Diário de uma viagem à Islândia III
Primeiro dia nos Westfjords
O extremo noroeste da Islândia é a região menos visitada do país, não por falta de encantos mas por ser uma península muito montanhosa e estar fora dos circuitos turísticos habituais. Tem por sua conta um terço da linha costeira de toda a ilha, e a razão para isso percebe-se facilmente pelo seu nome: Westfjords (em islandês, Vestfirðir). No nosso roteiro fizemos questão de reservar dois dias completos para conhecer alguns lugares mais emblemáticos desta região.
Dia 3
Tomámos o pequeno-almoço no pequeno e simpático restaurante do “edifício” principal do Dalahyttur Lodge, um meio cilindro de aspecto exterior algo tosco mas aconchegante no interior. Já na véspera a nossa hospedeira, Gudrun, tinha sido muitíssimo simpática ao disponibilizar-nos um livro e folhetos com informações úteis sobre pontos turísticos no país, e ao saber que íamos nesse dia para os Westfjords voltou a dar-nos mais algumas sugestões de lugares a visitar, que marcou num mapa. Depois ainda nos dedicámos durante um bom bocado a preparar comida para levar, aproveitando o facto de termos uma kitchenette à disposição. Ia ser um dia de viagem muito preenchido, quase 400 quilómetros em percurso maioritariamente sinuoso, acidentado, com troços em montanha e algumas estradas de gravilha. Mas era, sobretudo para mim, um dia muito excitante, e se tudo corresse como previsto seria sem dúvida um dos pontos altos da nossa viagem. Mais adiante já vão perceber porquê.
Fizemos 200 quilómetros de uma assentada, em duas horas e meia. A estrada ora seguia o contorno dos fiordes, ora atalhava caminho pelas montanhas pintalgadas de branco. Assim que começávamos a subir, o asfalto desaparecia e era substituído por terra batida, para voltar a aparecer quando a estrada descia até quase ao nível do mar para seguir a linha costeira do fiorde. Percebemos mais tarde que isto iria ser uma constante nos Westfjords, independentemente do facto de estarmos numa via principal ou secundária. Aqui e acolá passávamos por uma quinta ou por cima de alguma ponte. Não se via vivalma (com mais de 20 mil quilómetros quadrados, a região tem apenas cerca de 7500 habitantes) e poucos foram os carros com que nos cruzámos.
Nos fiordes, o mar parecia lago – e até bandos de cisnes avistámos, como que a reforçar essa ideia. Uma completa surpresa para mim, que esperava ondas daquelas que metem respeito, ou pelo menos um bocadinho de agitação marítima. Mas não, nada, nem ondas nem vento, apesar de o céu estar praticamente todo encoberto e a temperatura nesse dia nunca ter subido acima dos 12 graus.
A primeira paragem do dia foi em Hellulaug, junto à praia de Vatnsfjörður, onde existe uma pequena piscina de água quente ao ar livre – que estava ocupada por uma família, pelo que pusemos de lado a ideia de um banho quente e limitámo-nos a apreciar a vista enquanto comíamos as sandes bem recheadas que tínhamos preparado para o almoço. Com o mar de um lado e a montanha de um verde intenso do outro, convenhamos que há sítios bem piores para almoçar…
Continuámos caminho pela Estrada 62 durante quase mais uma hora, e depois desviámos para a 612, que nos iria levar ao destino principal do dia. Poucos quilómetros à frente, uns minutos de paragem obrigatória para fotografar o primeiro dos muitos exemplares de “ferro-velho” que encontrámos durante a viagem. O Garðar BA 64 é um antigo baleeiro, e mais tarde pesqueiro de arenque, que tem algumas particularidades dignas de menção: foi construído em 1912 – por coincidência o ano do naufrágio do Titanic – como embarcação híbrida dotada de velas e motor; foi o primeiro navio de aço que operou na Islândia, já depois do final da 2ª Grande Guerra; e em 1981, aquando da sua desactivação, em vez de ser desmantelado decidiram colocá-lo na praia do vale de Skápadalur, onde desde então tem vindo a desintegrar-se aos poucos. O contraste entre esta ruína ferrugenta e a paisagem quase etérea que o rodeia é uma das várias incongruências que fomos encontrando durante a nossa viagem pela Islândia.
Depois de mais quarenta minutos em estrada de terra batida, primeiro contornando uma parte do fiorde, depois atravessando a península e finalmente seguindo de novo junto ao mar, chegámos ao destino principal da jornada: Látrabjarg. Este conjunto de falésias que se estende por vários quilómetros (as mais altas de toda a ilha) é o ponto mais ocidental da Islândia, e é também uma das maiores colónias de aves da Europa. Aqui nidificam dez espécies diferentes de aves, como por exemplo araus-comuns, gansos-patolas, gaivotas, fulmares, tordas-mergulheiras e, sobretudo, as “estrelas da companhia” e a verdadeira razão que me fez querer ir até à espécie de fim do mundo que é Látrabjarg: os puffins.
O nome português que damos a estes bicharocos é papagaios-do-mar, mas – sinceramente! – é um nome demasiado pesado e pouco adequado para umas criaturinhas tão pequenas e fofas. Por isso, desculpem-me os puristas da língua portuguesa, mas vou continuar a usar o termo em inglês para me referir a eles. Os puffins (Fratercula arctica) são as aves-marinhas mais adoráveis à face da Terra e nem o mais empedernido carrancudo consegue ficar indiferente a estas fofuras ambulantes. São pequeninos – não mais de 29 cm de comprimento e cerca de meio quilo de peso – pretos no dorso e brancos por baixo, com patas cor-de-laranja e um bico também colorido que parece demasiado grande para o resto do corpo. Além do aspecto, grande parte do seu encanto está no andar bamboleante, no voo frenético e meio desengonçado, nos barulhos cómicos que fazem, na forma desastrada como se comportam: parecem uns autênticos palhacinhos. Pensando bem, palhacinhos-do-mar seria um nome bem mais apropriado para eles…
Em terra firme podem parecer desajeitados, mas no mar são exímios mergulhadores, conseguindo ir até 60 metros de profundidade e passar mais de um minuto debaixo de água em busca de peixe. Alimentam-se sobretudo de galeota, capelim, peixes juvenis e krill. Embora passem a maior parte do tempo no mar, os puffins nidificam em promontórios ou encostas com depósitos sedimentares, terra e erva. São monógamos e acasalam para a vida. A fêmea põe um único ovo por ano (se começar a nidificação muito cedo, poderá ainda pôr mais um), que é chocado alternadamente debaixo das asas do pai ou da mãe, pois os puffins dividem as responsabilidades da incubação, cujo período é de mais ou menos 42 dias.
Cerca de 60% da população mundial de puffins nidifica na Islândia, por isso é relativamente fácil encontrá-los por aqui entre finais de Abril e meados de Agosto (os pais abandonam as crias quando estas têm cerca de 40 dias de idade). A maior colónia destas aves na Islândia encontra-se nas ilhas Westman (Vestmannaeyjar), mas também é possível vê-los na península de Tjörnes, em Dyrhólaey, em várias outras ilhas e, é claro, em Látrabjarg, que é um local muito popular para os observar de perto. Há um parque de estacionamento de dimensão razoável, e um percurso junto à falésia devidamente limitado – com simples estacas e corda, que na Islândia confiam que as pessoas sejam sensatas e sigam os conselhos afixados nos painéis informativos. Basta subirmos uns metros para começarmos a ver as cabeças pretas e brancas e os bicos laranja de alguns puffins a mexerem-se por entre as ervas. Talvez porque sabem que esbanjam charme e somos incapazes de lhes fazer mal, não têm medo das pessoas e conseguimos estar relativamente perto deles sem que fujam. E digo-vos só uma coisa: era capaz de estar a observar estes bichinhos durante horas sem me cansar. São super engraçados, até mesmo apaixonantes, e vale bem a pena fazer uns quilómetros extra para os ver, pois é diversão garantida.
Depois de uma hora bem passada em Látrabjarg voltámos ao carro, confesso que com alguma relutância. No percurso de ida, cerca de vinte quilómetros antes do destino final, tínhamos passado por um sítio que parecia curioso, e como o regresso é obrigatoriamente feito pela mesma estrada decidimos fazer uma paragem nesse local. Hnjótur é uma quinta no meio de nenhures, que além de disponibilizar alojamento tem uma espécie de museu/ferro-velho de veículos, embarcações e aeronaves, onde a estrela é um Douglas C-117D da Marinha americana decomposto em várias partes, todas elas também em vários estágios de decomposição. A julgar pelo número de visitantes, muitos deles com crianças, parece ser um local bastante popular por aquelas bandas. E é mais uma amostra da estranha preferência que os islandeses parecem ter por velharias arruinadas.
Uma das paisagens mais surreais dos Westfjords é a praia de Rauðisandur. Este areal imenso, rodeado de pastagens e montanhas, muda de cor consoante as marés e as condições do tempo. A areia é clara, o que não é muito frequente na Islândia, mas basta raspar um pouco a superfície para a descobrir negra como breu. Vista de longe, tem tonalidades alaranjadas em certas zonas – aliás, Rauðisandur significa “areia vermelha” em islandês. À medida que a maré sobe ou desce, a água forma padrões curvilíneos sobre a areia, desenhando um mapa irregular de rios e lagos superficiais que espelham as cores do céu, das nuvens e das serranias. Junto à estrada há uma quinta rodeada de fardos embalados em plástico rosa-bombom, e uma igreja negra com telhado encarnado, rodeada por um muro de pedra que protege o seu cemitério: a Saurbæjarkirkja. Não fosse isso e uma família que ali andava a passear, o isolamento seria total. A Islândia, sobretudo nos Westfjords, tem inúmeros lugares assim, onde num raio de quilómetros somos só nós e a natureza. A tranquilidade é absoluta, e por vezes nem o vento se atreve a quebrar tanta paz.
Algures no caminho para Tálknafjörđur, onde tínhamos reservado um apartamento para ficarmos nas duas noites seguintes, ainda passámos por um sítio com ar de cemitério de retroescavadoras. Não consegui perceber se algumas daquelas máquinas de várias espécies ainda estariam aptas a trabalhar ou não, mas o certo é que todas tinham um aspecto lastimoso.
Em Patreksfjörđur, uma vila pequena junto ao mar, bonita quando vista de longe e enquadrada na paisagem, mas na realidade basicamente desinteressante, parámos para meter gasolina e comprar meia dúzia de coisas num supermercado.
Depois bastaram apenas vinte minutos para chegarmos ao apartamento em Tálknafjörđur, no número 28B da Túngata, onde a chave estava guardada num dispositivo colocado ao lado da porta, que desbloqueámos com um código que nos tinham enviado por mensagem. O apartamento é na realidade uma pequena casa independente, com cozinha e sala na espaçosa divisão da entrada, um quarto com duas camas confortáveis e uma casa-de-banho com polibã e – maravilha das maravilhas – chão aquecido. Foi, em toda a viagem, o alojamento mais caro, mas certamente também o melhor em que ficámos.
Os praticamente 400 quilómetros que fizemos neste dia foram em grande parte percorridos em estradas de terra batida e com bastantes curvas em algumas zonas. A acessibilidade complicada de certos locais é a razão pela qual os Westfjords são a região menos popular em termos turísticos. O reverso da medalha é podermos desfrutar de paisagens fascinantes e na verdade bastante diferentes das que vamos encontrar no resto do país.
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O roteiro e várias informações práticas sobre a Islândia estão aqui: Coleccionar paisagens surreais na Islândia
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