau, Álvaro Rodrigues, Furado ou Abrões. Ao longe, mais ou menos visível consoante o tempo, o Corvo marca presença, e se o dia estiver desanuviado conseguimos distinguir a olho nu a brancura das casas da Vila do Corvo, brilhando ao sol entre o verde-acinzentado que cobre a ilha. A estrada que nos leva por esta parte da costa das Flores é tudo menos linear e demora algum tempo a percorrê-la, principalmente porque não resistimos à tentação de parar de poucos em poucos quilómetros (podem perceber melhor porquê no post Na ilha das Flores - parte VI), mas tirar uma manhã ou tarde para conhecer esta zona menos divulgada da ilha é tempo bem empregue.
Quando chegamos à ventosa Ponta do Albarnaz, a sensação é de que estamos no fim do mundo. Não fossem o farol e as vacas que por ali pastam, poderíamos pensar que a vida se tinha extinguido da face da Terra. Mas mesmo não estando no fim do mundo, estamos praticamente no fim de um continente: o ilhéu de Monchique, que é considerado o ponto mais ocidental da Europa, fica a uns meros quatro quilómetros de distância, em linha recta sobre o mar para sudoeste.
Pateira de Fermentelos
Classificada como Zona Húmida de Importância Internacional, fértil em riqueza biológica, e habitat de muitas espécies de aves, anfíbios e peixes, a Pateira de Fermentelos é além do mais um local com uma variedade de ambientes que mudam radicalmente consoante a hora do dia, as alterações climáticas e a perspectiva de onde a observamos. É um dos lugares mais românticos do nosso país, com os seus mirantes de madeira gémeos que evocam outras latitudes e outros tempos, os canaviais que ondulam ao vento, os barcos de fundo chato resguardados entre a vegetação das margens. Podem ler mais pormenores sobre esta belíssima lagoa, que ainda tanta gente desconhece, no post A lagoa tranquila.
Pôr-do-sol no Alentejo
Os melhores pores-do-sol em Portugal são os da planície alentejana. Há neles uma magia especial que transforma o céu na paleta de um pintor, mesmo quando por vezes ele é atravessado por nuvens. A amplitude da paisagem, frequentemente desprovida de grandes árvores, mostra-nos silhuetas negras sobre campos amarelos à nossa volta, enquanto faixas cor-de-rosa e laranja se destacam num fundo azul brilhante por cima de nós. Outras vezes o céu fica vermelho berrante, incendiando a planície, as casas e as estradas, ou adquire a suavidade das cores pastel, como se filtradas por um vidro fosco – mas nunca, nunca se repete.
Portal do Inferno
A estrada M567 percorre de forma irregular, como se estivesse embriagada, uma parte do Maciço da Gralheira, e num dos seus troços segue por uma crista muito estreita entre duas vertentes abruptas: é o Portal do Inferno, um dos miradouros mais fabulosos do nosso país. Estamos mil metros acima do nível do mar e de ambos os lados da estrada, lá muito no fundo, correm ribeiras, cada uma para seu lado (uma delas passa pela aldeia abandonada de Drave). Em volta desdobram-se as serras da Arada, de São Macário e da Freita, e as fundas linhas de água que as cortam verticalmente, vistas daqui, dão-lhes um aspecto característico a que chamam “garra”, por fazer evocar os dedos das patas de uma ave de rapina. É mais uma paisagem única no nosso país.
Serra de São Macário
A altura certa para subir a São Macário é perto da hora do sol-pôr, em dia com poucas ou nenhumas nuvens. Quando as cores quentes do ocaso começam a derramar-se sobre as serranias percebemos porque é que lhes chamam Montanhas Mágicas. Nem a profusão de aerogeradores – esses gigantes esquálidos que desenham no horizonte o contorno das serras – estraga a atmosfera, antes parece chamar (ainda mais) a atenção para as formas caprichosas da paisagem que se avista em redor. Não estranho por isso a lenda do santo que dá o nome à serra, que diz-se terá escolhido este lugar para viver como eremita, penitenciando-se por ter acidentalmente morto o seu pai, pois para viver solitário não podia ter escolhido melhor. A gruta onde supostamente viveu é agora uma capela, mas desconfio que foi a beleza do entorno o verdadeiro motivo por trás da construção de uma outra capela, maior, mesmo no pico da montanha, rodeada de um muro que a protege das ventanias e (mal) acompanhada pelas torres de comunicações ali instaladas. Neste lugar de contemplação, é como se já estivéssemos a meio caminho do céu.
Árvores queimadas
Todos os anos, nas várias viagens de carro que sempre faço em Portugal, deparo-me em algum lugar com uma paisagem de árvores queimadas. Em passeio na desolação de um pinhal ou floresta devastados pelo fogo não se ouve um som – não há pássaros a piar, nem folhas a sussurrarem ao vento, nem rumor de insectos. Apenas há silêncio.
Os incêndios são um flagelo nacional que nos afecta brutalmente todos os Verões e parece aumentar com o passar dos anos, consumindo recursos e vidas. Os seus efeitos demoram anos a desaparecer da paisagem, e permanecem para sempre no coração e na memória de quem neles perdeu os entes queridos, ou a eles sobreviveu miraculosamente.
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