Se no dia-a-dia me parece que o tempo voa, quando viajo sinto que voa a velocidade supersónica. Já estávamos quase a meio da viagem, com mais de 1500 quilómetros percorridos, e ainda só tínhamos visitado uma pequenina parte da Islândia. Neste sexto dia estava previsto passarmos por vários dos locais mais famosos do país: cascatas, lagos, a segunda maior cidade da Islândia... Prometia ser um dia em cheio – e foi!
Dia 6
Hófsós, a localidade onde dormimos no final do quinto dia desta viagem, fica na Norðurstrandarleið (ou, em bom inglês, Arctic Coast Way) e foi nesta estrada costeira que, depois do pequeno-almoço que preparámos na cozinha da guesthouse, continuámos viagem até Siglufjörður. O dia estava macambúzio, com nuvens tão baixas que mais pareciam nevoeiro, e os 6°C da temperatura do ar reforçavam a sensação de estarmos no Inverno, não quase em finais de Julho. Não tardou a começar a chover, embora em pequena quantidade, antes uma morrinha intermitente que acinzentava a paisagem. Pela janela do carro iam desfilando quintas, pastagens, cavalos, sempre com o mar de um lado e as montanhas do outro, manchadas de neve. A meio do caminho, um engarrafamento: um rebanho de cabras (as primeiras que vimos na ilha) trotando animadamente, ocupando toda a largura da estrada, pastoreadas por um rapaz montado numa bicicleta. Neste engarrafamento havia um único carro, o nosso, e talvez por isso não se sentiram muito pressionadas para nos deixarem passar. Quanto a nós, não estávamos propriamente com pressa – vantagens de estar em férias – e as cabras foram uma distracção bem vinda.
Contrariamente ao que sucedeu com grande parte das vilas islandesas que visitámos, simpatizei de imediato com Siglufjörður. Aninhada no fundo de um fiorde, protegida pelos picos nevados que a rodeiam, a vila foi no século passado a capital da pesca do arenque no Atlântico. Mas nos anos 60 o arenque desapareceu das costas do norte da Islândia, e Siglufjörður entrou em declínio. Dos 3 mil habitantes que tinha na época passou para os cerca de 1300 da actualidade, e embora os sucessivos governos tenham tentado incentivar a fixação de pessoas na vila, ligando-a às regiões vizinhas por um sistema de túneis que veio facilitar as deslocações, a recuperação mostra-se lenta. A par com a actividade piscatória, que continua a ser a mais importante, o turismo tornou-se outra das fontes de rendimento de Siglufjörður. Numa das extremidades do porto foi construída uma pequena marina, e em seu redor criado um complexo turístico que inclui um hotel e dois restaurantes, edifícios baixos construídos de acordo com as linhas da arquitectura típica escandinava e pintados com cores contrastantes. A chuva miúda e os 5°C de temperatura não convidavam a demoras, mas ainda assim achei o local encantador – e alguns patos que nadavam na marina partilhavam certamente a minha opinião. Estivesse o tempo mais agradável e ter-me-ia sem dúvida alongado mais por ali.
As ruas de Siglufjörður são compridas e estendem-se paralelas à costa, distribuindo-se em níveis pelo declive suave na base da montanha. As casas parecem ser maioritariamente unifamiliares e quase sempre têm dois pisos, ou mais raramente três. Algumas são mesmo muito bonitas, com telhados irregulares divididos em várias águas, por vezes ornamentados com frisos, e com janelas e varandas trabalhadas.
Em frente ao porto, um grupo de construções variadas alberga o Museu da Era do Arenque, considerado um dos melhores museus do país e único no seu género em todo o mundo. Cada um dos edifícios tem uma exposição diferente, abrangendo desde barcos a equipamentos eléctricos, documentos, artefactos, e toda a história da pesca e salga do arenque e da vida comunitária na região. Inclui também o espaço exterior aberto que é desde 1934 o estaleiro de construção naval da localidade, e que continua a funcionar para reparação das embarcações afectas ao Museu e construção de pequenos barcos a remos.
A distância que separa Siglufjörður de Ólafsfjörður, localizada dois fiordes e correspondentes cadeias montanhosas para leste, é hoje em dia de apenas 17 km e vence-se em meros 20 minutos graças aos dois túneis rodoviários inaugurados em 2010, construídos para combater o isolamento destas localidades. O minimalismo que parece estar generalizado na Islândia faz com que a maioria dos túneis só tenha uma faixa de rodagem, com escapatórias num dos lados para que os carros possam recolher-se quando vem um veículo em sentido contrário, mas não é felizmente o caso destes, provavelmente por serem bastante longos: o túnel norte tem 3,7 km e o sul 6,9 km.
O programa de visitas para este dia era muito ambicioso, razão pela qual ignorámos Ólafsfjörður e Dalvik, duas localidades sem nada de muito especial para ver, e seguimos viagem junto à costa até Akureyri, a segunda maior cidade da Islândia. Com os seus quase 19 mil habitantes, é a zona mais populosa depois de Reiquiavique e arredores, facto a que não será alheio o seu clima mais ameno do que o das áreas circundantes, pois as águas do porto nunca congelam.
O estômago já dava horas, por isso estacionámos o carro perto do Hof, o centro cultural e de congressos que é actualmente um dos edifícios mais icónicos da cidade, e abancámos no interior do DJ Grill. Já falei sobre a comida no post Coleccionar paisagens surreais na Islândia, mas ainda ficou alguma coisa por dizer. Muitos dos restaurantes islandeses, mesmo que bem cotados (no TripAdvisor, por exemplo) não são mais do que uma espécie de fast food melhorado. Não quero dizer com isto que a comida seja má, porque não é. Simplesmente as opções no menu são relativamente reduzidas e sobretudo pouco variadas. Ao contrário do que poderíamos pensar (ilha = muito peixe), há uma predominância de carne em todo o lado, sobretudo de borrego (obviamente!) e de vaca. Os restaurantes mais em conta são tipo as nossas hamburguerias gourmet, onde a base é carne grelhada, ou por vezes frita, geralmente no pão, e o que varia são os acompanhamentos. Note-se, no entanto, que a carne é muito boa. Também têm normalmente pizzas, e por vezes pratos de outros países, particularmente indianos, mexicanos ou japoneses. Fish & chips e calamares aparecem com frequência nos menus, mas peixe a sério só mesmo nos restaurantes mais caros. Quem for vegetariano não tem problemas porque há sempre saladas, e costumam ter alguns pratos sem glúten.
Com tudo isto, não se come mal na Islândia, e o pior de tudo é mesmo a factura. No DJ Grill pagámos 27€ por dois menus de hamburger com ovo, batatas e alguns extras, incluindo a bebida – e foi a segunda refeição mais barata das que fizemos em restaurantes durante toda a viagem. As batatas eram das congeladas e o pão o normal dos hambúrgueres, mas estava tudo bem confeccionado e saboroso. O ambiente é informal e não demoraram demasiado a atender, apesar de terem as mesas quase todas ocupadas. Percebe-se que é um restaurante popular, muito frequentado por famílias, e foi uma boa opção para fugir do frio do exterior – apesar de Akureyri ter temperaturas menos geladas do que o resto do norte da ilha, e de o dia estar ensolarado, fazia-se sentir um vento cortante que não deixou o termómetro subir acima dos 9 graus.
Akureyri é a cidade onde a luz vermelha dos semáforos é um coração. Em 2008, o ano da grande crise financeira na Islândia, a Câmara Municipal achou por bem incentivar o espírito positivo dos habitantes salientando aquilo que realmente importa na nossa vida, e decidiu transformar o habitual círculo vermelho num coração. A ideia foi um sucesso, e passou a tradição. É mais um exemplo do carácter do povo islandês, habituado a resistir às situações mais duras sem baixar os braços, e a valorizar o que é essencial.
A meio da rua pedonal dedicada ao comércio, a Hafnarstræti, também há um grande coração encarnado, em cuja base se lê “love akureyri”. É nesta rua que estão algumas das casas mais originais da cidade, como o Blaa Kannan Café, pintado nas cores da bandeira islandesa e com duas torres pontiagudas a fazerem lembrar os palácios dos contos de fadas, ou a gelataria Turninn, que parece uma igreja e tem uma exótica cor rosa-bombom.
A Akureyrarkirkja é outra das construções emblemáticas da cidade. As igrejas islandesas não são feitas para passarem despercebidas, e esta não é excepção. Isolada no cimo de uma grande escadaria, sóbria na sua cor cinza-quase-branco, destaca-se pelo formato modernista geométrico. Foi concebida pelo mesmo arquitecto que criou a Hallgrímskirkja de Reiquiavique, Guðjón Samúelsson. Menos “orgânica” que a sua parente da capital, tem um certo ar Art Déco, apesar de ter sido terminada em 1940, quando aquele estilo artístico já não estava em voga. Infelizmente, estava de porta fechada – uma bela porta de madeira com ferro forjado, por sinal – e por isso não pudemos ver o famoso vitral que se encontra por cima do altar e que durante muitos anos se supôs ter sido um dos vitrais da Catedral de Coventry, em Inglaterra, destruída durante a Segunda Guerra Mundial. Investigações mais recentes revelaram que na verdade os vitrais daquela catedral não foram retirados antes do bombardeamento, pelo que ficaram igualmente destruídos, e os vitrais da Igreja de Akureyri pertencerão de facto a uma igreja londrina, não se sabendo exactamente qual.
O facto de estar a uns meros 50 km a sul do Círculo Polar Árctico não impede Akureyri de ter um dos jardins botânicos mais encantadores do norte da Europa. Oficialmente só aberto de Junho a Setembro (devido à neve que se acumula nos restantes meses), este jardim tem mais de 7 mil espécies diferentes de plantas, das quais apenas 430 são nativas da Islândia. O microclima proporcionado pelo facto de a cidade se encontrar abrigada no Eyjafjörður, um dos fiordes mais longos do país, favorece o crescimento da vegetação – aliás, Akureyri é uma cidade com algum arvoredo, algo que não é muito habitual na Islândia.
O Lystigarður divide-se em várias áreas diferentes, agrupando espécies vegetais de acordo com os seus ambientes de origem. Caminhos ondulantes, imaculadamente limpos, rodeiam canteiros com flores coloridíssimas, arbustos e árvores, zonas arrelvadas e pequenos lagos. Foram estrategicamente colocados bancos para descanso dos visitantes, e alguns bustos esculpidos, a que é dado o devido destaque, prestam homenagem às figuras que impulsionaram a criação deste jardim. Há também um café, um edifício moderno feito com materiais locais cuja fachada faz lembrar os ramos de uma árvore, com uma esplanada em volta.
Sendo um jardim botânico, uma das suas principais finalidades é aumentar o conhecimento sobre as plantas, tanto nativas como estrangeiras, e perpetuar o maior número de espécies possíveis. Entre as actividades essenciais do Lystigarður estão a investigação e o intercâmbio de sementes com outros jardins, em busca das que sobrevivem e melhor se adaptam ao clima específico da região. É numa enorme estufa, cheia de plantas e equipamento, que se desenrola todo o trabalho de bastidores que permite manter este jardim. Está interditada aos visitantes, mas os grandes vidros transparentes deixam ver para o interior.
Duas casas de madeira, pintadas em preto e branco, chamam a atenção junto à entrada sul. Uma delas é a Eyrarlandsstofa, uma construção de meados do século XIX que pertencia aos proprietários das terras onde hoje se encontra Akureyri. A casa foi habitada até 1933, e originalmente encontrava-se situada 50 metros a sul do local onde está hoje, tendo sido trasladada para ficar inserida no complexo do jardim. Estas casas de madeira e vários outros pormenores “rústicos” dão ao Lystigarður um ambiente informal e acolhedor, e fazem dele um dos locais mais agradáveis da cidade.
A partir de Akureyri voltámos à Estrada 1 e às nuvens cinzentas, com o termómetro a marcar cada vez menos graus. Na direcção leste, depois de passar o dique sobre o fiorde há duas opções de percurso: ou seguimos pelo túnel, o único troço rodoviário da Islândia que é pago (1500 ISK, que à taxa de câmbio actual corresponde a cerca de 9,90 EUR), ou tomamos primeiro a Estrada 83, que segue junto à costa durante mais uns quilómetros, e depois a 84, que vira para o interior, até voltarmos a encontrar a Ring Road novamente. De Inverno, por causa da neve e dos ventos fortes, este percurso é desaconselhado, mas com tempo bom não tem qualquer problema e é bem mais panorâmico. A diferença são apenas 15 quilómetros, uns meros dez minutos de caminho. Optar entre um percurso e outro é fácil, pois mesmo antes do desvio para o túnel existe uma rotunda onde as duas estradas estão bem assinaladas, por isso basta ignorar a que segue para o túnel e escolher a saída seguinte.
A paragem seguinte, 50 quilómetros depois de Akureyri, foi para conhecer uma das cascatas mais icónicas da Islândia: Goðafoss. O nome significa “cascata dos deuses” e a ela está associada uma história. Com a constituição do Estado Livre Islandês em 930 d.C., foi criado o Althingi, uma assembleia geral realizada anualmente, na qual todos os homens livres podiam participar e os cidadãos mais poderosos do território discutiam leis e aplicavam a justiça. Por volta do ano 1000 d.C. discutiu-se numa dessas assembleias a questão religiosa, tendo Thorgeir Ljósvetningagoði – um dos mais importantes chefes de clã e redactor de leis – proposto que a Islândia adoptasse uma única lei e uma única religião, abandonando o paganismo em favor do Cristianismo. Reza a lenda que ao regressar às suas propriedades, Thorgeir terá decidido atirar os ídolos dos seus deuses pagãos para uma cascata, que ficou desde então conhecida pelo nome de Goðafoss.
Lenda ou não, a verdade é que a beleza desta cascata é tanta que parece obra de deuses habilidosos e cheios de bom gosto. As rochas formam um semi-círculo por onde a água, que tem uma cor leitosa entre o azul e o verde, cai de 12 metros de altura, abundante e com força suficiente para provocar uma névoa fina permanente.
A Goðafoss é alimentada pelo rio Skjálfandafljót, o quarto maior rio do país, que corre desde o vulcão Trölladyngja num campo de lava com 7000 anos de idade. É uma das cascatas mais populares, por se encontrar mesmo junto à Ring Road e ser de fácil acesso: não é preciso subir nem andar muito. Pode ser vista de ambos os lados, e cada um oferece uma perspectiva diferente, a do lado oeste sendo um bocadinho mais abrangente.
Soubemos mais tarde, em conversa com o recepcionista do alojamento onde ficámos instalados, que na época alta do turismo os três parques de estacionamento junto a esta cascata costumam estar completamente cheios, com filas de carros a transbordarem para a Ring Road, à espera de lugar nos parques. Isto significa milhares de pessoas em constante movimento pelos caminhos que rodeiam esta cascata, o que (para mim) se assemelha a um pesadelo. Ter tido a possibilidade de apreciar a maravilha natural que é a paisagem islandesa num ano em que o turismo sofreu uma quebra tão grande foi um privilégio, e certamente ajudou a que esta viagem fosse tão memorável. Segundo dados da Câmara de Turismo da Islândia, em 2020 o movimento de partidas do Aeroporto de Keflavik caiu para 25% do habitual nos últimos anos, aproximando-se dos níveis de 2010. Especificamente no mês de Julho, a quebra foi superior a 80%. É um duro golpe para a economia do país, que tem vindo cada vez mais a apoiar-se no turismo, mas melhora incomensuravelmente a qualidade da experiência de quem o visita.
Goðafoss é um dos pontos de interesse da rota turisticamente mais explorada no norte da Islândia, a que puseram o nome de Círculo de Diamante. Uma parte deste percurso contorna o Lago Myvátn, um lago vulcânico muito raso (não excede os quatro metros e meio de profundidade), com margens recortadas e mais de 50 ilhotas na sua superfície. O facto de ser pouco profundo faz com que os raios de sol penetrem até ao leito, por isso o Myvátn tem uma grande diversidade ecológica e é rico em algas de água doce e em peixe. Esta riqueza atrai inúmeras espécies de aves, sobretudo no Verão.
À volta do Myvátn não faltam atracções. Há locais geologicamente invulgares como as pseudo-crateras de Skútustaðagígar ou os campos de lava de Dimmuborgir. Podemos subir à cratera do vulcão Hverfjall, ou ficar de molho nas piscinas naturais de água quente, cuja fama só é ultrapassada pela da Blue Lagoon; e são vários os percursos pedestres assinalados. É uma região que merece ser explorada com calma – mas nós já só tínhamos umas quantas horas, e era preciso escolher. Optámos por aquele que nos pareceu ser o local mais diferente do que já tínhamos visto: Höfði, uma península rochosa que penetra no lago, coberta por uma pequena floresta.
Florestas são sítios raros na Islândia. Em viagem pelo país, a nossa visão alcança quase permanentemente quilómetros e quilómetros de paisagem, e essa é uma das razões pelas quais achei este país tão esmagador na sua beleza. O meu cérebro estava constantemente a trabalhar, sobrecarregado por tanta imensidão, tentando guardar tudo o que via, todas as subtilezas das nuvens, do mar, das montanhas, dos pequenos aglomerados de casas que iam passando pelas janelas do carro. Por isso, percorrer os caminhos talhados entre o arvoredo de Höfði, a amplitude visual limitada por troncos, folhas e uma nesga de terra batida, foi um exercício relaxante.
Consta que Höfði pertenceu a um casal que aqui passava os meses de Verão. Ao longo dos anos foram plantando árvores, flores e arbustos, e esse será o motivo pelo qual a península tem tanta vegetação, em flagrante contraste com o que a rodeia. Após a morte do marido, a viúva doou a propriedade ao município. A entrada faz-se por um portão aberto e há vários caminhos assinalados, mas todos acabam por ir dar ao mesmo local: um trilho à beira do lago, de onde conseguimos ver bem de perto as formações de lava que emergem da água no local a que chamam baía de Kálfastrandarvogur. Os trilhos estão bem cuidados, há corrimãos de madeira que protegem alguns lugares mais próximos da água, canteiros de flores, e até uma clareira com bancos de jardim para descansar. Uma parte da península continua a ser privada e tem uma casa, provavelmente a habitação de quem cuida do local.
A poucos quilómetros de distância fica a Grjótagjá, tornada famosa por ter sido um dos cenários da série Guerra dos Tronos – tal como Höfði e muitos outros locais na Islândia, uns mais conhecidos do que outros. Situada junto a uma comprida falha entre paredes de rocha, esta gruta já foi em tempos usada como piscina termal, mas as erupções do Krafla entre 1975 e 1984 provocaram um enorme aumento na temperatura da água e os banhos passaram a ser interditos. Excepção feita ao maravilhoso tom azul da água, tão translúcido que deixa ver o fundo da gruta, o lugar não tem absolutamente mais nada de especial.
O mesmo não se pode dizer de Hverir, a planície no sopé do Námafjall, onde me senti como noutro planeta. Antes de lá chegar passámos pela central geotérmica de Bjarnarflag, facilmente identificável pelas enormes colunas de fumo de dela se desprendem. Instalada em 1969, é uma das centrais geotérmicas mais antigas do país e também a mais pequena, com apenas uma unidade termoeléctrica a vapor que, ainda assim, tem uma capacidade de produção de 18 GWh/ano. Depois da central entra-se no desfiladeiro Námaskarð, que tem um miradouro estratégico de onde vemos ao longe a quase totalidade da extensão do Myvátn, interrompida pelos rolos de vapor que se atravessam na paisagem.
Quando saímos do desfiladeiro o cenário torna-se ainda mais irreal. Hverir é uma área geotermal onde as temperaturas podem ultrapassar os 200°C. As fumarolas e poças de lama sulfurosa, algumas de tamanho considerável, distribuem-se por vários quilómetros, e o solo mineralizado declina-se numa palete de cores com cinzas, amarelos-esbranquiçados, e tons avermelhados que vão até ao castanho.
O cheiro a enxofre domina todo o ambiente, mas não estraga o prazer de estar num local tão fora do comum. Passeei entre as poças ferventes, seguindo as cordas que marcam os sítios onde podia pisar sem perigo. Já estive noutros lugares com actividade vulcânica, mas este é fascinante, e diferente de tudo o que vi até hoje. É como estar num mundo estranho.
Apesar de a tarde já ir bem avançada e as nuvens não augurarem nada de bom, ainda tínhamos mais um objectivo a cumprir: ver Dettifoss, a segunda cascata mais poderosa da Europa (ou talvez a primeira, pois as opiniões divergem). Pode ser observada de ambas as margens, mas os caminhos para cada uma delas são separados. Por ficar mais perto, escolhemos a estrada para o parque de estacionamento da margem oeste, de onde também se acede à Selfoss, outra cascata localizada um quilómetro e meio a montante da Dettifoss. Ainda mal tínhamos saído da Ring Road e virado para norte quando o tempo começou a piorar. Não tardou a instalar-se uma chuva muito fininha mas persistente. Para mal dos nossos pecados, o estacionamento fica a cerca de 800 metros da cascata, a temperatura do ar tinha descido para uns míseros 3°C, e continuava a chuviscar. Mesmo àquela distância, o barulho da Dettifoss já era perceptível. A água cai abruptamente de uma altura de 44 metros, ao longo dos 100 metros de largura que o rio ocupa. A força é tanta que, a cada ano, a cascata recua meio metro para sul devido ao desgaste provocado no leito do rio.
A somar à chuvinha, a névoa provocada pelos quase 200 metros cúbicos de água debitados por segundo, e o facto de o vento ter tendência a soprar de leste para oeste, fizeram com que o troço final para chegar mais perto da cascata, que é a descer e essencialmente pavimentado com pedra, estivesse completamente molhado e algo escorregadio, a exigir cuidado redobrado para não cairmos. Só que a curiosidade é mais forte do que todos os contratempos, e a Dettifoss é fenomenal. Não é a cascata mais bonita da Islândia, nem a mais original: é simplesmente uma cortina de água que se precipita no fundo do desfiladeiro. Mas foi, entre as muitas que vi, a cascata que mais me impressionou – uma força bruta da natureza da qual estive muito perto, a escassas dezenas de metros, e me fez sentir completamente insignificante. Uma experiência avassaladora que não consigo pôr em palavras.
O frio e o facto de estarmos a ficar encharcados não nos incentivaram a ficar ali muito tempo. Voltámos ao trilho para seguirmos as setas que indicam o caminho para a Selfoss. Perfeitamente visível à distância, é mais bonita de longe do que quando nos aproximamos, porque se desdobra em várias cascatas que saem do ângulo de visão quando estamos mais perto. Muito menos possante do que a sua vizinha, é no entanto mais fotogénica, mesmo quando o tempo tinge a atmosfera de cinzento. As paredes do desfiladeiro são paralelepípedos de rocha que parecem esculpidos a escopro e martelo, e o solo que pisamos é pedra quase negra. É mais uma paisagem surreal a juntar às várias outras, todas distintas, de que foi feito este dia de viagem.
De regresso ao carro, ainda tivemos mais uma hora de viagem pela frente. Apesar de não ser o dia em que fizemos mais quilómetros, foi aquele em que chegámos mais tarde ao alojamento. Situada num vale amplo entre montanhas, a cerca de 30 km de Húsavík, a Guesthouse Brekka é um conjunto de cabinas de madeira com vários quartos em cada uma, confortáveis e muito quentinhas, onde finalmente conseguimos livrar-nos do frio e do desconforto das roupas molhadas.
Já estávamos a meio da viagem e ainda só tínhamos percorrido uma parte do norte no país, mas tudo o que tinha visto até àquela altura superava as minhas maiores expectativas. Na Islândia a natureza é rainha, e na maior parte do território as pessoas parecem só estar ali por empréstimo, a sua importância é irrisória por comparação com tudo o que as rodeia. A ilha deixa que elas a habitem, mas só onde ela bem entende e faz o favor de as suportar. Nós, humanos, podemos convencer-nos de que somos donos do planeta e fazemos dele o que queremos, mas ainda há lugares na Terra onde temos de nos render à nossa insignificância.
←Dia 5 da viagem: Na Norðurland Vestra (Região Noroeste)
Dia 7 da viagem: Húsavík e um passeio de barco→
O roteiro e várias informações práticas sobre a Islândia estão aqui: Coleccionar paisagens surreais na Islândia
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