Nos meandros do Zêzere
Se há coisa que não falta em Portugal são estradas bonitas, embora nem todas tão famosas como merecem. Fiquei recentemente a conhecer mais uma destas estradas que se destacam pela sua beleza, e que não hesito em colocar na lista das minhas preferidas: a N344, que faz a ligação da N2 à Pampilhosa da Serra. Estrada irrequieta, tortuosa, não permite grandes velocidades, o que acaba por ser uma vantagem pois assim sempre se consegue observar melhor o cenário que a rodeia. E acreditem que há muita paisagem para apreciar, porque esta estrada corre durante vários quilómetros ao lado daquele que é provavelmente o troço mais bonito do Zêzere, onde o rio desenha uma série de curvas quase idênticas, abrindo caminho com dificuldade entre os cerros, formando penínsulas umas ao lado das outras, aparecendo e desaparecendo da nossa vista numa provocação constante. É nos meandros do Zêzere que vos levo hoje a passear.
O Rio Zêzere é o segundo maior rio que corre exclusivamente em território português. Nasce na Serra da Estrela, muito perto desse lugar mítico que dá pelo nome de Covão d’Ametade, e depois de correr para nordeste por um dos mais compridos vales glaciares da Europa, em Manteigas muda de ideia e decide inverter a sua marcha, descendo obliquamente pelo centro do país até se encontrar com o Tejo em Constância, num percurso cortado por três barragens: Cabril, Bouçã e Castelo do Bode.
Na N344, o meu primeiro contacto com o Zêzere foi pouco depois de passar a ponte sobre o Rio Unhais, mais ou menos por alturas da Portela do Fojo, quando as árvores que ladeiam a estrada deixaram de me bloquear a visão. Foi um encontro inesperado, aquela fita irregular azul a intrometer-se no verde-escuro dominante da paisagem, relevos doces e arredondados com uns salpicos esparsos de pequeninas aldeias brancas. Uma certa sensação de surrealidade num cenário para mim invulgar, como se de repente tivesse sido teletransportada para outro país, ou até quem sabe para outra dimensão. Fiquei deslumbrada.
Mais à frente na estrada há uma placa que indica o caminho para a aldeia de Álvaro e para um novo encontro com o Zêzere, que cruzei ao passar por uma ponte como se estivesse a pairar sobre a água. Nestes meandros o rio é ao mesmo tempo lago, sossegado e volumoso, a sua morfologia ainda influenciada pela retenção na barragem do Cabril, apenas quinze quilómetros a sudoeste em linha recta mas bastantes mais em percurso de rio.
Álvaro é uma das aldeias brancas da Rede das Aldeias do Xisto, e uma pequena jóia do centro de Portugal. Tem uma localização privilegiada, alongando-se na crista de uma colina debruçada sobre o Zêzere, vigiando lá do alto a quietude das águas e a sua praia fluvial. Esconde, sob a capa de terrinha minúscula e insuspeita, uma riqueza histórica e um património surpreendentes. Pertenceu, entre os séculos XII e XV, à Ordem de Malta, e o carácter religioso da aldeia subsiste até hoje. Na aldeia e em volta dela existem várias igrejas, capelas e alminhas, que se somam a algumas casas do século XIX e duas pontes (uma delas romana) e formam um conjunto de pontos de interesse a visitar, agrupados em percursos como os Caminhos do Xisto ou o Percurso das Capelas.
A Igreja Matriz, dedicada a São Tiago Maior, e a Igreja da Misericórdia encontram-se no centro da aldeia, muito próximo uma da outra. Da primeira podemos dizer que é “recente”: a construção primitiva, de raiz medieval, desapareceu num incêndio, e as características actuais foram-lhe dadas pela reconstrução e remodelação de que foi alvo nos séculos XIX e XX. A sua riqueza está no interior, que abriga o “módico” número de cinco altares em talha dourada. Já a Igreja da Misericórdia é bem diferente. Mais pequena, com um volume irregular e um telhado curioso que se projecta parcialmente, de ambos os lados, numa espécie de beiral suportado por barrotes, mantém nitidamente algumas características originais. Construída no final do século XVI, o portal de granito e a imagem de Nossa Senhora que se encontra por cima não padecem dos excessos decorativos barrocos dos séculos posteriores, aos quais estamos tão habituados.
Em passeio pela aldeia é impossível não notar os efeitos do incêndio que devastou Álvaro e toda a sua envolvente em 2017. Das mais de 40 casas destruídas, muitas continuam em ruínas, esqueletos de pedra sem telhas nem vidros, as entranhas invadidas por matagal e lixo. Testemunhos do terror vivido nesses dias pelos habitantes, não houve felizmente mortes a lamentar, mas lançam sobre a aldeia um certo manto de tristeza apenas quebrado pelas vozes de duas meninas que brincam no jardim ao pé da Igreja Matriz. Entre as casas recuperadas, na sua maioria imaculadamente pintadas de branco e com uma faixa de cor discreta na base, algumas deixaram-me curiosa por terem, ao lado da porta principal, uma porta muito pequena por onde é impossível um adulto passar sem ser de cócoras.
A N344 termina na Pampilhosa da Serra, mas a partir desta vila há outra Estrada Nacional que volta, percorridos alguns quilómetros, a pôr-nos em contacto com o Zêzere: a 112. A minha paragem nesta estrada foi em Cambas, onde apenas me detive o tempo suficiente para passear um pouco junto ao rio, no caminho que leva à praia fluvial. O dia estava quente e a aldeia tão parada como a água. À sombra de uma árvore, um casal já bem idoso, cada um em seu banquinho desdobrável, as mãos dela ocupadas com um trabalho de agulha, as dele com uma cana de pesca, várias outras ao lado já posicionadas à espera que o peixe picasse. Cumprimentei-os, perguntei se estavam a pescar para a janta, ela riu-se e disse que tinham acabado de chegar. “Isto é só para distrair um bocado”, rematou. Sorri também e desejei-lhes boa pescaria, pensando na sorte que têm por continuarem juntos e a gostar da companhia um do outro, numa idade em que a maior parte das pessoas já enviuvou.
Deixando a N112 para acompanhar de perto as curvas do Rio Zêzere, o destino seguinte foi Janeiro de Baixo. Também aqui há uma praia fluvial, junto ao parque de campismo e a uma zona de merendas muito limpa e agradável, entre pinheiros altos e frondosos. A praia é de areia mas a época balnear oficial reduz-se a dois únicos meses, Julho e Agosto, e notava-se que ainda havia obras a decorrer. Aqui o Zêzere ainda é rio, mais estreito e mais rápido, faz barulho ao galgar uma represa baixa feita com pedras, a jusante da praia.
Janeiro de Baixo está encaixada num cotovelo do rio, que por isso também podemos ver do outro lado da aldeia, a partir do largo ao pé da igreja, que funciona como uma espécie de miradouro. Pertence igualmente à Rede das Aldeias do Xisto e tem um misto de casas de pedra e casas rebocadas, muitas delas com nítida recuperação recente. Toda a aldeia tem um ar luminoso e organizado, e no entanto nem com meia dúzia de pessoas me cruzei durante o meu passeio pelas ruas. Talvez fosse por estar calor, ou porque os habitantes se mantêm reservados nas suas casas com receio de forasteiros eventualmente infectados com o coronavírus, ou ainda talvez porque ali não existam muitas pessoas a viver em permanência. Fica a incógnita.
O Rio Zêzere define, durante grande parte do seu percurso, a separação entre os distritos de Coimbra e Castelo Branco. Esta é a razão pela qual duas aldeias que têm quase o mesmo nome e distam uns meros dois quilómetros ficam actualmente em distritos (e concelhos) diferentes: Janeiro de Baixo pertence a Coimbra, e Janeiro de Cima a Castelo Branco. A culpa é do rio e das suas reviravoltas na geografia acidentada que lhe saiu na rifa. Nesta região, por motivo que se perde na memória do tempo, as aldeias parecem vir aos pares. Há Brejo de Baixo e Brejo de Cima, Estremanças de Baixo e Estremanças de Cima, Aldeia Cimeira e Aldeia Fundeira (entre elas, seguindo uma lógica inatacável, existe a Aldeia do Meio), e muitas outras cuja toponímia segue o mesmo raciocínio.
Apesar de partilharem parte do nome e estarem ambas na margem do Zêzere, Janeiro de Cima tem um ambiente bastante diferente do da sua vizinha de Baixo. Comecei a minha visita também junto ao rio. Segui a seta que indicava “Roda de Janeiro”, apenas para descobrir que a reconstituição desta roda antiga usada para as regas está, com grande pena minha, desmontada. O local é agradável e dali parte um passadiço de cimento que cruza o rio até â margem oposta, substituindo as antigas barcas que transportava pessoas e mercadorias de um lado para o outro. Por outro passadiço acede-se ao Parque Fluvial da Lavandeira, uma área com relva, bem cuidada, que funciona simultaneamente como praia e parque de merendas. Era quase hora de almoço e a animação já se notava, os grelhadores ao rubro lançando fumo para o ar, pessoas afadigadas à volta das mesas. Sentada na esplanada do bar, do outro lado do parque, percebi pouco depois a razão para tanta azáfama: um encontro de motards. Chegaram em comitiva barulhenta, num desfile de várias dezenas de motas que parecia não acabar, arrumando-se milagrosamente no estacionamento reduzido onde já estavam alguns carros.
Saí dali em busca do sossego das ruas da aldeia. A parte mais antiga, à volta da Igreja Velha, está toda recuperada, muitas casas embelezadas com trepadeiras e vasos de flores. São na sua maioria casas em pedra, que ostentam a particularidade de mostrarem, nas paredes construídas, grandes seixos rolados extraídos do rio, intercalados com os blocos irregulares de xisto. Neste casario ainda se encontram algumas edificações cuja construção data dos séculos XVII e XVIII. As poucas casas que têm reboco estão pintadas de branco ou com cores vivas.
Um dos projectos mais conhecidos de Janeiro de Cima é a preservação da tecelagem tradicional com linho. Foi criada a Casa das Tecedeiras, oficina e loja ao mesmo tempo, onde foram montados teares para a produção de peças várias feitas com recurso às técnicas tradicionais. Ao lado da casa, uma enorme escultura de betão e aço evoca precisamente um tear. A Casa das Tecedeiras funciona também como centro interpretativo e tem em exposição para venda peças lindíssimas, algumas também em tecido. Infelizmente, estava fechada, ao que percebi ainda em resultado das restrições impostas pela situação pandémica actual. Aliás, como já o disse no post anterior, notei nesta minha viagem que muitos estabelecimentos e organismos oficiais ainda se encontravam encerrados ao público.
O último destino da minha jornada pelas curvas do Zêzere foi Dornelas. Mas antes de entrar na aldeia parei no Santuário de Nossa Senhora de Fátima, espaço amplo, moderno e deserto que tem como vantagem ser um miradouro de excelência sobre o Zêzere, Dornelas, e a sua vizinha aldeia de Alqueidão.
Depois desci até ao açude, junto ao local a que – pomposamente, direi eu – chamam praia fluvial. Uma espécie de ponte pedonal feita com lajes de betão dá acesso ao outro lado do rio. Junto às escadinhas que descem até à praia, estão eternizados em azulejo os versos que um jovem poeta da terra, Júlio Dias, compôs em 1938 como prova do seu amor por Dornelas do Zêzere. Por baixo deste memorial, a pequena escultura de um leão (e não me perguntem porquê, que não sei). A história desta aldeia é tão antiga que se crê ser ainda anterior à formação de Portugal. A Igreja Matriz, de devoção a Nossa Senhora das Neves, já era mencionada no “Catálogo das Igrejas” de 1320. Tem ainda um Museu Etnográfico e a capela de São Miguel, que datará provavelmente dos séculos XVII ou XVIII.
Apaixonada que sou por tudo o que tem a ver com água, durante estes dias que passei na Pampilhosa da Serra rendi-me aos encantos do Rio Zêzere, que nesta região são exponencialmente aumentados pela paisagem fascinante que o acolhe. É a Natureza no seu melhor, frequentemente tão maltratada por nós, e ainda assim a ter a capacidade de se regenerar uma e outra vez, continuando a assegurar a nossa sobrevivência.
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A minha estadia na região da Pampilhosa da Serra e Oleiros está incluída na iniciativa #EuFicoEmPortugal, uma acção concertada que envolve 48 dos bloggers associados da ABVP-Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, e cujo objectivo é divulgar o nosso país e incentivar os portugueses a saírem à descoberta das inúmeras maravilhas de Portugal, muitas delas ainda tão pouco conhecidas. Cada blogger escolheu uma região diferente, que visitou ou está ainda a visitar, com a finalidade de produzir conteúdo original sobre o destino escolhido. A parte prática deste projecto está a ser desenvolvida desde o dia 6 de Junho, com milhares de posts, fotografias e stories já publicadas e partilhadas nas redes sociais e na blogosfera – e muito mais continuará a ser partilhado. Sigam-nos através da hashtag e surpreendam-se com tudo aquilo que Portugal (ainda) tem de inédito para nos oferecer.
Para me alojar nesta viagem escolhi a Isabel House, uma casa de aldeia remodelada e muito acolhedora que fica na Póvoa, a 6 km da Pampilhosa da Serra, e me foi gentilmente disponibilizada pelos proprietários.
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Esta viagem teve o apoio da Entidade Regional de Turismo do Centro de Portugal
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