2020, um ano diferente
Não há nada que eu possa dizer sobre 2020 que não tenha sido já dito. Pelo menos no que toca às generalidades, ou a grandes reflexões filosóficas. Este ano, que astrólogos, tarólogos e afins, economistas, políticos e outros quejandos previam excepcional, tem sido realmente fora do comum… só que não no bom sentido. O mínimo que se pode dizer dele é que tem sido um ano mau.
Para mim, mais do que mau, é um ano marcado a negro. O negro do luto. Este ano privou-me de três mulheres da minha família próxima (nenhuma por causa do novo coronavírus), sendo uma delas a minha mãe – e é claro que tudo o resto me parece melhor, por comparação, porque nada ultrapassa essa dor. O confinamento veio logo a seguir, como se o universo estivesse alinhado com o meu estado de espírito, e desde essa altura que me sinto por vezes como que a viver numa outra dimensão, e em stand-by. Tudo é estranho, tudo é diferente, tudo é incerto. Não há pontos de referência nem farol a iluminar o caminho, a navegação tem de ser feita à vista – e à volta só há nevoeiro.
Ainda assim, apesar da estranheza e da maré cinzenta que 2020 tem sido, apesar dos desgostos e das restrições, este foi mais um ano de aprendizagem, e algumas coisas boas aconteceram – na sua maioria, como é óbvio, ligadas às poucas viagens que fiz.
Este ano habituei-me a viver um dia de cada vez. Sou uma pessoa que gosta de ter planos, mesmo que não sejam para cumprir à risca. Gosto da sensação de ansiar por qualquer coisa, de ter um objectivo (ou mais), de pensar no que vou fazer para lá chegar, de olhar para a frente sabendo que algo me espera ou tem de ser feito. Este ano tive de mudar a minha perspectiva. Alguns objectivos que tinha ficaram inviabilizados, outros perderam o interesse, e imensas tentativas tímidas de planear o que quer que fosse com mais de um ou dois dias de antecedência acabaram por se ver goradas. Por isso, desisti. Agora estou aqui a escrever, amanhã espero acordar e continuar viva – e de resto nada mais sei. Tenho desejos, claro, e sonhos, e tarefas já designadas para amanhã (e talvez até para depois de amanhã), e é tudo. Para quem está sempre a planear ansiosamente uma próxima viagem, ou apenas um próximo fim-de-semana, esta impossibilidade de ver mais longe do que uns poucos metros começou por ser frustrante, mas tive de me habituar. E é, até certo ponto, uma experiência libertadora.
Foi o ano em que tive a certeza de que gosto de trabalhar em casa. Talvez como contraponto à minha enorme paixão por viajar, cada vez aprecio mais o tempo em que estou no sossego do meu casulo. Tive a sorte, desde o início do confinamento, de poder continuar a trabalhar a partir de casa sem que isso afectasse minimamente as minhas funções (pelo contrário, acho que até consigo trabalhar melhor), e não tive qualquer problema em me adaptar a esta vida mais sossegada. Apesar de estar praticamente sempre sozinha, não me sinto solitária. E nos meus tempos livres vou descobrindo formas de viajar sem sair de casa.
Este foi também o ano em que fiz uma das melhores viagens da minha vida. É comum ouvir dizer que quando se fecha uma porta, abre-se uma janela, e por vezes isso é verdade. Por paradoxal que pareça, este foi o ano em que pude ir conhecer um país que já estava há muitos anos na minha lista de desejos: a Islândia. Noutra altura teria sido impensável conseguir planear e marcar uma “road trip” na Islândia com menos de duas semanas de antecedência, mas a diminuição do turismo este ano tornou possível (e economicamente mais acessível) organizar tudo em meia dúzia de dias. Foram quase duas semanas a viajar neste país incrível e que consegue ser mais espectacular do que eu esperava, com a vantagem de que este Verão tinha muito – mesmo muito! – menos visitantes do que o habitual, o que fez com que a experiência fosse ainda melhor. Em Julho, a única exigência para entrar no país era fazer o teste PCR à chegada, no aeroporto, e aguardar no hotel até que chegasse o resultado negativo (cerca de 10 horas). Os requisitos começaram a ser mais apertados logo a partir do mês de Agosto, e as restrições têm vindo a ser cada vez maiores – o que só veio fortalecer a minha convicção já antiga de que é preciso agarrar as boas oportunidades quando elas aparecem, porque nunca sabemos se voltarão a surgir à nossa frente. Ponderar os prós e os contras é normal, mas pensar demasiado e ficar na indecisão pode ser contraproducente e fazer-nos perder o lado bom da vida.
Já publiquei as histórias de vários dias desta viagem aqui no blogue, desde o primeiro dia em Reiquiavique até ao dia em que saímos dos Westfjords e fomos para a região noroeste, e mais posts sobre os outros dias da viagem serão publicados em devido tempo. Sugiro também que leiam “Coleccionar paisagens surreais na Islândia”, para ficarem a conhecer mais alguns pormenores de como é viajar de forma independente neste país, e o roteiro completo da viagem.
E por falar nas viagens da minha vida, este ano vi publicada em livro uma pequena história sobre uma delas. O livro chama-se precisamente “Viagens de Uma Vida” e é uma colectânea de histórias (verdadeiras!) escritas por vários bloggers da ABVP-Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, de que sou associada.
Este ano também continuei a descobrir Portugal. Se seguem o blogue sabem que viajo no nosso país desde que me lembro de ser gente, que conheço Portugal de norte a sul – e no entanto, continuo a ter muito (tanto!) para descobrir e revisitar. Com ou sem restrições, este ano não poderia ser excepção; e como, mesmo no que toca às viagens, é mais importante a qualidade do que a quantidade, apesar de ter viajado menos posso dizer que conheci e revi lugares que me encheram os olhos de beleza e ficaram no meu coração. Portugal é um país pequeno mas com uma capacidade enorme de se reinventar, e existem muitas razões para eu gostar profundamente deste meu país.
No início de Fevereiro voltei ao Porto, a cidade que apesar de andar nas bocas do mundo – pelas melhores razões – continua a saber acolher bem quem a visita. Se ainda não conhecem a nossa Invicta, leiam este post com um roteiro de dois dias pela capital do norte.
Ainda em Fevereiro, fui conhecer o Carnaval transmontano. Os Caretos de Podence são Património Imaterial da UNESCO e a face mais visível do nosso Carnaval nordestino, mas há na região várias outras localidades igualmente amigas da folia, a começar pela própria Bragança, que faz coincidir com esta época o seu Festival do Butelo e das Casulas.
Podence
Bragança
Na altura nem sequer sonhávamos que poucas semanas depois íamos ficar todos fechados em casa, os dias estavam soalheiros e aproveitei para rever algumas aldeias da região, como as famosas Rio de Onor e Gimonde e a (infelizmente) ignorada Babe, uma aldeia com muita história que podem conhecer melhor no post que escrevi sobre ela . Dei ainda um pulinho à vizinha localidade espanhola de Puebla de Sanabria e ao lago com o mesmo nome. No regresso ao sul, fui conhecer a antiga área mineira de Argozelo e o Castelo de Algoso.
Rio de Onor Gimonde
Puebla de Sanabria
Lago de Sanabria
Antiga área mineira de Argozelo
Castelo de Algoso
Depois, tal como quase toda a gente, fiquei praticamente fechada em casa durante meses, e só voltei a sair do casulo em Junho, mês em que me “vinguei” de tanto tempo confinada. Comecei pelo Algarve, para apanhar sol e passear. O meu lado preferido é o sotavento, onde ainda é possível encontrar alguma tranquilidade e resquícios daquele Algarve de há muitos anos, antes de ser destino do turismo de massas. Foi sobre este “outro Algarve” que escrevi um artigo para o website onde colaboro regularmente, o Fantastic - Mais do que Televisão. Também aproveitei estas férias para ir conhecer a Mina de sal-gema de Loulé, e é sobre esta e outras minas (incluindo a de Argozelo, que referi mais acima) que fala o artigo “Minas, da superfície às profundezas” . E ainda tive tempo para matar saudades de Alte, de Ferragudo e de Monchique, lugares especiais num Algarve que este ano esteve incomumente mais português que estrangeiro.
Mina de sal-gema de Loulé
Caldas de Monchique Ferragudo
Loulé Alte
Embora a pandemia esteja a afectar todos os sectores da economia, o mais castigado no nosso país tem sido (e ainda continuará a ser durante muito tempo), sem sombra de dúvida, o do turismo. Como modesto contributo para ajudar este sector, a maioria dos bloggers associados da ABVP-Associação de Bloggers de Viagem Portugueses uniram-se numa campanha para promover o turismo aquém-fronteiras, sob o slogan Eu Fico em Portugal. Distribuímo-nos por várias regiões do país, e eu escolhi uma zona de que ainda não conhecia nada: a Pampilhosa da Serra. Fui surpreendida por esta região de uma beleza fascinante e com paisagens admiráveis, diferente de qualquer outra no país, e no entanto muito pouco divulgada em termos turísticos. Se ainda não conhecem, leiam os posts “Nas curvas da Pampilhosa” e “Nos meandros do Zêzere”, e de certeza que vão ficar com vontade de ir até lá.
Em Setembro continuei pelo centro de Portugal: regressei à deliciosa aldeia do Casal de São Simão, à praia fluvial das Fragas de São Simão, muito popular neste ano, e à vizinha praia de Mosteiro.
Casal de São Simão
Mosteiro Fragas de São Simão
Depois voltei ao norte, desta vez para revisitar a zona mais desejada e também uma das mais frequentadas do Verão que passou – o Gerês. O pretexto foram as Jornadas Gastronómicas Gerês-Xurês, que me deram a conhecer, por entre as paisagens fantásticas do nosso Parque Nacional, sabores antigos e novos de Terras de Bouro e de Montalegre. Além do que escrevi nos artigos “O sabor do Gerês em Terras de Bouro” e “O sabor do Gerês em Montalegre”, tive a felicidade de voltar a Pitões das Júnias e a Montalegre, e de ter como um dos nossos guias o Padre Fontes, o homem que mais tem feito pela divulgação deste pedaço da terra transmontana.
Como que a gozar connosco por termos as deslocações tão limitadas, o Verão deste ano foi longo e quente. Em Outubro o tempo ainda estava excelente, mesmo a pedir-nos para sairmos de casa. Obediente que sou, logo no início aproveitei o fim-de-semana comprido para passear pelo Ribatejo. Voltei às aldeias avieiras de Escaroupim e Palhota e fui até à Golegã, uma vila que praticamente não conhecia e foi (mais) uma agradável surpresa.
Palhota Escaroupim
Golegã
Mesmo antes de as restrições voltarem a endurecer, ainda em Outubro, foi altura de me juntar a vários outros bloggers da ABVP para passarmos um fim-de-semana a conviver e trocar ideias em Castelo do Bode, perto da Aldeia do Mato. Foram dois dias de conversas e bom humor, boa comida e bebida, caminhadas e um passeio de barco, e cujo único defeito foi o facto de estarmos a viver uma época que não é propícia a afectos, em que o contacto físico que nos faz tanta falta tem de ser posto de lado e (incapazmente) substituído por simples olhares e cotoveladas.
Aldeia do Mato
Novembro é o mês do meu aniversário, que assinalo sempre que possível com uma viagem ou escapadinha, e este ano não foi excepção. Desta vez viajei até ao passado e alojei-me no belíssimo Curia Palace, construído há quase um século e recuperado há alguns anos. Apesar do anacronismo das máscaras, dos frascos de gel e das setas no piso, o hotel mantém o ambiente sofisticado dos anos dourados do século 20. Passei dois dias a revisitar a Mata do Buçaco e os arredores, mais bonitos ainda por estarem pintados com as cores de Outono. De caminho, fiquei a conhecer as Buracas do Casmilo e fui matar as saudades que já tinha de Ourém.
Curia Palace
Buçaco
Ourém Buracas do Casmilo
Os meus passeios de 2020 terminaram no Oeste, num dia de Novembro em que o sol brilhava nas Caldas da Rainha e mais ou menos até meio da Foz do Arelho, mas daí para a frente a neblina quase não deixava ver um palmo à frente do nariz. Na estrada para Salir do Porto, o carro ora rasgava um nevoeiro denso, ora subia acima das nuvens compactas que cobriam as praias e o mar – e foi esta a sensação que, nos últimos meses, mais se aproximou de me sentir a bordo de um avião. Com toda a nostalgia que isso me trouxe.
Caldas da Rainha
Foz do Arelho
Entre Salir do Porto e a Foz do Arelho
Mesmo tendo um novo ano à porta, não estou muito optimista quanto às melhorias que 2021 nos possa trazer em relação a este ano “amaldiçoado” que está a terminar. Janeiro vai certamente ser um mês duro, e os meses seguintes não serão muito melhores. Mas, tal como 2020 demonstrou, habituamo-nos a tudo, mesmo ao que mais custa. O próximo ano será para continuar a viver um dia de cada vez, agarrando sem hesitar tudo o que de bom for surgindo no caminho. Daqui por mais ou menos um ano, se tudo correr bem, cá estarei para fazer o balanço.
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