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Viajar porque sim

Paixão por viagens, escrita e fotografia

Seg | 28.09.20

Diário de uma viagem à Islândia III

Primeiro dia nos Westfjords

 

O extremo noroeste da Islândia é a região menos visitada do país, não por falta de encantos mas por ser uma península muito montanhosa e estar fora dos circuitos turísticos habituais. Tem por sua conta um terço da linha costeira de toda a ilha, e a razão para isso percebe-se facilmente pelo seu nome: Westfjords (em islandês, Vestfirðir). No nosso roteiro fizemos questão de reservar dois dias completos para conhecer alguns lugares mais emblemáticos desta região.

109 Diário Islândia - Westfjords

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Dia 3

 

Tomámos o pequeno-almoço no pequeno e simpático restaurante do “edifício” principal do Dalahyttur Lodge, um meio cilindro de aspecto exterior algo tosco mas aconchegante no interior. Já na véspera a nossa hospedeira, Gudrun, tinha sido muitíssimo simpática ao disponibilizar-nos um livro e folhetos com informações úteis sobre pontos turísticos no país, e ao saber que íamos nesse dia para os Westfjords voltou a dar-nos mais algumas sugestões de lugares a visitar, que marcou num mapa. Depois ainda nos dedicámos durante um bom bocado a preparar comida para levar, aproveitando o facto de termos uma kitchenette à disposição. Ia ser um dia de viagem muito preenchido, quase 400 quilómetros em percurso maioritariamente sinuoso, acidentado, com troços em montanha e algumas estradas de gravilha. Mas era, sobretudo para mim, um dia muito excitante, e se tudo corresse como previsto seria sem dúvida um dos pontos altos da nossa viagem. Mais adiante já vão perceber porquê.

111 Diário Islândia - Dalahyttur Lodge

 

Fizemos 200 quilómetros de uma assentada, em duas horas e meia. A estrada ora seguia o contorno dos fiordes, ora atalhava caminho pelas montanhas pintalgadas de branco. Assim que começávamos a subir, o asfalto desaparecia e era substituído por terra batida, para voltar a aparecer quando a estrada descia até quase ao nível do mar para seguir a linha costeira do fiorde. Percebemos mais tarde que isto iria ser uma constante nos Westfjords, independentemente do facto de estarmos numa via principal ou secundária. Aqui e acolá passávamos por uma quinta ou por cima de alguma ponte. Não se via vivalma (com mais de 20 mil quilómetros quadrados, a região tem apenas cerca de 7500 habitantes) e poucos foram os carros com que nos cruzámos.

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Nos fiordes, o mar parecia lago – e até bandos de cisnes avistámos, como que a reforçar essa ideia. Uma completa surpresa para mim, que esperava ondas daquelas que metem respeito, ou pelo menos um bocadinho de agitação marítima. Mas não, nada, nem ondas nem vento, apesar de o céu estar praticamente todo encoberto e a temperatura nesse dia nunca ter subido acima dos 12 graus.

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A primeira paragem do dia foi em Hellulaug, junto à praia de Vatnsfjörður, onde existe uma pequena piscina de água quente ao ar livre – que estava ocupada por uma família, pelo que pusemos de lado a ideia de um banho quente e limitámo-nos a apreciar a vista enquanto comíamos as sandes bem recheadas que tínhamos preparado para o almoço. Com o mar de um lado e a montanha de um verde intenso do outro, convenhamos que há sítios bem piores para almoçar…

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Continuámos caminho pela Estrada 62 durante quase mais uma hora, e depois desviámos para a 612, que nos iria levar ao destino principal do dia. Poucos quilómetros à frente, uns minutos de paragem obrigatória para fotografar o primeiro dos muitos exemplares de “ferro-velho” que encontrámos durante a viagem. O Garðar BA 64 é um antigo baleeiro, e mais tarde pesqueiro de arenque, que tem algumas particularidades dignas de menção: foi construído em 1912 – por coincidência o ano do naufrágio do Titanic – como embarcação híbrida dotada de velas e motor; foi o primeiro navio de aço que operou na Islândia, já depois do final da 2ª Grande Guerra; e em 1981, aquando da sua desactivação, em vez de ser desmantelado decidiram colocá-lo na praia do vale de Skápadalur, onde desde então tem vindo a desintegrar-se aos poucos. O contraste entre esta ruína ferrugenta e a paisagem quase etérea que o rodeia é uma das várias incongruências que fomos encontrando durante a nossa viagem pela Islândia.

123 Diário Islândia - Gardar BA 64

124 Diário Islândia - Gardar BA 64

 

Depois de mais quarenta minutos em estrada de terra batida, primeiro contornando uma parte do fiorde, depois atravessando a península e finalmente seguindo de novo junto ao mar, chegámos ao destino principal da jornada: Látrabjarg. Este conjunto de falésias que se estende por vários quilómetros (as mais altas de toda a ilha) é o ponto mais ocidental da Islândia, e é também uma das maiores colónias de aves da Europa. Aqui nidificam dez espécies diferentes de aves, como por exemplo araus-comuns, gansos-patolas, gaivotas, fulmares, tordas-mergulheiras e, sobretudo, as “estrelas da companhia” e a verdadeira razão que me fez querer ir até à espécie de fim do mundo que é Látrabjarg: os puffins.

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O nome português que damos a estes bicharocos é papagaios-do-mar, mas – sinceramente! – é um nome demasiado pesado e pouco adequado para umas criaturinhas tão pequenas e fofas. Por isso, desculpem-me os puristas da língua portuguesa, mas vou continuar a usar o termo em inglês para me referir a eles. Os puffins (Fratercula arctica) são as aves-marinhas mais adoráveis à face da Terra e nem o mais empedernido carrancudo consegue ficar indiferente a estas fofuras ambulantes. São pequeninos – não mais de 29 cm de comprimento e cerca de meio quilo de peso – pretos no dorso e brancos por baixo, com patas cor-de-laranja e um bico também colorido que parece demasiado grande para o resto do corpo. Além do aspecto, grande parte do seu encanto está no andar bamboleante, no voo frenético e meio desengonçado, nos barulhos cómicos que fazem, na forma desastrada como se comportam: parecem uns autênticos palhacinhos. Pensando bem, palhacinhos-do-mar seria um nome bem mais apropriado para eles…

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Em terra firme podem parecer desajeitados, mas no mar são exímios mergulhadores, conseguindo ir até 60 metros de profundidade e passar mais de um minuto debaixo de água em busca de peixe. Alimentam-se sobretudo de galeota, capelim, peixes juvenis e krill. Embora passem a maior parte do tempo no mar, os puffins nidificam em promontórios ou encostas com depósitos sedimentares, terra e erva. São monógamos e acasalam para a vida. A fêmea põe um único ovo por ano (se começar a nidificação muito cedo, poderá ainda pôr mais um), que é chocado alternadamente debaixo das asas do pai ou da mãe, pois os puffins dividem as responsabilidades da incubação, cujo período é de mais ou menos 42 dias.

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Cerca de 60% da população mundial de puffins nidifica na Islândia, por isso é relativamente fácil encontrá-los por aqui entre finais de Abril e meados de Agosto (os pais abandonam as crias quando estas têm cerca de 40 dias de idade). A maior colónia destas aves na Islândia encontra-se nas ilhas Westman (Vestmannaeyjar), mas também é possível vê-los na península de Tjörnes, em Dyrhólaey, em várias outras ilhas e, é claro, em Látrabjarg, que é um local muito popular para os observar de perto. Há um parque de estacionamento de dimensão razoável, e um percurso junto à falésia devidamente limitado – com simples estacas e corda, que na Islândia confiam que as pessoas sejam sensatas e sigam os conselhos afixados nos painéis informativos. Basta subirmos uns metros para começarmos a ver as cabeças pretas e brancas e os bicos laranja de alguns puffins a mexerem-se por entre as ervas. Talvez porque sabem que esbanjam charme e somos incapazes de lhes fazer mal, não têm medo das pessoas e conseguimos estar relativamente perto deles sem que fujam. E digo-vos só uma coisa: era capaz de estar a observar estes bichinhos durante horas sem me cansar. São super engraçados, até mesmo apaixonantes, e vale bem a pena fazer uns quilómetros extra para os ver, pois é diversão garantida.

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Depois de uma hora bem passada em Látrabjarg voltámos ao carro, confesso que com alguma relutância. No percurso de ida, cerca de vinte quilómetros antes do destino final, tínhamos passado por um sítio que parecia curioso, e como o regresso é obrigatoriamente feito pela mesma estrada decidimos fazer uma paragem nesse local. Hnjótur é uma quinta no meio de nenhures, que além de disponibilizar alojamento tem uma espécie de museu/ferro-velho de veículos, embarcações e aeronaves, onde a estrela é um Douglas C-117D da Marinha americana decomposto em várias partes, todas elas também em vários estágios de decomposição. A julgar pelo número de visitantes, muitos deles com crianças, parece ser um local bastante popular por aquelas bandas. E é mais uma amostra da estranha preferência que os islandeses parecem ter por velharias arruinadas.

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Uma das paisagens mais surreais dos Westfjords é a praia de Rauðisandur. Este areal imenso, rodeado de pastagens e montanhas, muda de cor consoante as marés e as condições do tempo. A areia é clara, o que não é muito frequente na Islândia, mas basta raspar um pouco a superfície para a descobrir negra como breu. Vista de longe, tem tonalidades alaranjadas em certas zonas – aliás, Rauðisandur significa “areia vermelha” em islandês. À medida que a maré sobe ou desce, a água forma padrões curvilíneos sobre a areia, desenhando um mapa irregular de rios e lagos superficiais que espelham as cores do céu, das nuvens e das serranias. Junto à estrada há uma quinta rodeada de fardos embalados em plástico rosa-bombom, e uma igreja negra com telhado encarnado, rodeada por um muro de pedra que protege o seu cemitério: a Saurbæjarkirkja. Não fosse isso e uma família que ali andava a passear, o isolamento seria total. A Islândia, sobretudo nos Westfjords, tem inúmeros lugares assim, onde num raio de quilómetros somos só nós e a natureza. A tranquilidade é absoluta, e por vezes nem o vento se atreve a quebrar tanta paz.


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151 Diário Islândia - Rauðisandur

 

Algures no caminho para Tálknafjörđur, onde tínhamos reservado um apartamento para ficarmos nas duas noites seguintes, ainda passámos por um sítio com ar de cemitério de retroescavadoras. Não consegui perceber se algumas daquelas máquinas de várias espécies ainda estariam aptas a trabalhar ou não, mas o certo é que todas tinham um aspecto lastimoso.

 

Em Patreksfjörđur, uma vila pequena junto ao mar, bonita quando vista de longe e enquadrada na paisagem, mas na realidade basicamente desinteressante, parámos para meter gasolina e comprar meia dúzia de coisas num supermercado.

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Depois bastaram apenas vinte minutos para chegarmos ao apartamento em Tálknafjörđur, no número 28B da Túngata, onde a chave estava guardada num dispositivo colocado ao lado da porta, que desbloqueámos com um código que nos tinham enviado por mensagem. O apartamento é na realidade uma pequena casa independente, com cozinha e sala na espaçosa divisão da entrada, um quarto com duas camas confortáveis e uma casa-de-banho com polibã e – maravilha das maravilhas – chão aquecido. Foi, em toda a viagem, o alojamento mais caro, mas certamente também o melhor em que ficámos.

 

Os praticamente 400 quilómetros que fizemos neste dia foram em grande parte percorridos em estradas de terra batida e com bastantes curvas em algumas zonas. A acessibilidade complicada de certos locais é a razão pela qual os Westfjords são a região menos popular em termos turísticos. O reverso da medalha é podermos desfrutar de paisagens fascinantes e na verdade bastante diferentes das que vamos encontrar no resto do país.

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←Dia 2 da viagem: Na península de Snæfellsnes

Dia 4 da viagem: Segundo dia nos Westfjords →

 

O roteiro e várias informações práticas sobre a Islândia estão aqui: Coleccionar paisagens surreais na Islândia

 

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Diário de uma viagem à Islândia - O primeiro dia nos Westfjords

 

Qui | 03.09.20

Diário de uma viagem à Islândia II

Na península de Snæfellsnes

 

A norte de Reiquiavique, estendendo-se 90 quilómetros pelo oceano adentro para oeste, fica a península de Snæfellsnes. Dizem dela que é a “Islândia em miniatura”, pela diversidade das suas características naturais, e foi aqui que passámos o segundo dia da nossa viagem.

57 Diário Islândia - Snæfellsnes

 

Dia 2

 

Com uma manhã cinzenta a prometer chuva, deixámos Reiquiavique. Com o passar dos dias viemos a perceber que estas manhãs encobertas são o normal, e que o sol só aparece lá pela hora de almoço – quando se digna aparecer. Mas também a chuva, apesar de prometer, pouco cumpriu, e raramente choveu durante a nossa estadia.

58 Diário Islândia - a caminho de Snæfellsnes

O interior da Islândia é completamente montanhoso e praticamente despovoado, por isso qualquer viagem na ilha é em grande parte feita percorrendo a Estrada 1, a célebre Ring Road, que dá a volta à ilha pelo exterior. A primeira decisão a tomar quando se planeia conhecer a Islândia de carro é se vamos viajar no sentido dos ponteiros do relógio ou em sentido inverso. Como queríamos dedicar uma boa parte dos dias a visitar o norte do país, que é uma zona turisticamente menos frequentada, decidimos começar o roteiro indo para norte, pelo que durante a viagem andámos geralmente com o mar do lado esquerdo e as montanhas do lado direito. Cenários diferentes, ambos deslumbrantes, mas se fosse agora creio que faria a volta em sentido inverso – como adoro água e desta vez fui como pendura, não pude deixar de sentir que as paisagens mais bonitas eram as do lado do condutor, independentemente do facto de do meu lado ter tido a oportunidade de observar bem o lado mais bucólico da Islândia.

59 Diário Islândia - a caminho de Snæfellsnes

60 Diário Islândia - a caminho de Snæfellsnes

Quando saímos de Reiquiavique, tudo mudou. Durante uns quantos quilómetros ainda se viam bastantes carros e passámos por algumas povoações de tamanho razoável. Depois aproximámo-nos da costa e seguimos com o Atlântico Norte por companhia – e surpreendentemente até passámos por baixo dele, no túnel de Hvalfjörður, que é um dos maiores túneis submarinos do mundo (quase 6 km) e foi escavado a uma profundidade de 165 metros. Uma proeza da engenharia com pouco mais de vinte anos e que encurta o tempo de passagem do fiorde para menos de 10 minutos, em vez de uma hora pela estrada normal.

61 Diário Islândia - túnel de Hvalfjörður

Ao fim de uma hora passámos o dique e a ponte sobre o Borgarfjörður – fjörður, como não é difícil de perceber, significa fiorde – e na cidade de Borgarnes trocámos a Estrada 1 pela 54, que segue para a península de Snæfellsnes. Sobre nós pairava um manto de nuvens, tão imóveis e por vezes tão baixas que quase parecia bastar estender a mão para lhes tocar. Não é só à noite que a atmosfera da Islândia tem toques de irrealidade.

62 Diário Islândia - Borgarnes

63 Diário Islândia - Borgarnes

 

A língua islandesa é estranha para nós e tem palavras muito compridas, sobretudo porque muitas delas são palavras compostas por várias outras palavras. Por exemplo, snær significa neve, fell significa montanha, e nes é um cabo ou promontório. Portanto, Snæfellsnes significa basicamente “península da montanha nevada”. É uma maneira fácil de formar palavras, neste caso totalmente apropriada porque a península é atravessada longitudinalmente por uma extensa cadeia montanhosa composta por vulcões, alguns deles activos (mas não em erupção), cujo ponto mais alto é o magnífico Snæfellsjökull. Antes que perguntem, jökull significa glaciar, e nos picos desta montanha o gelo nunca derrete completamente, nem mesmo no pino do Verão. Bom, “nunca” já não é neste caso o advérbio mais rigoroso, pois no Verão de 2012 a calota glaciar do vulcão derreteu na totalidade, o que foi obviamente motivo de grande preocupação e um claro indício dos resultados nefastos do aumento da temperatura global. O Snæfellsjökull ficou famoso por ser o local que Jules Verne escolheu como porta de acesso para os protagonistas do seu livro Viagem ao Centro da Terra chegarem às profundezas do nosso planeta.

64 Diário Islândia - Snæfellsjökull

 

A nossa primeira paragem do dia foi no entanto num local bastante plano, onde no meio de uma extensa área verde vemos desde bem longe uma pequena construção negra: é a Búðakirkja – ou, em bom português, a igreja de Búðir. Embora o preto seja uma cor frequentemente usada nas casas da Islândia, e até mesmo nas igrejas, esta tem a particularidade de ser totalmente negra, incluindo a torre. Isso e o facto de estar num local inóspito, sem praticamente nenhuma outra construção em volta (existe apenas um pequeno hotel nas proximidades), fazem dela um ponto de atracção turística, com paragem obrigatória para quem viaja por estes lados.

65 Diário Islândia - Búðakirkja

A Búðakirkja é tudo o que resta da antiga comunidade piscatória de Búðir, que foi no passado um dos maiores portos e entrepostos comerciais da Islândia. Os vestígios arqueológicos do local sugerem que tenha sido um porto activo desde os primórdios da colonização da ilha. No entanto, a localidade foi abandonada no início do século XIX, e apenas a igreja continua de pé.

66 Diário Islândia - Búðakirkja

A igreja original, de turfa como era uso na época, foi construída em 1701 e funcionou durante cerca de cem anos até ser suprimida por ordem de um rei dinamarquês em 1819. Só trinta anos mais tarde tiveram os residentes autorização para que fosse construída uma nova igreja, a que vemos actualmente e que ainda possui alguns elementos da igreja primitiva, que tinham sido cuidadosamente guardados por uma das habitantes da localidade.

67 Diário Islândia - Búðakirkja

Ao lado da igreja existe um pequeno cemitério com sepulturas rasas assinaladas por cruzes. Aparte isso, apenas um campo de lava com vegetação rasteira, por onde passeámos até à praia. Foi neste trilho que tivemos o nosso primeiro encontro de perto com uma família de ovelhas – sendo que (e perdoem-me a falta de rigor…) sempre que aqui falar de ovelhas estarei também a incluir carneiros, cordeiros e borregos – que são os habitantes mais numerosos da ilha e encontramos em praticamente todo o lado.

68 Diário Islândia - ovelhas (Búðakirkja)

Em flagrante contraste com as tábuas de madeira negra que revestem toda a igreja, os caixilhos das janelas e a porta estão pintados de branco imaculado. Ao pé, para tirar quaisquer dúvidas que possamos ter, esvoaça a brandeira tricolor da Islândia, presa na extremidade de um poste alto.

69 Diário Islândia - Búðakirkja

 

Apenas mais quinze minutos de carro e voltámos a parar, para subirmos até Rauðfeldsgjá, uma garganta escavada na montanha de Botnsfjall. Vista de longe, é apenas mais uma fenda na face rugosa do penhasco, de onde escorre um fio de água. Para entrar é quase impossível não molhar os pés, pois as pedras são poucas e escorregadias e o ribeiro ocupa toda a abertura. No interior o espaço alarga e as paredes de rocha arredondam-se à nossa volta, como se estivéssemos na torre de uma igreja que perdeu o telhado, com o pedaço de céu azul que vemos lá muito em cima a ser constantemente cruzado por gaivotas.

70 Diário Islândia - Rauðfeldsgjá

71 Diário Islândia - Rauðfeldsgjá

 

72 Diário Islândia - Rauðfeldsgjá

A água que corre pelo desfiladeiro no interior do penhasco salta sobre as pedras e forma pequenas cascatas. É possível seguir o curso do ribeiro montanha adentro, embora a garganta seja bastante estreita, mas com as nossas roupas frescas e ténis normais não estávamos minimamente preparados para essa aventura. Contentámo-nos em tirar algumas fotografias e depois cedemos o espaço a outras pessoas que tinham chegado entretanto e também queriam conhecer o local (e sobretudo tirar as selfies da praxe).

73 Diário Islândia - Rauðfeldsgjá

 

Do acesso a Rauðfeldsgjá temos uma vista soberba sobre o lado sul da costa de Snæfellsnes, com uma extensa baía e uma praia de areia avermelhada. O mar sem uma única onda e o sol radioso que tinha entretanto afastado grande parte das nuvens pareciam pedir que aquela bela praia estivesse cheia de gente, mas creio bem que quinze graus de temperatura do ar dissuadem mesmo os mais encalorados.

74 Diário Islândia - vista a partir da Rauðfeldsgjá

 

No extremo oeste da baía, a aldeia de Arnarstapi pede uma paragem mais demorada, pela sua reconhecida beleza natural. E aproveito para deixar já aqui uma ressalva: uma aldeia da Islândia não tem nada a ver com o nosso conceito habitual. Aqui pensamos em ruas estreitas e sinuosas, onde às vezes nem cabe um carro, e casinhas de pedra, tudo rodeado por árvores e montes. Lá temos ruas largas que se assemelham a estradas e casas baixas de madeira ou chapa ondulada, espalhadas quase que aleatoriamente em grandes planícies com vegetação tão rasteira que se confunde com a terra. Olhando de longe, pareciam-me mais acampamentos do que aldeias.

75 Diário Islândia - Arnarstapi

O pano de fundo de Arnastapi é o monte Stapafell, que visto desde a aldeia parece uma pirâmide escura e rugosa e contrasta fortemente com a enorme massa de gelo do Snæfellsjökull, visível mais atrás.

76 Diário Islândia - Arnarstapi

Arnarstapi foi em tempos um grande centro piscatório e tem algumas casas antigas interessantes, como a Amtmannshúsið, um edifício preto e branco que foi em tempos a residência do Governador dinamarquês, quando a Islândia pertencia à Dinamarca (de que só se tornou independente em 1918). Mas agora a aldeia é essencialmente um local turístico, com vários restaurantes onde os viajantes podem parar para comer alguma coisa ou tomar um café – que foi aliás o que fizemos, mas só depois de termos dado uma volta pelos miradouros junto ao mar.

77 Diário Islândia - Arnarstapi

78 Diário Islândia - Arnarstapi

A meio do trilho que leva às falésias há uma enorme escultura feita com pedras sobrepostas: é Bárður Snæfellsás, o protector da península de Snæfellsnes, concebido pela imaginação de um dos mais importantes artistas plásticos islandeses, Ragnar Kjartansson. Bárður é a personagem principal de uma saga, e dele se diz que era meio homem e meio troll.

80 Diário Islândia - Arnarstapi

E perante isto, tenho de fazer um parêntesis para vos explicar algumas particularidades da Islândia e dos islandeses. A crença em figuras míticas e seres sobrenaturais faz parte das raízes culturais do país, e há apenas vinte anos mais de metade da população ainda acreditava neles – ou pelo menos recusava-se a negar a sua existência. Apartados do resto do mundo durante séculos, os islandeses desenvolveram a tradição de contar histórias, oralmente ou por escrito (o que continua a reflectir-se hoje em dia no seu grande amor pelos livros), e as suas lendas estão frequentemente povoadas por elfos, trolls e monstros vários. Além disso, uma parte muito importante da literatura clássica islandesa é composta pelas sagas, que são narrativas em prosa baseadas essencialmente em factos históricos ocorridos nos séculos IX a XI, os primeiros séculos do povoamento da ilha. Estas sagas contam a história de várias famílias e dos seus conflitos, sucessos e tragédias nos primórdios da colonização da Islândia.

 

Voltando a Bárður Snæfellsás, a saga que lhe é dedicada narra que o seu pai, o Rei Dumbur, era meio titã. Apesar de supostamente os titãs serem “pessoas” fortes e gentis, parece que Dumbur tinha um feitiozinho especial e era bastante determinado, vulgo teimoso, pelo que quando decidiu que queria casar achou por bem raptar uma mulher, de seu nome Mjöll, que era muito bonita e tinha a particularidade de ser humana. Deste casal improvável nasceu Bárður, que chegou à Islândia no século IX e se instalou em Snæfellsnes. Este é apenas o princípio de uma longuíssima saga, cujos acontecimentos estão ligados a muitos dos lugares icónicos da península, e a razão pela qual se considera que Bárður Snæfellsás é o seu protector.

79 Diário Islândia - Arnarstapi

Continuando pelo trilho chegámos ao primeiro miradouro, de onde se tem uma vista privilegiada sobre as formas rebuscadas das falésias rochosas que se projectam na vertical desde o mar. As marés tingem a base das rochas com riscas coloridas, num dégradé que vai do cinza quase negro até ao tom mais claro do basalto, passando pelo castanho, o verde e o ocre. Este é o local preferido por milhares de gaivotas-tridáctilas para nidificarem, e os seus guinchos contínuos foram a música de fundo que nos acompanhou enquanto passeámos no caminho que percorre os penhascos.

81 Diário Islândia - Arnarstapi

82 Diário Islândia - Arnarstapi

83 Diário Islândia - Arnarstapi

84 Diário Islândia - Arnarstapi

O rochedo mais famoso de Arnarstapi é o Gatklettur. O vento e o mar desgastaram o basalto para formar um arco, que me fez lembrar dois seres estranhos a beijarem-se. Formações rochosas invulgares sucederam-se umas atrás das outras enquanto avançámos ao longo da falésia, como se a natureza tivesse decidido usar aquela ponta do mundo para fazer experiências. Ou, quem sabe, talvez aquele tenha sido em tempos o local de brincadeiras de pequenos deuses nórdicos. Na Islândia tudo é possível…

85 Diário Islândia - Arnarstapi

86 Diário Islândia - Arnarstapi

87 Diário Islândia - Arnarstapi

88 Diário Islândia - Arnarstapi

O percurso circular levou-nos até ao porto, onde só estavam atracadas duas pequenas embarcações, e depois de regresso ao centro da aldeia para finalmente descansarmos durante um bocado numa esplanada.

89 Diário Islândia - Arnarstapi

 

Voltámos à estrada, mas por poucos quilómetros. Outra das grandes atracções geológicas da região são os rochedos de basalto de Lóndrangar, dois penhascos negros com algumas dezenas de metros de altura que se destacam contra as águas do Atlântico Norte. As suas formas esquisitas e imponência valeram-lhes a alcunha de “castelo rochoso”, mas a mim pareceram-me os restos de um enorme navio naufragado. São tudo o que resta de uma cratera vulcânica depois de milhões de anos de acção das ondas oceânicas, testemunhas da impiedosa ferocidade da natureza.

90 Diário Islândia - Lóndrangar

É precisamente de Lóndrangar que temos a vista mais desimpedida para o vulcão Snæfellsjökull, o seu glaciar a confundir-se com as nuvens no alto dos seus quase 1500 metros.

91 Diário Islândia - Snæfellsjökull

92 Diário Islândia - Snæfellsjökull

 

A paragem seguinte foi em Ólafsvík, uma das maiores localidades da península. Apesar da sua situação privilegiada, entre o mar e um conjunto de colinas rochosas, a vila não tem nada de muito especial. No meio de edifícios com um certo ar de pavilhões pré-fabricados, destaca-se uma igreja geométrica, e um pequeno porto delimitado por pontões feitos de pedras empilhadas denuncia a vocação piscatória da localidade. Na verdade, a paragem que aqui fizemos foi essencialmente técnica, para meter gasolina e ir ao supermercado.

93 Diário Islândia - Ólafsvík

94 Diário Islândia - Ólafsvík

Na encosta há uma cascata bonita, a Bæjarfoss, um véu de água que desce em degraus, colado às rochas cobertas por uma fina camada de musgo verde. Não sendo impressionante, vale a pena a paragem. Apesar de na Islândia as cascatas serem tantas que chegámos ao fim da viagem com uma overdose, cada uma tem as suas características especiais, seja pela altura, pela envolvente, pelo caudal, ou por qualquer outro pormenor.

95 Diário Islândia - Ólafsvík - Bæjarfoss

96 Diário Islândia - Ólafsvík - Bæjarfoss

 

Cerca de vinte quilómetros depois, mesmo antes de chegar a Grundarfjörður, encontramos aquela que é provavelmente a montanha mais fotografada da Islândia: Kirkjufell. Esta elevação cónica que faz lembrar uma igreja de turfa (Kirkjufell significa precisamente “montanha da igreja”) ergue-se isolada e quase completamente rodeada de água, e achei-a encantadora. Ficou famosa sobretudo depois de ter aparecido na “Guerra dos Tronos”, coberta de neve, mas é igualmente fascinante com a “roupa” de Verão e iluminada pelo sol.

97 Diário Islândia - Kirkjufell

Do outro lado da estrada, a Kirkjufellsfoss é o seu par perfeito. Não é uma cascata muito alta, mas tem um caudal possante e vários desníveis, por onde a água vai caindo em pequenas cascatas que se juntam finalmente num ribeiro único que segue para o mar. O conjunto das quedas de água com a montanha em fundo e toda a paisagem envolvente formam uma das paisagens mais belas e originais de toda a Islândia.

98 Diário Islândia - Kirkjufell e Kirkjufellsfoss

99 Diário Islândia - Kirkjufellsfoss

 

Como no dia a seguir íamos para os Westfjords, tínhamos escolhido um alojamento já fora da península, na zona de Hlíð í Hörðudal, aonde chegámos uma hora e cem quilómetros depois. O Dalahyttur Lodge fica numa zona pouco habitada, onde só existem algumas quintas espalhadas num vale entre serranias. Os últimos quilómetros antes de chegarmos foram em estrada de terra batida, a nossa primeira experiência numa estrada deste género na Islândia.

 

A propriedade tem uma estrutura em forma de meio cilindro na horizontal, que abriga o restaurante e (segundo me pareceu) a casa dos donos, e três pequenas casas de madeira, cada uma com um terraço virado para o vale. Foi numa delas que ficámos, e foi sem dúvida um dos melhores alojamentos de toda a viagem.

100 Diário Islândia - Dalahyttur Lodge

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Tal como o exterior, o interior da casa em que ficámos é todo em madeira clara. Tem uma única divisão, equipada com uma kitchenette minúscula mas com tudo o que é necessário, e uma excelente casa-de-banho. As três janelas estão convenientemente dotadas de estores blackout, que são indispensáveis para se conseguir dormir em condições nas noites claras de Verão.

 

Ao todo, neste primeiro dia da viagem de carro percorremos 370 quilómetros, em estradas boas e pouco sinuosas e fazendo bastantes paragens, pelo que apesar de termos andado bastante a pé foi um dia relativamente tranquilo e não muito cansativo.

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Apesar de as minhas expectativas em relação à Islândia serem altas, o que vimos neste primeiro dia fora da capital não me desapontou em nada. A península de Snæfellsnes faz jus à sua fama. A paisagem muda a cada cinco minutos, desdobrando-se em cores e formas e misturando água, pedra, areia e terra de tantas maneiras diferentes que nunca cansa. De vez em quando vemos uma quinta rodeada de fardos de palha embrulhados em plástico colorido, espalhados ao acaso pelas planícies, e ainda mais de vez em quando surge uma igreja, acompanhada por meia dúzia de casas. Há cavalos que pastam tranquilos em manada, e ovelhas – muitas ovelhas! – que se passeiam em trios ou dormem nas encostas rasgadas pela estrada. A atmosfera muda em cada curva do percurso. Tão depressa o céu aparece brilhante de sol como carregado de nuvens, às vezes apenas uns farrapos brancos, outras vezes formas nebulosas estranhas que eu nunca vi em mais lado nenhum. Esta é definitivamente uma terra de encantos.

 

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O roteiro e várias informações práticas sobre a Islândia estão aqui: Coleccionar paisagens surreais na Islândia

 

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Diário de uma viagem à Islândia - Na península de Snæfellsnes